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terça-feira, 13 de novembro de 2018

O ALERTA QUE VEM DA ESCÓCIA



            A Escócia é um país que não ganha páginas dos jornais internacionais e muito menos da mídia brasileira. Sua seleção de futebol poucas vezes conseguiu se classificar para a Copa do Mundo futebol; não produz telenovelas; não tem grandes catástrofes naturais; fica escondida na geografia do chamado Reino Unida da Grã Bretanha (Inglaterra). A pergunta, portanto, é: por que a Escócia ocupou recentemente as manchetes mundial e nacional? Porque incorporou em sua Constituição o ensino obrigatório da diversificação sexual.
            Mas o que nos interessa chamar atenção é o fato de que a Escócia foi um dos pilares da chamada Segunda Reforma que ocorreu na Inglaterra ainda no século XVI. A Escócia foi pioneira na Grã Bretanha a adotar o sistema de governo Presbiteriano e a elaborar uma confissão de fé calvinista. Nos séculos seguintes os escoceses atravessaram o oceano e aportaram nos Estados Unidos e ali estabeleceram o sistema presbiteriano calvinista através de suas denominações, escolas e Universidades. Nomes de grande relevância no campo da teologia foram responsáveis, por vários séculos, pela manutenção desta teologia bíblica sadia pela ótica calvinista. E o Brasil a partir do século XIX (final dos oitocentos) também recebeu a influencia da denominação presbiteriana através dos missionários estadunidenses que aqui chegaram para implantar sua denominação evangélica protestante e que comemorou 159 anos no país.
            A questão que levantamos aqui é: o que aconteceu com a Escócia? E o que aconteceu com ela pode vir acontecer com o Brasil também?
            O passar dos séculos não fizeram bem para as igrejas reformadas na Escócia. Gradativamente essas denominações foram perdendo sua capacidade de serem luz e sal da sociedade escocesa. Entrincheiradas em suas ortodoxias teológicas e comodamente instaladas em suas estruturas eclesiásticas, as denominações protestantes passaram a viver em função de si mesmas. Sistematicamente foram se afastando das realidades sociais e deixando espaços cada vez maiores os quais foram ocupados por outros segmentos sociais. O resultado está agora patente em todos os jornais mundiais: a sociedade escocesa está completamente desassociada dos princípios básicos da Palavra de Deus. O berço do presbiterianismo é hoje a vanguarda do que há de pior nas ideologias de gênero e de tudo que afronta os princípios bíblicos.
            O que isso tem haver com o Brasil? Tudo! Na mesma proporção em que a igreja se afasta da Sociedade, outros segmentos sociais passam a controlar seus destinos. Não basta ter uma teologia bíblica séria e coerente; não basta ter uma superestrutura eclesiástica; não basta ter grandes instituições educacionais e universitárias; é preciso que tudo isso seja entretecido no tecido social, para que possa influenciar os conceitos que haverão de nortear a direção que a sociedade brasileira vai tomar.
            Pela primeira vez desde a década de cinquenta, que foi abortada no inicio da década de sessenta, a igreja protestante começou a se posicionar frente às ideologias abertamente contrárias aos princípios bíblicos evangélicos. É um movimento incipiente e em sua maioria de cunho pessoal de algumas lideranças, mas que pode e deve se transformar em ações mais amplas e integradas.
            É preciso urgentemente ocupar novamente os espaços sociais que por tanto tempo foram entregues nas mãos e/ou mentes de agentes anticristãs que tem usado e abusado do comodismo e hedonismo que infectou a grande maioria dos evangélicos brasileiros.
            As nossas bandeiras teológicas tem que serem hasteadas diariamente em todos os recantos desse país; a nossa mensagem precisa ser ouvida pela sociedade brasileira; as nossas propostas sociais, econômicas, jurídicas; politicas precisam ser inseridas nas diversas agendas da Sociedade brasileira.
            É preciso romper a mentalidade de gueto que por tantos anos tem prevalecido, principalmente entre as denominações protestantes históricas. É preciso olhar não apenas pela micro, mas ampliarmos nossa visão pela ótica macro – entender que se não influenciarmos positivamente a Sociedade brasileira, ela continuará sendo influenciada por toda sorte de ideologias maléficas.
            Os nossos profissionais liberais (advogados, engenheiros, arquitetos, artistas) devem participar ativamente e de forma propositiva de suas entidades de classes. Os patrões e empregados de forma geral precisam fazer parte de seus sindicatos e defenderem suas propostas para um país melhor, mais justo e honesto.
            Os governantes em todas as suas esferas devem ser abertamente confrontadas com seus crimes; as instâncias políticas da Câmara e do Senado tem que serem renovados de maneira que possam produzir leis que não venham a inibir o desenvolvimento do evangelho; as instituições judiciárias devem ser cobradas para que as Leis e a Constituição sejam de fato respeitadas e aplicadas. É preciso mobilizar os cerca de 38 milhões de brasileiros evangélicos para que exerçam sua cidadania e utilizem os mecanismos próprios para isso como abaixo assinados e monções e ate mesmo propostas populares para formulação de leis e normas que contribuam para o bem estar social e respaldo para aqueles que enfrentam os corruptos que tanto prejudicaram e continuam prejudicando essa grande Nação.
            Uma vez perdida essa oportunidade, mantendo-se a famigerada equidistância dos fatos sociais, em muito breve nos tornaremos uma Escócia tupiniquim. Se nos contentarmos apenas com a eleição de um presidente da República, demonstraremos o quão ignorantes somos das terríveis realidades que assolam nosso país. Essa eleição apenas trouxe à tona a ponta do iceberg da podridão e devassidão que estão submersos e escondido do campo visual. É preciso muito esforço e persistência para que o Brasil venha realmente a ser uma nação digna e com princípios evangélicos sadios; é uma luta sem tréguas e que somente se encerrara com a volta do Senhor Jesus. Não podemos e nunca fomos autorizados a nos acomodarmos nesse mundo!
            Que não seja apenas um espasmo social o que vimos nessa eleição por parte de lideranças sérias dos evangélicos brasileiros. Mas que seja o inicio de um movimento consistente e perseverante, até que a nossa Nação alcance a estatura de Nação perfeita em Cristo Jesus. 

