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quinta-feira, 14 de maio de 2020

Calvino e a Importância da Música (1ª Parte)



            É geralmente tomado como fato que a Reforma era hostil a todas as formas de artes e ofícios; que era um movimento intelectual frio, austero e que procurava acabar com a arte e a beleza e estabelecer uma conformidade cinzenta em toda a Europa. Calvino, em particular, é visto como o amargo inimigo da arte e do prazer estético, mostrando não apenas uma mera falta de interesse pelas artes, mas se opondo a elas vigorosamente como as ferramentas do diabo. Mas os fatos demonstram que não passa de uma grande falácia.
            A maioria das críticas a Calvino são decorrentes da extrema ignorância de seus críticos sobre o trabalho realizado por esse reformador. Tais críticos nem ao menos se deram ao trabalho de ler na integra, assim como a maioria dos que se dizem calvinistas, de sua obra magna as “Institutas da Religião Cristã”, e seus comentários bíblicos, que no Brasil demorou quase um século e meio para ser traduzida em português, após a implantação do protestantismo calvinista no país no final dos oitocentos.
 Evidentemente que nem Calvino e nem suas obras são inspirados, caso contrário ele deveria ser canonizado e suas obras inseridas ao cânon das Escrituras. Nem mesmo os largos elogios que lhe são feitos por seus admiradores seriam por ele endossado, pois ele sabia o quanto era pecador e dependente permanentemente da graça de Deus. Sua teologia e seus comentários são devedores a todos aqueles que o antecederam e que batalharam permanentemente pela fé genuína que emana unicamente das Escrituras, que se constitui na verdadeira tradição reformada.
Uma das críticas mais ferinas e injustas sobre Calvino é que ele e sua teologia eram nutridos por um intelectualismo-teológico antiartístico. Essa alcunha pejorativa foi impressa de tal forma em Calvino que as pessoas passaram a ter uma aversão permanente de tudo que se pareça com calvinismo.
Muitos fazem concessões a Lutero, alegando que ele tinha um veio artístico e apoiou as artes em seu processo de reforma religiosa. Mas quando se referem a Calvino os termos são contundentes e implacáveis: “altivo e cruel”, “o mais fanático dos líderes da Reforma”, “o mais implacável dos iconofóbicos”,[1] e responsável por fazer “de uma só vez secar o coração e a alma”[2]. Na Inglaterra, John Pyke Hullah participou de um ciclo de palestras no Instituto Real, no qual afirmou que “Calvino, ao contrário de Lutero, parece nunca ter reconhecido a música como um meio de expressão religiosa, dificilmente para tê-lo apreciado como um auxílio à devoção” (1875, p. 57-58). M. Douen um pastor protestante, em seu trabalho sobre Saltério Huguenote Francês revela um viés indisfarçável contra Calvino em suas duras palavras: "O Papa de Genebra... um inimigo de todo prazer e distração, mesmo das artes e da música". E não satisfeito ele continua: “Calvino é do tipo dogmatismo autoritário, antiliberal, antiartístico, anti-humano e anticristão” (1878-79, I, 377). Se tais definições partem de personas protestantes, não se deve deixar impressionar as opiniões daqueles que não referendam a religião, como o caso do líder revolucionário francês Voltaire que em sua passagem por Genebra a descreve como uma cidade em que as pessoas “nunca podem sorrir”, cujos cânticos extraídos do saltério bíblico são “versos miseráveis” e seus pregadores são do tipo “monótono e mortal” e conclui que os semblantes dos cidadãos genebrinos são tristes. O padre católico Mainbourg descreve o calvinismo como uma religião seca que é um reflexo do temperamento do próprio Calvino (cf. DOUMERGUE, 1977). Seria de fato Calvino merecedor destas definições tão implacáveis? O que ele pensava sobre a arte e mais especificamente sobre a música? O que ele fez em relação a elas?
O reformador genebrino laborou em meio às mais intensas aflições e perseguições. Não foi tempo de vitrais coloridos e capelas sistinas, mas de centenas e milhares de mártires, onde mães e esposas assistiam seus filhos e esposos sendo torturados e mortos das formas mais vis e cruéis; os huguenotes franceses foram assassinados a sangue frio; quais os motivos que tinham para que ornamentassem seus santuários com estátuas e quadros, para que construíssem catedrais românicas ou góticas!
