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terça-feira, 29 de maio de 2018

Que estou fazendo se sou cristão: Música de Protesto ou Evangelho?



            A música sempre foi um instrumento pedagógico fundamental para propagar uma mensagem. Na bíblia cristã encontraremos o Saltério composto por 150 salmos e nos quais encontramos o caminho para um relacionamento saudável e positivo com Deus. Jesus e seus discípulos cantavam estes salmos; o apóstolo Paulo exorta seus leitores efésios para que cantem hinos e salmos e cânticos espirituais deixam clara a importância da música na liturgia cristã primitiva; ao longo dos séculos os cristãos continuaram compondo suas músicas expressando sua fé e princípios bíblicos. Na Reforma Religiosa e/ou Protestante do século XVI a música se faz presente, principalmente com Lutero que além de incentivar a produção musical ele próprio compôs um dos mais belos hinos reformado - Castelo Forte - que até hoje é cantado nas igrejas reformadas.
            O protestantismo demorou quase trezentos anos para ser implantado no Brasil. Somente no final dos oitocentos começaram a chegar os primeiros missionários de profissão de fé reformada, dentre os pioneiros estão o casal Robert Reid Kalley e Sarah Poulton Kalley, ele além de pastor/missionário era médico e ela professora, missionaria, poetisa e musicista. Eles tiveram o cuidado e o privilégio de editar o primeiro hinário de música protestante no país denominado de “Salmos e Hinos”. A Primeira edição foi impressa na Tipografia Universal de Laemmert, em 1861, no Rio de Janeiro, continha apenas 50 Cânticos e foi usado pela primeira vez em 17 de novembro de 1861(seis anos depois da chegada deles ao Brasil) em um culto na Igreja Evangélica, que posteriormente agregou o nome Fluminense. Este hinário foi utilizado por praticamente todas as denominações evangélicas protestantes que aqui aportaram, dentre as quais os congregacionais, presbiterianos e metodistas[1]. Hoje com mais de cento e cinquenta anos, e com mais de 500 hinos é considerada uma das mais belas coleções de hinos já produzida para o seguimento cristão-protestante do Brasil.
            Tanto os hinos dos reformadores quanto o hinário protestante em pleno país “católico” são subversivos, pois sua mensagem confronta o status quo da maioria. No final dos anos cinquenta e inicio dos anos sessenta uma parte dos evangélicos protestantes, composta por uma ampla maioria de jovens anseiam por mudanças profundas em suas respectivas denominações. Um dos instrumentos para manifestar seus anseios e criticas às situações por eles contestadas é a música. Surge um forte movimento musicista evangélico, onde teólogos e músicos se unem em composições que incorporam a musicalidade brasileira ao canto cristão e cujas letras expõem criticas à letargia teológica e à passividade político-social do evangelicalismo nacional. Evidente que toda ação gera uma reação, ainda mais que esta vigente no país um governo militar endossado pela maioria das lideranças denominacionais brasileira. Essa nova musicalidade evangelical fica então entre a cruz e o fuzil.
            É neste contexto que surge a letra e a música do cântico “Que estou fazendo se sou cristão”, letra de João Dias de Araújo e música de Décio Emerique Lauretti. A letra contém um forte tom de desafio e apelo para que os evangélicos assumam seu papel de agente do Reino de Deus, embalada por uma melodia com sonoridade e ritmo tipicamente brasileiro, distinto dos hinos tradicionais, cujas melodias eram europeias ou americanas e que eram entoados repetidamente por mais de um século nas reuniões litúrgicas protestantes confortavelmente inseridas no tecido social-politico-econômico brasileiro, assim como Ló havia se inserido comodamente na sociedade de Sodoma e Gomorra.
Letra: João Dias de Araújo[2]