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
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segunda-feira, 5 de novembro de 2018

As Primeiras Escolas de Interpretação - Escola de Antioquia



A escola de Antioquia da Síria surgiu em oposição à de Alexandria, que dominou a hermenêutica bíblica nos primeiros séculos. Ela foi uma tentativa de coibir os abusos da espiritualização e apontar um caminho mais seguro, especialmente, quanto à leitura do Antigo Testamento. O fundador dessa escola foi Luciano de Antioquia (240-312 d.C.), a quem se atribui (apesar da falta de evidências) a tentativa de uniformização dos textos gregos existentes que deram origem ao texto Bizantino ou Sírio. Credita-se, assim, a Luciano o mérito de ter dado início a uma rica tradição de estudos bíblica marcada pela erudição e pelo conhecimento das línguas originais. A escola de Antioquia rejeitou a alegorese e sustentou que o texto bíblico deveria ser interpretado em seu sentido literal (histórico) a não ser que a passagem demonstrasse claramente tratar-se de uma alegoria. Quanto àquelas passagens, notadamente as profecias, em que se percebiam um sentido oculto e profundo além do literal, desenvolveram um conceito que ficou conhecimento como teoria. Vejamos a seguir os maiores expoentes da Escola de Antioquia.
2.1. Principais Representantes
Deodoro de Tarso (390 d.C.)
Escreveu um tratado intitulado Qual é a diferença entre contemplação e alegoria? No qual defende a “contemplação” ou theoria contra a alegoria que parecia impor um sentido forçado ao texto bíblico.
Ele também escreveu um comentário dos Salmos em que tentava explicar os princípios hermenêuticos sadios para a boa compreensão dos Salmos, procurando, assim, interpretá-los dentro do seu contexto histórico.
Teodoro de Mopsuéstia (350-428 d.C.)
Considerado o maior exegeta antioquiano, de acordo com Altaner (1988, p. 322), Teodoro comentou “com extraordinária sagacidade critica, nada comum na Igreja Antiga, quase toda a Bíblia”. Ele escreveu um tratado contra a interpretação alegórica chamada “Conceming allegoiy and history against Origen”, no qual obviamente criticava a interpretação de Orígenes. Na sua própria abordagem, ele procurou focalizar o sentido natural e literal, utilizando uma interpretação que mais tarde seria denominada gramático-histórica. Esta abordagem é evidenciada em sua obra sobre os salmos, em que procurou reconstruir as ocasiões prováveis nas quais os salmos foram escritos e tentou estabelecer o significado original pretendido pelo autor. Teodoro também limitou bastante o número de textos do Antigo Testamento que falam de Cristo, o que lhe rendeu a acusação de “judaizante” (como também mais tarde seria acusado Calvino). Além disso, ele tentou explicar textos, como a alegoria feita por Paulo em Gálatas 4.21-31, e a alegoria de Zacarias a Zorobabel (Zc 4.6-10), defendendo a tese de que a Escritura é um texto de camadas superpostas, por isso tanto o significado da história, bem como do evangelho, devem ser preservados na interpretação. As aparentes discrepâncias ele atribui à linguagem hiperbólica dos escritores que encontra pleno conhecimento em Cristo. Portanto, apesar de ele aceitar o elemento tipológico na Bíblia e encontrar passagens messiânicas nos salmos, explicou a maioria delas do ponto de vista histórico.
João, o Crisóstomo (407 d.C.)
“Crisóstomo” significa Boca de Ouro, apelido que João recebeu depois de sua morte e que é justificado pelo seu extraordinário dom da oratória. Renunciou a carreira de advogado para tornar-se monge. Após alguns anos vivendo nas montanhas, entre monges, numa vida austera, a ponto de prejudicar sua saúde, voltou a Antioquia onde foi ordenado diácono (381), presbítero (386) e nomeado para o ofício de pregador, função que exerceu por doze anos (397). Sua fama de pregador cresceu tanto que foi obrigado pelo Imperador a aceitar o bispado de Constantinopla (398). Apesar da vida conturbada, fruto das polêmicas nas quais se envolveu e que resultaram num exílio, ele produziu uma vasta obra literária composta fundamentalmente de sermões, mas também de alguns tratados e consideráveis números de cartas.
As homilias de Crisóstomo versam sobre aspectos doutrinais, polêmicos e exegéticos. Nas exegéticas, ele comentou grande número dos livros da Bíblia procurando explanar o sentido histórico dos textos. Crisóstomo defendia o princípio de que leituras alegóricas ou místicas dos textos bíblicos só deveríam ser admitidas se os próprios autores as sugerissem. Desta forma, “seus sermões eram exegéticos e eminentemente práticos. Fascinava nele a compreensão simples e gramatical das Escrituras” (WALKER, 1983, p. 188).
2.2. Considerações
À luz do exposto, fica evidente que a Escola de Antioquia tinha sérias restrições à leitura alegórica, mesmo se tratando de tipologia. Por outro lado, eles estavam conscientes das dificuldades com algumas passagens, especialmente as profecias do Antigo Testamento, pois não podiam negar que o sentido literal-histórico, às vezes, apontava para um sentido mais elevado, o sentido anagógico (escatológico). Este sentido é denominado de theoria, termo que designava o “estado mental dos profetas, quando recebiam visões [...] é uma instituição ou visão pela qual o profeta pode ver o futuro através das circunstâncias presentes” (LOPES, 2004, p. 136). Este princípio permitiu aos exegetas antioquianos conceber um sentido mais elevado para certas passagens sem, contudo abrir mão da âncora do sentido literal. Lopes (Idem, p. 135-236) resume os princípios de interpretação de Antioquia nos seguintes tópicos:
1. Sensibilidade e atenção ao sentido natural do texto
Era uma abordagem que poderia ser chamada de "gramático-histórica". Esse termo só apareceu após a Reforma, mas os princípios que caracterizavam esse tipo de interpretação já estavam presentes em Antioquia: procurar alcançar o sentido do texto através da busca da intenção do seu autor considerando o contexto histórico em que foi escrito.
2. Desenvolvimento do conceito de theoria
Esse termo designava o estado mental dos profetas em que recebiam as visões, em oposição à alegoria. Era uma intuição ou visão pela qual o profeta podia ver o futuro através das circunstâncias presentes. Depois da visão, era possível para ele descrever em seus escritos tanto o significado contemporâneo dos eventos como seu cumprimento futuro. A theoria era o princípio usado pelos antioquianos para se descobrir um sentido além do literal nas palavras dos profetas do Antigo Testamento, permanecendo-se fiel ao seu sentido natural.
3. Não negavam o caráter metafórico de algumas passagens
Reconheciam que havia um sentido mais profundo nas profecias do Antigo Testamento e que havia tipologias, como a que Paulo fez em Gálatas 4.21-31. Entretanto, afirmavam a historicidade da narrativa veterotestamentária e procuravam em seguida descobrir o sentido teológico da mesma.
4. Buscavam determinar a intenção do autor
Isto era feito pela atenção cuidadosa ao sentido histórico das palavras em seu contexto original.
5. Eram contra descobertas arbitrárias de Cristo no Antigo Testamento
Tais como as feitas pela alegorese (alegoria) alexandrina. Concordavam que Cristo estava presente nas Escrituras do Antigo Testamento, mas reagiam contra a ideia de que cada palavra, evento, numero, personagem ou instituição poderiam ser interpretados de forma alegórica de modo à sempre se encontrar Cristo nelas.

Manual de Hermenêutica Bíblica
Me. Israel Sifoleli
Mestre em Ciências da Religião
Docente da Faculdade Latino-americana
(FLAM)



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quinta-feira, 18 de outubro de 2018

História da Igreja Primitiva: Definições e Razões Para Estudar a História da Igreja



            O que vem a ser “História da Igreja” e por que se deve estudá-la? Essas duas questões elementares deve ser sempre o ponto de partida de qualquer pesquisa ou estudo sério. Particularmente no que se refere à história da Igreja Cristã é muito importante termos em mente o que significa e quais as razões pelas quais devemos investir o precioso tempo em estudar seu desenvolvimento histórico. Entre tantas outras coloco apenas três definições do que vem a ser História da Igreja, por entender que elas abrangem os aspectos relevantes; em seguida verificaremos algumas distinções entre os vários termos ou terminologias envolvidas nesse estudo.
Definições
O lado espiritual da história dos povos civilizados desde a vinda do nosso Mestre” 
(H. M. Gwatkin).
A história da comunidade cristã e sua relação com o resto do mundo ao longo dos tempos” (A. M. Renwick).
A História da Igreja, então, é o registro interpretado da origem, progresso e impacto do cristianismo sobre a sociedade humana, baseado em dados organizados coletados por métodos científicos de fontes arqueológicas, documentárias ou vivas. É a história interpretada e organizada da redenção do homem e da terra” 
(E. E Cairns).
Distinguindo os Termos
Ainda que uma distinção deva ser feita entre os termos cristandade, cristianismo e igreja é preciso, entretanto, manter em mente que são termos intercambiáveis e permanentemente se relacionam em qualquer estudo sobre história da igreja.
Cristandade: Refere-se à influência da mensagem cristã que permeia uma sociedade. Isso estaria relacionado à cultura, especialmente no mundo ocidental. Houve um tempo em que a Europa esteve debaixo da influência da igreja cristã o que não significa que todos os governos ou cidadãos europeus fossem de fato e de verdade compromissados com a mensagem cristã. Um exemplo é o próprio Brasil que sofreu e ainda sofre uma influência cristã cultural, primeiro pelo catolicismo romano e posteriormente pelo protestantismo evangélico, o que não significou ou significa atualmente que todos os brasileiros são de fato compromissados com as verdades bíblicas.
Cristianismo: Aqueles países ou etnias em que a maioria de seus cidadãos faz uma profissão de fé cristã e estão inseridos em igrejas (organizações eclesiásticas) organizadas visíveis.
Igreja: A Igreja verdadeira e invisível é composta de todos os redimidos de Deus, independentes de localizações geográficas ou temporais, começando no dia de Pentecostes. Nem todos os estudiosos concordam que a igreja começou no dia de Pentecostes, pois foi gestada desde a eternidade,  mas a maioria vê a festa de Pentecostes como o início (nascimento) do pleno desenvolvimento da igreja. Todos os estudos teológicos distinguem entre a igreja verdadeira e invisível como um organismo, e a igreja professa e visível como uma organização.
Razões Para o Estudo da História da Igreja
A Importância do Trabalho Missionário: Na medida em que estudamos a  história da Igreja podemos perceber como a mensagem evangélica sai dos recônditos da Palestina judaica e alcança o mundo romano inteiro e tem chegado até os confins  da terra nestes mais de dois mil anos de existência da igreja. No aspecto negativo são também identificáveis os períodos em que indivíduos, grupos e movimentos falharam em sua fidelidade à Grande Comissão. Há longos períodos em que o esforço missionário foi esquecido.
O Desenvolvimento Doutrinário: Sabemos que Jesus Cristo não deixou uma única linha escrita, portanto, todas as doutrinas cristãs foram elaboradas no decorrer dos tempos. A definição do próprio cânon do Segundo Testamento foi definida oficialmente no século IV; o conjunto das doutrinas denominadas de ortodoxas foi definido após longos e até sangrentos Concílios cristãos, no transcorrer de vários séculos e posteriormente redefinidos no período da Reforma Protestante no século XVI. Apreender este aspecto da História da Igreja nos capacita com maior dose de precisão uma análise dos diversos sistemas doutrinários que permeiam as diversas formatações do cristianismo ao redor do mundo. Um exemplo clássico é o cristianismo Oriental e Ocidental em que afluem inúmeras semelhanças, mas se mantém também muitas distinções doutrinárias e eclesiásticas. Esse estudo das doutrinas não deve objetivar a radicalização e intolerância, mas deve contribuir para um alargamento da pacificação e tolerância com aqueles que pensam diferentemente. Foi nesse espírito que surge o termo “denominação” onde cada igreja denominacional tem suas definições doutrinárias peculiares, mas compactuam daquele conjunto de doutrinas eminentemente bíblica.  
Identificando as Heresias: Heresia aqui são todas as formulações doutrinárias ou teológicas que proliferaram em desarmonia com as formulações ortodoxas. É a grande oportunidade para uma análise da consistência das doutrinas cristãs e a percepção de que as “novidades” doutrinárias do presente são apenas reelaborações ou meras repetições das velhas “heresias” forjadas na bigorna da história da igreja cristã. Na medida em que se estuda estes desvios da ortodoxia teológica cristã é também a oportunidade para ratificar este conjunto de elaborações doutrinárias que tem permanecido norteando a igreja cristã em todos esses séculos.