            Esse evangélico protestante nasceu em 1931 na cidade e Campinas (SP), pois seu pai cursava teologia no Seminário Presbiteriano. Posteriormente, década de quarenta, o jovem retornaria à cidade para igualmente cursar teologia visando exercer o oficio de pastor na Igreja Presbiteriana do Brasil.
            Concluído seu curso teológico e submetido aos procedimentos regimentais da IPB foi ordenado pastoreando por sete anos a IPB de Itacira, no Presbitério de Campo Formoso, no centro geográfico da Bahia, onde desenvolve um ministério pastoral e docente de qualidade. Escritor profícuo torna-se articulista de diversas publicações sendo que seu artigo sobre os Manuscritos encontrados na região do Mar Morto foi o primeiro sobre esse tema a ser publicado em português por um pastor nacional.
            Recebeu o convite do órgão maior da IPB, o Supremo Concílio, para assumir a cátedra de professor de Teologia Sistemática e Ética Cristã no Seminário Presbiteriano do Norte,[3] localizado na cidade de Recife (PE),[4] nos anos 50 e 60. Com o advento do Golpe Militar de 1964 foi classificado como um teólogo revolucionário, sendo perseguido por seus próprios pares presbiterianos e posteriormente exonerado de todas suas funções eclesiásticas na IPB. Em seu livro “Inquisição Sem Fogueira[5] ele narra toda sua trajetória dentro da instituição Presbiteriana e os acontecimentos anteriores e posteriores ao Golpe Militar no Brasil.
            Em 1967, em pleno regime militar no Brasil, João Dias de Araujo, então com 36 anos, fazendo mestrado em Princeton, EEUU, foi desafiado pelo maestro João Wilson Faustini a compor um hino que tratasse da realidade brasileira e desafiasse os evangélicos a tomarem uma atitude bíblica diante da situação caótica do país. Nasce então a letra do cântico Que estou fazendo?" conhecido mais pela primeira linha do poema "Que estou fazendo se sou cristão?, que veio a ser inserido em diversos cancioneiros denominacionais e gravado por diversos cantares evangélicos nacionais.[6]
            A letra retrata o compromisso cristão contra a injustiça e a opressão gerada pela desigualdade social. Como não poderia ser o compositor sofreu muitas críticas por causa desta composição, tanto por parte dos evangélicos como de outros segmentos sociais. Foi classificado como comunista, de esquerda, e outros substantivos e adjetivos não declaráveis.
A letra abaixo citada na integra reflete com muita propriedade e de forma crítica a triste realidade social da época, ao tratar da imensa população de pobres, ao enfocar uma salvação que leva o indivíduo a ser parte do projeto divino que combate toda forma de opressão e injustiça, trazia a lume os principais temas tão extraordinária e apaixonadamente proclamada pelos profetas do Primeiro Testamento e certamente seria cantado por Jesus e os cristãos do primeiro século, mas certamente, como foi totalmente repudiado pela igreja institucionalizada e hedonista de ontem e de hoje, que jamais permite sair de sua zona de conforto religioso-eclesiastico.
Música: Décio Emerique Lauretti
            Evangélico presbiteriano nasceu aos 28 de novembro de 1950 em Casa Branca, uma pequena cidade no interior de São Paulo, filho de Rogério Lauretti e Nilda Emerique Lauretti. Entre seus parentes havia professores, pastores e escritores. A mãe era organista da igreja presbiteriana, o pai, bancário, tocava violino e regia o coral. A mãe lhe ensinou as primeiras notas ao piano, depois estudou com um velho professor de Casa Branca.
            A família muda-se em 1962 para a capital paulista, nas proximidades da IPB da Vila Mariana, na qual um tio era regente do coral. Aos treze anos entra para o Coral Evangélico de São Paulo, ao quatorze começa a tocar os hinos nas reuniões das quartas-feiras.[7] Décio aos quinze anos tem suas primeiras aulas de órgão como o maestro evangélico Samuel Kerr e também foi aluno de Ângelo Camin então organista do Teatro Municipal de São Paulo.
            Seu ‘primeiro e principal amor’ foi a música barroca, particularmente J.S. Bach. Mas aos dezoitos anos é tomado pelo desejo de fazer música sacra com estilo e sonoridade brasileira. Naqueles dias as musicas evangélicas eram todas traduzidas do inglês.