Desenvolvimento da Organização Eclesiástica: A igreja cristã nasce de forma simples dentro do espírito comunitário. No livro de Atos temos uma self da simplicidade eclesiástica: apóstolos, presbíteros, diáconos. Sua liturgia conforme Lucas era: pregação apostólica, orações, ceia (partir do pão) e comunhão. Mas no desenvolvimento da igreja cristã sua organização interna vai se tornando cada vez mais complexas. A pequena e singela comunidade cristã vem a tornar-se uma organização poderosa, principalmente após a era do imperador romano Constantino. Ao estudarmos esse aspecto da história da igreja tomamos conhecimento de como as forma eclesiástica católica romana, luterana, episcopal, congregacional, presbiteriana e outras se desenvolveram. Também ajuda a entender a história do denominacionalismo, especialmente na América, onde existem uma pluralidade de diferentes grupos de cristãos professos.
Os Grandes Personagens: A história da Igreja é um registro de grandes homens e mulheres de Fé - teólogos, pregadores, leigos, etc. Grande parte da história da igreja é um estudo destes personagens e suas contribuições para o desenvolvimento da igreja cristã. Toda a ortodoxia e eclesiologia atual foram elaboradas e sustentadas por pessoas que deram suas próprias vidas em defesa delas. O contato com esses personagens, com suas qualidades e defeitos, deve acender em nós a chama de um zelo e valorização desta herança que recebemos, mas que em muitos momentos trocamos por um prato insignificante de lentilhas (como fez Esaú com sua progenitura) ou simplesmente jogamos fora de forma dissoluta (como fez o pródigo com a parte da herança recebida do pai). A pergunta: vale a pena lutar por esse conjunto de doutrinas ortodoxas hoje? A resposta fica mais clara e contundente quando conhecemos a vida daquelas pessoas que se gastaram e se deixaram gastar, em vários casos até à morte, em defesa destas verdades cristãs.
As Diversificadas Perseguições: As perseguições sofridas pelos cristãos e posteriormente pela igreja cristã ao longo dos séculos são páginas regadas por muitas lágrimas e sangue. Mas estas perseguições foram externas, como por exemplo as infligidas pelos imperadores romanos (lembrando que nem todos eles), mas também perseguições internas como as produzidas pela Inquisição Católica Romana, mas igualmente pelos diversos movimentos reformados, tais como os anabatistas que foram afogados de forma cruel. Ainda que repudiemos todas e quaisquer perseguições somos lembrados das palavras proferidas pelo próprio Senhor Jesus Cristo quando afirmou que o mundo odiaria o cristão e que os cristãos sofreriam muito por sua fé, certamente essas palavras de Jesus sustentaram e confortaram o coração de milhares e/ou milhões de cristãos em todo lugar e tempo e que foram e continuam sendo perseguidos e mortos por causa de sua fé cristã (como estão acontecendo na Coreia do Norte e nos países mulçumanos).  
Movimentos: Uma dos aspectos mais interessantes e que me atrai particularmente é o surgimento e desenvolvimento dos diversificados movimentos cristãos que surgiram dentro e fora da igreja organizada. Alguns desses movimentos foram importantes para reavivar as igrejas organizadas que estavam vivendo de forma letárgica e moribunda. Ainda que tantos outros movimentos tornaram-se perigosos e nocivos à vida da igreja cristã, ainda assim eles tornam-se relevantes, pois fizeram com que a igreja cristã reagisse, reafirmasse e valorizasse sua ortodoxia. O exemplo clássico é o movimento produzido por Macião, ainda no segundo século, que impactou todo o cristianismo da época e que forçou a igreja cristã a iniciar seu processo de estabelecimento de ortodoxia a começar pela definição do cânon do Segundo Testamento e a elaboração de um Credo básico da fé cristã, sintetizado no que passou a ser denominado de “Credo Apostólico”, não porque foi escrito pelos apóstolos, mas porque preserva a essência da pregação e ensino apostólico.
Efeitos na História Geral: A história humana jamais foi a mesma desde a entrada da igreja cristã no mundo. Inumeráveis vidas, povos e nações foram impactados e transformados pela mensagem poderosa da cruz. A educação cristã e as agências filantrópicas manifestam na prática o amor de Cristo no meio da sociedade humana, elevando muitos indivíduos e sociedades a um novo patamar moral.
Deus, em todas as gerações, transformou as pessoas com as boas novas de Cristo e nunca se deixou sem uma testemunha.

Quero concluir esse artigo introdutório com as palavras oportunas de Cairns:
 A História da Igreja fornece uma síntese do passado, uma explicação do presente, um guia para corrigir a conduta e motivos inspiradores para ilustrações boas e práticas para os pregadores e é um estudo libertador”.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas
BILHMEYER, Karl; TUECHLE, Hermann. Storia della Chiesa: 1-l. Brescia: Morcelliana, 1989.
BROWN, Peter. A ascensão do cristianismo no ocidente. Lisboa: Presença, 1999.
CAIRNS, Earle E., Christianity Through the Centuries, Revised & Enlarged Edition. Grand Rapids: Academie Books, a division of Zondervan Publishing House, 1954, 1981.
DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires. Tradução Emérico da Gama. São Paulo: Quadrante, 1988.
DANIÉLOU, Jean. MARROU, Henri-Irenée. Nova História da Igreja Vol. I: dos Primórdios a São Gregório Magno. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1966.
EUSÉBIO DE CESAREIA. História Eclesiástica. Tr. Monjas Beneditinas do Mosteiro Maria Mãe de Cristo. São Paulo: Paulus, 2000.
GWATKIN, Henry Melvill. Early Church history to A.D. 313. London: Macmillan and Co., Limited St. Martin’s Street, 1912. [v.1].
RENWICK, A. M. The story of the Church. B. Eerdmans Pub. Co., 1985.
RIBEIRO, Daniel Valle. Nero e o incêndio de Roma. Acessado em 05/10/2018 https://static1.squarespace.com/static/561937b1e4b0ae8c3b97a702/t/57274bb75559869e24624c7d/1462193082994/6_Ribeiro%2C+Daniel+Valle.pdf
SUETÔNIO. Os doze Césares. Tr. Gilson César Cardoso de Sousa. Guarulhos, SP: Germape, 2003.
TÁCITO. Anais. Rio de Janeiro: F.diouro, 1967 [Trad. de Leopoldo Pereira]. TERTULLIAN. Apologetic. Tr. Rev. S. Thelwall. In. SCHAFF, P. MENZIES, A. (Ed.) A select library of Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Tome I-3. Edinburgh: T&T Clark, 1887. pp. 19-79.
YANGUAS, Narciso Santos. Cristianismo e Imperio romano durante el siglo I. Madrid: Universidade de Ouviedo Servicio Publicaciones, 1994

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

As Primeiras Escolas de Interpretação - Escola de Alexandria



Ao iniciarmos nossa visão panorâmica da história da interpretação, deve ficar evidente que estamos delimitando o assunto aos intérpretes cristãos, já que nosso objetivo principal é conhecer o desenvolvimento da interpretação cristã. Outra delimitação necessária é de ordem cronológica, pois vamos examinar a história a partir do terceiro século. Certamente existe uma prática hermenêutica intensa antes das escolas de Alexandria e Antioquia que elegemos como o marco de nosso estudo, mas, salvo outro entendimento, é a primeira vez na história que se pode usar o termo “escola”.
1 - A Escola de Alexandria
A famosa cidade egípcia era considerada uma das maiores da Antiguidade, especialmente, pelo seu famoso Farol (uma das sete maravilhas do mundo antigo) e sua biblioteca (a maior do mundo antigo). Ali floresceu uma importante comunidade judaica que nos legou uma grande obra: a Septuaginta (tradução do texto hebraico para o grego). Quanto o evangelho chegou àquela cidade houve ampla aceitação, resultando em rápido crescimento da comunidade cristã. Alexandria ficou famosa pelo método alegórico de interpretação. É verdade que os seguidores dessa escola não ignoravam o sentido literal dos textos.
O método de interpretação consagrado em Alexandria tem suas raízes na filosofia grega. Podemos com certa convicção afirmar que pelos menos três filósofos influenciaram, direta ou indiretamente, esta escola. O primeiro é Heráclito (540—475 a.C.), que, para lidar com as dificuldades de uma abordagem literal às obras de Homero (A Ilíada e Odisseia), concebeu um sentido mais profundo de interpretação, que recebeu o nome de hiponóia. Outro filósofo que dá a sua contribuição a Alexandria é Platão (427-347 AC). Segundo ele, nosso mundo é uma representação do mundo perfeito (mundo das ideias). Por isso, as coisas do mundo material são reflexos (alegorias) dos conceitos e verdades espirituais do mundo das ideias. A terceira influência à escola de Alexandria foi o filosofo judeu Filo (20 AC e 50 DC). Ele foi sempre fiel às tradições judaicas nas quais fora criado, demonstrando grande apreço às Escrituras. Filo também admirava os escritos do Platão, seu grande herói, ao lado de Moisés. Por isso, se esforçou para conciliar os ensinos de Moisés com as ideias do filosofo grego. Nesta tentativa, lançou mão da alegoria (dizer uma coisa em lugar de outra)[1].
1.1. Principais Representantes
Clemente de Alexandria (150-215 d.C.)
Considerado uns dos primeiros a lidar seriamente com as questões da interpretação bíblica. Clemente de Alexandria entendia que as Escrituras tinham um sentido oculto que somente era revelado ao verdadeiro discípulo. Por isso, lançou mão da alegoria para descobrir as verdades ocultas e para harmonizar os dois Testamentos. Estabeleceu uma teoria que atribuía cinco sentidos às Escrituras (histórico, doutrinai, profético, filosófico e místico). Apesar disso, ele sempre privilegiou o sentido alegórico.
Orígenes (185-253 d.C.)
O notável sucessor de Clemente é considerado o maior erudito de seu tempo. Como Filo, entendia que a perspectiva platônica era a melhor maneira de entender a Bíblia. Reconhecia que o sentido literal era valioso, especialmente para os principiantes, mas às vezes podia dificultar uma compreensão mais espiritual das Escrituras. Também sob a influência da filosofia grega, ele enxergava nas partes constitutivas do ser humano (segundo ele: corpo, alma e espírito) uma analogia às Escrituras que teriam assim três sentidos: o corpo, o sentido literal, para os principiantes; a alma, o sentido moral, para os que progrediram um pouco; o espirito, o sentido alegórico ou místico, para os espirituais.
Vejamos alguns exemplos da interpretação alegórica, oferecidos por Lopes (2004, p.133):
*Rebeca vem tirar água do poço e encontra o servo de Abraão (Gn 24.15-17) - significa que diariamente devemos vir aos poços da Escritura para ali nos encontrarmos com Cristo;
*Faraó mandando matar os meninos e preservando as meninas hebreias (Ex 1.15-16) - os meninos significam o espírito intelectual e sentidos racionais enquanto que as meninas significam paixões carnais;
*As seis talhas de pedra, que os judeus usavam para as purificações (Jo 2.6), significam os sentidos moral e literal das Escrituras e às vezes, o espiritual;
*O sentido verdadeiro (alegórico) da passagem sobre o divórcio (Mt 19.6) é a separação da alma do seu anjo da guarda.
Parece-nos que, neste momento do nosso estudo, é necessário fazer uma tentativa de conceituar ou definir alegoria, mesmo que seja de maneira simplificada e provisória. Nos exemplos que estamos observando, alegoria é uma figura de linguagem que consiste na espiritualização da passagem. Na alegoria bíblica os fatos históricos, eventos e personagens são vistos com um sentido espiritual. O intérprete entende que o texto está dizendo “A” enquanto na verdade significa "B". Segundo a Wikipédia:
Uma alegoria (do grego allos, “outro", e agoreuein, “falar em público") é uma figura de linguagem, mais especificamente de uso retórico, que produz a virtualização do significado, ou seja, sua expressão transmite um ou mais sentidos que o da simples compreensão ao literal.
1.2. Considerações
A grande crítica ao método alegórico de interpretação da Escola de Alexandria consiste no fato de que foram abertas portas para que o exegeta pudesse interpretar o texto segundo sua conveniência, pois não foi estabelecido nenhum princípio regulador que governasse a exegese alegórica. Mesmo assim, não podemos ser simplistas e reduzir Alexandria a alegorias bizarras. É preciso reconhecer que os seguidores desta escola, geralmente, nutriam motivos considerados nobres, além de que muitos se tomaram notáveis pela erudição. As suas principais contribuições são:
*Preocupação pastoral. Os intérpretes de Alexandria adotavam a alegoria como uma tentativa de tomar o texto bíblico, especialmente o Antigo Testamento, um documento cristão, logo, relevante à Igreja. As Escrituras não eram apenas descritivas, mas também normativas. Toda ela deveria ser tomada como regra de fé e prática;
*Preocupação doutrinária. Alexandria procurou dar uma resposta aos judeus e a alguns heréticos que procuravam deturpar as Escrituras. Enquanto os judeus defendiam a ideia de que o Antigo Testamento era exclusivo para eles, havia aqueles, como Marcião, que não podiam conceber o mesmo Deus para o Antigo e para o Novo Testamento e, assim, rejeitavam quase por completo o AT. Coube, então, aos intérpretes alexandrinos o enfrentamento do desafio de harmonizar os dois testamentos.