            Inicia suas experiências musicais com os poemas de Gióia Jr. utilizando os ritmos de samba, baião, cantigas bem brasileiras. Uma das maiores incentivadoras desta iniciativa de se produzir musica evangélica à brasileira foi a missionária presbiteriana Norah Buyers de indiscutível capacidade musical. De iniciativa dela foi publicada a coletânea “Nova Canção”, pela Imprensa Metodista, com 13 composições de Décio Lauretti.
            Em 1971 produziu uma Cantata de Natal, com acompanhamento de órgão e percussão, onde pela primeira vez se viu atabaque, triangulo, agogô acompanhando musicas evangélicas nos templos. Na Páscoa de 1973 compõe uma Cantata cujas letras tecem fortes criticas social no auge do Regime Militar.
            Mas será somente em 1974 que ele vai tomar contato com a letra produzida por João Dias. Imediatamente se identifica com a composição e opta por uma sequencia barroca harmônica utilizando um ritmo brasileiro, o baião. Ele mesmo narra como aconteceu o contato e musicalidade do hino:
 ... os textos de Rubem Alves (ainda hoje um amigo querido), os textos de John Robinson, Tillich, Bonhoefer e tantos outros sedimentaram em mim uma visão menos conservadora do que a então vigente na Igreja Presbiteriana do Brasil, tornando incômoda minha permanência na instituição.
Passamos a freqüentar igrejas mais pobres, ligadas ao Presbitério São Paulo, dissidente da IPB. Levávamos ‘nossa música’ para outros lugares para outras denominações. Atuávamos na ABU (Aliança Bíblica Universitária), onde fiz amizade com anglicanos, católicos, etc.
A música “Que estou fazendo” é produto da época da ditadura militar. Tomei conhecimento do poema do Rev. João Dias de Araújo e fiquei muito impressionado pela firmeza das suas palavras. Pregava um cristianismo engajado na luta contra as injustiças, distante da religião enclausurada nos templos, que busca a ‘salvação da alma’ e ignora o corpo, especialmente os corpos dos desfavorecidos. Decidi musicá-lo, optando por uma sequência harmônica barroca num ritmo brasileiro, o baião.
            Por sugestão de seu primeiro Secretário Geral o Rev. Jaime Wright, quando da fundação oficial da Igreja Presbiteriana Unida (IPU), uma ruptura da Igreja Presbiteriana do Brasil, a letra do Rev. João Dias com a melodia de Décio Lauretti  tornou-se o hino oficial da instituição, de maneira que a canção assumiu uma proporção nacional. Quando foi fundada a Igreja Presbiteriana Unida (IPU), seu primeiro Secretário Geral foi o Rev. Jaime Wright. Por sugestão dele, o poema do Rev. João Dias de Araújo com a melodia de Décio Emerique Lauretti tornou-se o hino oficial da instituição, o que foi determinante para a sua ampla difusão no país.[8]
Atualmente esta canção aparece em hinários de várias Igrejas evangélicas. Sua letra e música continuam vivas e atuantes e certamente seria de grande valia se os evangélicos brasileiros pudessem canta-la e vivencia-la. Certamente é disso que o Brasil necessita urgentemente, de um evangelicalismo sintonizado com a realidade do país e dispostos a encarnar o Evangelho vivo e vivificante de Jesus Cristo.
Que estou fazendo?
1. Que estou fazendo se sou cristão?
Se Cristo deu-me o seu perdão?
Há muitos pobres sem lar, sem pão,
há muitas vidas sem salvação.
Meu Cristo veio p'ra nos remir:
o homem todo, sem dividir,
não só a alma do mal salvar,
também o corpo ressuscitar.
2. Há muita fome no meu país,
há tanta gente que é infeliz,
há criancinhas que vão morrer,
há tantos velhos a padecer.
Milhões não sabem como escrever,
milhões de olhos não sabem ler.
Nas trevas vivem sem perceber
que são escravos de outro ser.
3. Aos poderosos eu vou pregar,
aos homens ricos vou proclamar
que a injustiça é contra Deus
e a vil miséria insulta os céus.
Meu Cristo veio p'ra nos remir:
o homem todo, sem dividir,
não só a alma do mal salvar,
também o corpo ressuscitar.
link para áudio