Manual de Hermenêutica Bíblica
Me. Israel Sifoleli
Mestre em Ciências da Religião
Docente da Faculdade Latino-americana
(FLAM)

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Referências Bibliográficas
SIFOLELI, Israel. Manual de hermenêutica bíblica. São Paulo: Fonte Editorial, 2016.
DOCKERY, S. David. Hermenêutica Contemporânea à luz da Igreja Primitiva. Tradução Álvaro Hattnher. São Paulo: Vida, 2005 (pp. 73-123).
LOPES, Augustus Nicodemus. A bíblia e seus interpretes. São Paulo: Cultura Cristã (pp. 129-139).
HALL, Christopher A. Lendo as escrituras com os Pais da Igreja. Tradução Rubens Castilho. Viçosa (MG): Ultimato, 2000 (pp. 126-165).



[1] Para um estudo mais detalhado sobre Filo, ver LOPES, A. N. A Bíblia e seus intérpretes. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 83-96.

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Protestantismo: Verdadeiro Cristianismo (Johann Arndt)



É possível conciliar o mais alto grau de conhecimento teológico, com a mais profunda piedade? É possível, ainda que muito raro, pois uma grande maioria as vê como rivais. Muitos na medida em que sobem na escada do conhecimento teológico tem a tendência natural (soberba humana) de minimizar as manifestações emocionais decorrentes de uma vida piedosa. Por sua vez na mesma proporção em que outros descem as escadas da piedade, tendem a minimizar o conhecimento teológico mais elevado. Mas como todas as regras têm suas exceções, neste caso uma grande exceção foi Johann Arndt (1555-1621), que como podemos contemplar na diminuta galeria dos teólogos piedosos ou piedosos teólogos soube conciliar de forma equilibrada e sensata um conhecimento teológico do mais alto grau, com uma vida cristã da mais profunda piedade.
            Os dias de Johann Arndt são muito semelhantes aos nossos dias atuais. Naquele momento a igreja alemã pós reforma protestante havia sistematizado sua teologia. A sistematização teológica em si não é um problema, todavia, como acontece consequentemente, o conhecimento teológico paulatinamente começa a se desconectar de uma prática cristã vivencial, que comumente denominamos de vida cristã piedosa. Como todos os dogmas teológicos já estão elaborados, definidos e corroborados pelo ensino bíblico, há um relaxamento natural de maneira que as práticas religiosas tornam-se comuns e rotineiras.
            Na medida em que o tempo vai passando esta acomodação vai se transformando em um relaxamento e displicência para com a devocional e prática individual da vida cristã. O conhecimento teológico vai assumindo o controle na mesma proporção em que a vida devocional vai sendo minimizada e colocada no rodapé da vida religiosa.
            Poucos são aqueles que conseguem perceber este movimento dicotomista, pois é um processo tão lento que se torna quase que imperceptível, a não ser quando a ruptura torna-se cristalizada em uma ortodoxia fria e inexorável. Johann Arndt, juntamente com alguns poucos contemporâneos, conseguiram perceber esta desconexão entre uma teologia correta e uma prática cristã coerente e vivificante; entre uma pregação teológica, exegética, hermenêutica e homileticamente correta e uma vida cristã que expressasse com a mesma intensidade todo esse conhecimento ortodoxo.
            Os compêndios teológicos e as elaborações das Confissões de Fé são necessários e precisam ser cuidadosamente elaborados, para que o ensino bíblico não se perca em meio ao mar de ideias e conceitos opostos e contraditórios aos princípios bíblicos. Todavia, igualmente fundamental e manter viva a prática devocional que aqueça o coração e a alma e disponha o crente a vivenciar intensamente suas convicções cristãs no meio da sociedade, de maneira que outras vidas possam ser tocadas e transformadas.
            Uma teologia e ortodoxia que mantém o cristão preso em seus calabouços torna-se perigosa e anticristã. A genuína teologia e ortodoxia têm que ser libertadora – têm que convulsionar o cristão a viver suas verdades cristãs nas entranhas da sociedade, para que se possa em contato direto, assim como o sal, impedir sua deterioração e consequente podridão.  A teologia e ortodoxia sadia e abençoadora é aquela que produz contrações uterinas cada vez mais fortes, até que o cristão seja expulso para fora da segurança de suas instituições e zonas de conforto e tomem contato direto com a sociedade – de maneira que sua luz possa brilhar em meio às tensas trevas. Uma teologia e ortodoxia coerentemente é aquela que prepara o crente para manter seu estandarte erguido e tremulante em meio a este mundo tenebroso, mesmo que isso lhe custe tudo (família, bens, prazer - hino Lutero).
            Diante de um quadro eclesiástico onde a ortodoxia se tornou estéril de uma prática vivificadora surge a proposta de Johann Arndt e alguns outros de resgatar as práticas devocionais cristãs, no fluxo de um movimento cristão holandês denominado de Precisionismo, que antecede e vai inspirar outros movimentos espirituais muito maiores e mais amplos em suas repercussões geográficas.  A sua obra que passaremos a abordar nesta série de artigos (Verdadeiro Cristianismo e/ou Quatro Livros do Verdadeiro Cristianismo) se constituiu em livro de cabeceira de milhares de cristãos na Alemanha e Holanda e em muitos outros países de fé cristã reformada e até mesmo em espaços católicos romanos. Seu livro influenciou centenas ou milhares de lideranças evangélicas extrapolando as fronteiras geográficas e temporais, sendo um dos motores propulsores do grande movimento interdenominacional[1] que ficou conhecido como Pietismo na Alemanha e Holanda e Puritanismo na Inglaterra e posteriormente na América do Norte e cujas ondas continuaram sendo emitidas e pôde ser sentida, sem a mesma originalidade e intensidade, na implantação do protestantismo no Brasil, através de suas vertentes presbiteriana, metodista e congregacional, mas pelo viés americano e não de suas fontes originais. O jovem missionário presbiteriano estadunidense A. G. Simonton, que transplantou o protestantismo presbiteriano para o nosso país, manteve por toda sua vida um diário (prática pietista) onde registra muitos de seus conflitos espirituais e revelam seu zelo por uma vida devocional pessoal intensa e continua. Até recentemente, década de setenta e meados de oitenta, os evangélicos brasileiros eram incentivados à pratica de uma devocional pessoal e diária (bem como os cultos domésticos). Tudo isso desapareceu na mesma proporção em que a pseuda teológica da prosperidade assumiu a prioridade na vida eclesiástica e pessoal da maioria dos evangélicos contemporâneos.
Quem foi Johann Arndt?
Ele nasceu em 27 de dezembro de 1555, na aldeia Anhalt Edderitz em Köthen, o filho de um pastor (Jakobus Arndt)[2] e cresceu em Ballenstedt / Anhalt (Alemanha) e faleceu em 1621 (aos 63 anos). Foi um dos maiores teólogos luterano alemão tendo estudado em várias universidades importantes (Helmstedt, Wittenberg, Basel e Strasbourg). Foi pastor em Ballenstedt, Bernburg, Badeborn, Quedlinburg e Brunswick.  Ele estava em Helmstadt em 1576; em Wittenberg em 1577 onde e quando eclode a controvérsia cripto-calvinista,[3] e na qual ele tomou o lado de Melanchthon[4] e dos cripto-calvinistas. Ele continuou seus estudos em Strassburg, sob a orientação do professor de hebraico, Johannes Pappus,[5] um zeloso luterano, e que exerceu grande influência sobre ele.
Em Basileia ele vai estudar teologia recebendo orientação docente de Simon Sulzer,[6] que tinha como grande desafio conciliar as igrejas das confissões Helvéticas e Wittenberg. Em 1581 Arndt retorna para Ballenstedt, mas logo foi chamado para assumir o pastorado em Badeborn em 1583. Depois de algum tempo suas tendências luteranas o expuseram a despertar a ira das autoridades, que eram da Igreja Reformada. Foi deposto de suas funções pastorais em 1590, mas encontrou acolhimento em Quedlinburg (1590), e depois foi transferido para a igreja de St. Martin em Brunswick, em 1599. A fama de Arndt se baseia em seus escritos. Estes eram principalmente de tipo místico e devocional, e foram inspirados por Bernardo,[7] J. Tauler[8] e Thomas Kempis.[9]
Seu livro, Verdadeiro Cristianismo (Wahres Christentum - 1606-1609),[10] foi traduzido para a maioria das línguas europeias, serviu de base para muitos livros de devoção, tanto católicos quanto protestantes.[11] Arndt trata sobre a união mística entre o crente e Cristo, e seu desejo é chamar a atenção para Cristo que habita em Seu povo, em contraponto a ênfase então majoritária e puramente forense da teologia da reforma. Arndt era um clérigo popular que falava a linguagem popular. Ele pregava a todos indistintamente e dizia que o inferno era para pobres e para ricos. Sua postura, pregação e ênfase na vida cristã devocional angariaram para Johann Arndt muitos adversários. Ele não pregava o que as pessoas “esclarecidas” desejavam ouvir. Esse conflito chegou ao auge onde seus sermões e sua conhecida obra "Verdadeiro Cristianismo" foram queimadas em fogueiras públicas (lembrando o velho filme da Inquisição Católica Romana).
Ele publicou uma edição do pequeno livro Teologia Alemã, onde procura esclarecer e enfatizar sua proposta em um prefácio especial. Depois de Verdadeiro Cristianismo, sua obra mais conhecida é o “Jardim do Paraíso de todas as virtudes cristãs” (Paradiesgartlein aller christlichen Tugenden), que foi publicada em 1612. Vários de seus sermões são publicados na obra de R. Nesselmann. Arndt é chamado carinhosamente de “avô do pietismo” e Philipp Jakob Spener, pai do pietismo, repetidamente chamou a atenção para Arndt e seus escritos, e chegou a compará-lo com Platão.
Hoje Arndt é um grande desconhecido, todavia para aqueles que se disponha a pesquisar apenas um pouco mais descobrirá cada vez mais que Amdt é a figura mais influente do protestantismo luterano desde os dias da Reforma.
Um cristão, pelo menos por um dia,
deve se afastar de todas as coisas externas
e entrar no fundo do seu coração
(Do verdadeiro cristianismo)