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Reflexão Bíblica
http://reflexaoipg.blogspot.com.br/


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Referências Bibliográficas
Nos artigos relacionados acima o leitor encontrara ampla bibliografia sobre o período e temas mencionados no transcorrer do artigo.



[1] Posteriormente cada denominação foi, a partir do “Salmos e Hinos”, elaborando seus próprios cancioneiros dentro de suas respectivas vertentes teológicas.
[2] O Rev. João Dias de Araújo foi teólogo, advogado e hinógrafo, um dos fundadores da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil, uma dissensão da Igreja Presbiteriana do Brasil na década de 1980. Foi fiel colaborador de todos os organismos ecumênicos mundiais (CLAI e CMI). Exerceu boa parte do seu tempo pastoral junto a Igreja Presbiteriana em Feira de Santana, Bahia. Fez pós-graduação no Seminário Teológico de Princeton, nos EE.UU. da América, e bacharelou-se em Direito, em Recife. Assumiu como diretor do Colégio 2 de Julho, em Salvador, BA, talvez o educandário evangélico mais conhecido no nordeste do País. Muito conhecido como conferencista e professor de Bíblia, em 1982 foi responsável por um novo projeto de educação teológica para leigos no Estado da Bahia. Publicou vários livros. Faleceu no dia 9 de fevereiro de 2014.
[3] Naquele momento a IPB tem apenas dois Seminários o de Recife (Norte) e o de Campinas (Sul). Um terceiro será instalado nas comemorações do primeiro Centenário do Presbiterianismo no Brasil, mas ironicamente o Seminário do Centenário não durará nem ao menos uma década, pois será fechado pela direção da IPB.
[4] Não por acaso a quarta e infelizmente a última das Consultas promovidas pelo Setor de Responsabilidade Social da Confederação Evangélica do Brasil (CEB), nominada de Conferência do Nordeste, foi realizada na cidade de Recife, que naquele momento era um triste modelo de toda sorte de miséria e abandono das políticas públicas, que se multiplicava em toda geografia brasileira. Foi realizada em 1962, portanto imediatamente após a industrialização promovida por JK e às portas do golpe militar que ocorreria em 1964, e esta Conferência trazia um tema explosivo naquele momento histórico, “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro”.  
[5] Link para o livro em pdf - file:///C:/Users/Windows/Downloads/Inquisicao_sem_fogueiras.pdf
[6] Abaixo da letra completa do hino está o link para uma das suas diversas gravações.
[7] Ele recorda: “Toquei numa igreja pela primeira vez no jubileu de 50 anos de pastorado de meu avô materno Theodomiro Emerique. Eu tinha seis anos de idade, minha mãe sentou-me ao seu colo no harmônio da igreja e, com ela pedalando os foles, toquei um hino dos ‘Salmos e Hinos’ que ela havia me ensinado.”
[8] Há poucos anos, a música foi incluída na Campanha da Fraternidade da Igreja Católica Romana, sendo distribuída nas igrejas em texto e gravada em CD.

Um comentário:

  1. Há uma incorreção histórica no texto. O Rev. Jaime Wright foi mesmo o primeiro Secretário Geral da IPU, porém, a proposta para esse fosse o hino da IPU foi feita pelo Rev. Márcio Moreira, pastor da II Igreja Presbiteriana de Belho Horizonte, na Assembleia da IPU realizada em 1985. E foram oficializadas as duas versões, a primeira, um negro "spiritual", com a melodia de João Wilson Faustini, e a segunda, com a melodia de Décio Lauretti.

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