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
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Referências Bibliográficas
ARNDT, Johann. True christianity – on sincere repentance, true Faith, the holy walk of the true christianDisponível em https://archive.org/stream/truechristianity34736gut/34736-pdf. Acesso em: 20/12/2015.
COSTA, Hermisten Maia Pereira da. Ortodoxia protestante – um desafio à teologia e à piedade. Fides Reformata 3/1 (1998). Disponível em: http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/revista/VOLUME_III__1998__1/ortodoxia....pdf. Acesso em: 17/11/2015.
_____________________________. Pietismo – um desafio à piedade e à teologia. Fides Reformata 4/1 (1999). Disponível em: http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/revista/VOLUME_IV__1999__1/Hermisten.pdf. Acesso em: 20/11/2015.
_____________________________. Raízes da teologia contemporânea. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
GONZALES, Justo. A era dos dogmas e das dúvidas. Tradução Carmella Malkomes. São Paulo: Edições Vida Nova, 1984.
_______________ (Editor). Dicionário ilustrado dos interpretes da fé. Tradução Reginaldo Gomes de Araújo. São André (SP): Editora Acadêmica Cristã Ltda., 2005.
LINDBERG, Carter. (Editor) The Pietist – an introduction to theology in the seventeenth and centuries.USA: Blackwell Publishing Ltd, 2005.
MATOS, Alderi Souza de. Fundamentos da teologia histórica. São Paulo: Mundo Cristão, 2008. (Coleção teologia brasileira).
MENDONÇA, Antônio Gouvêa de. O celeste porvir – a inserção do protestantismo no Brasil. São Paulo: Paulinas, 1984.
SILVA, Geoval Jacinto da. Educação teológica e pietismo – a influência na formação pastoral no Brasil 1930-1980. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, Editeo, 2010.
SCHULER, Arnaldo. Dicionário enciclopédico de teologia. Canoas: Ed. ULBRA, 2002.
STOEFFLER, F. Ernest. German pietismo during the eighteen century. Leiden: Department of Religion Temple University, 1973.
TILLICH, Paul. Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX. Tradução: Jaci C. Maraschin – 2ª ed. São Paulo: ASTE, 1999.
WALKER, W. História da Igreja cristã, v. 2. São Paulo: ASTE, 1967.




[1] Termo utilizado para se referir algum tipo de movimento evangélico que não distingue denominação; que não é exclusivo de uma igreja – é o caso dos movimentos como o Precisionismo holandês, pietismo alemão e o puritanismo inglês – que permearam todas as denominações evangélicas da época.
[2] Seu pai era originalmente de Köthen e se mudou com sua família em 1558 de Edderitz para Ballenstedt para assumir o pastorado. Ele morreu em 1565.
[3] Cripto-calvinismo é um termo pejorativo para se referir a um segmento de membros alemães da Igreja Luterana acusados de secretamente convencionarem a doutrina calvinista da Eucaristia nas décadas imediatamente após a morte de Martinho Lutero em 1546.
[4] Fhilipp Melanchthon (em português: Filipe Melâncton – 1497-1560) foi um reformador alemão e profícuo colaborador de Lutero, redigiu a “Confissão de Augsburgo” (1530) e converteu-se no principal líder do luteranismo após a morte de Lutero. Se esforçou ao extremo para conciliar as divergências eucarísticas entre os reformados, mas não alcançou sucesso.
[5] Chefe dos luteranos em Estrasburgo; 1568-1578 professor de língua hebraica a. História na Academia em Estrasburgo, 1570-78, Freiprediger em Estrasburgo, 1578-1610 Prof. Teologia na Academia e Pastor em Estrasburgo, 1582-1610 Presidente da Convenção da Igreja Luterana.
[6] Simon Sulzerus Bernensis (1508-1585) foi um teólogo, reformador e líder da Igreja de Basileia. Em 1536 faz sua preferência pela teologia de Lutero, que vem a conhecer em Wittenberg, em 1538, tendo a figura do reformador o impressionado muito. Ele se esforçou muito para conseguir a reconciliação entre as igrejas da Alemanha e da Suíça, embora mantivesse uma distância relativa entre as posições mantidas pelos seguidores de Zwingli e de Calvino.
[7] Bernard de Clairvaux (1090-1153) foi um abade francês e um importante líder na reforma do monaquismo beneditino que causou a formação da ordem cisterciense . Seus escritos influenciaram milhares de cristãos e movimentos posteriores.
[8] Johannes Tauler (1300 - 136), também conhecido como John Tauler, foi um sacerdote e místico alemão, nascido em Estrasburgo. Ele pertencia à ordem dominicana e era um pregador prolífico. Juntamente com seu amigo e contemporâneo Henry Suso, ele foi um dos triunviratos de pensadores pertencentes à escola Rhineland, também chamada de escola Rheno-Flamenga, da qual Meister Eckhart foi o fundador e proponente supremo. Ele não deixou nenhum livro escrito, porém seus sermões foram colecionados e editados se tornando extremamente populares e sendo considerados os mais nobres da língua alemã e eram intensamente práticos, tocando de todos os ângulos os problemas mais profundos da moral e da vida espiritual.
[9] Monge e escritor alemão, Tomás de Kempis nasceu em 1380, em Kempen, na Renânia do Norte (perto de Colónia), faleceu a 24 de julho de 1471, no Mosteiro de Santa Inês. Tomás de Kempis produziu cerca de quarenta obras que tranquilamente encontram ressonância na literatura devocional moderna. Destaca-se o seu livro mais célebre, Imitação de Cristo, composto por quatro volumes, no qual apela a uma vida seguida no exemplo de Cristo, valorizando a comunhão como forma de reforçar a fé.
[10] Após a morte de Arndt, um quinto e um sexto livro foram adicionados de seus escritos e cartas menores, de modo que o título agora se lê Seis Livros do Cristianismo Cristão. A cada edição ilustrações e orações foram agregadas que a extensão inicialmente pequena cresceu até o imponente tamanho de mil páginas e se tornou um livro da casa cristã, que ficava ao lado da Bíblia em suas estantes.
[11] Os primeiros emigrantes alemães para a América do Norte tinham o Verdadeiro Cristianismo em suas bagagens. Quando as cópias acabaram houve solicitações por uma nova condição. Com centenas de inscritos, Benjamin Franklin, originalmente um impressor, organizou uma nova edição na Filadélfia em 1751. O Cristianismo Verdadeiro de Arndt foi o primeiro trabalho impresso em alemão no novo mundo. Um tesouro bibliófilo é a tradução de Tantil do Verdadeiro Cristianismo na índia, escrita em folhas de palmeira.