Outro aspecto negativo da época de Calvino foi sem dúvida os excessos praticados em nome de uma religiosidade totalmente desconectadas dos fundamentos bíblicos. A pintura, escultura e acentuadamente a música eclesiástica estavam carregadas de licenciosidade e muitas explicitamente depravadas, a ponto de ser condenada até mesmo pelas lideranças católicas romanas, a grande patrona destas expressões “artísticas”. O famoso e tão celebrado Concílio de Trento considerou tais expressões de “arte” como sendo aberrações, em prejuízo à genuína arte. O reformador de Genebra tinha plena ciência de todos esses excessos e não fechou seus olhos para esta triste realidade, de maneira que para inibir tais expressões antibíblica estabeleceu critérios extremamente rígidos à luz de uma concepção bíblico-teológica quanto à arte e à música na esfera eclesiológica.
            Apesar do contexto, exemplificado acima, Calvino jamais abriu mão da genuína arte e música. Em suas Institutas e nos comentários bíblicos podemos verificar sua concepção de arte original e encantadora. Para ele a arte, em todas as suas formas, está dentro do contexto da graça comum de Deus em relação ao ser humano criado à sua imagem e semelhança. A beleza indescritível da criação – “e viu Deus que era bom” – e mais especificamente na criação do ser humano – “e viu Deus que era muito bom” – refletem a beleza e glória do próprio Deus. Ainda que o pecado tenha deturpado esse reflexo da beleza divina, a natureza e o próprio ser humano ainda são capacitados por Deus a expressarem coisas lidas e maravilhosas que enchem os olhos e alegram a alma.
            De forma desequilibrada muitos teólogos calvinistas se concentram na graça especial, relacionada à salvação, e colocam na periferia a graça comum; por seu lado os críticos afunilam ainda mais e miram todo seu arsenal anti-calvinista na doutrina da predestinação e ignoram completamente sua teologia da graça comum. Mas para Calvino a graça comum não é menos considerável ou menos real do que a graça especial – são os dois aspectos da mesma teologia. A vida pós-queda somente é suportável em decorrência da manifestação permanente da graça comum, pela qual Deus distribui dons a todos os seres humanos – faz chover para bons e maus. Calvino declara: “não nego que sejam dons de Deus todas as virtudes e excelentes qualidades que são vistas nos infiéis” [...] E conclui ele afirmando que todas essas virtudes, ou como ele prefere denominar - imagens de virtudes – “são dons de Deus, visto que nada é de algum modo louvável que não venha dele” (Institutas III, 14.2). E comentando este aspecto do pensamento de Calvino o Rev. John Marcarthur conclui que a fonte de qualquer verdade é decorrente da revelação de Deus e quando os incrédulos tratam a respeito da verdade eles vão ao encontro da verdade divina e não o contrário (2005, pp. 508-509). Deus nunca abriu mão deste mundo e permaneceu atuante, não apenas na criação, mas igualmente na humanidade “através das graças universais como a capacidade de exercitar excelentes virtudes. Por cause disso, o cristão não deve rejeitar a priori todos os frutos provenientes da cultura humana” (ALMEIDA, 2007, p. 73).
            Assim sendo, esta graça comum, distinta da graça especial e da comunidade da fé, se constitui na base da sociedade humana - com sua ciência, sua indústria, sua filosofia e sua política. Quando teólogos e historiadores cirurgicamente amputam do pensamento teológico de Calvino a graça comum e mais alguns outros aspectos, o que sobra é uma teologia totalmente mutilada e desfigurada, hedionda e repulsiva – mas, isso não é mais calvinismo.
            A razão para que tratemos da graça comum é porque nela encontram-se as artes que “são instiladas por Deus em nossos entendimentos” e que nos fazem “contemplar a bondade de Deus”, que se constitui no “único autor e mestre de todas essas artes”, pois todas “as artes procedem de Deus e dever ser consideradas invenções divinas” (Comentário Isaías 28.29; Comentário Êxodo 31.2).
            E o que Calvino quer dizer por “artes”? Os precipitados ou mal intencionados apressam em afirmar que ele se refere apenas as artes liberais e mecânicas, mas certamente o entendimento de Calvino é muito mais amplo, como ele deixa claro em seu comentário de Gênesis (4.20): “Agora, embora a invenção da harpa, e de instrumentos musicais semelhantes, possa ministrar ao nosso prazer, e não à nossa necessidade, ainda assim não deve ser considerado supérfluo: muito menos merece, por si só, ser condenado”. Fica claro que ele não condena ao inferno as artes que visam o deleite (contentamento, gozo, prazer, alegria, satisfação). Sua única e inflexível ressalva é que este deleite não pode jamais estar desconectado do “temor de Deus e às necessidades comuns da sociedade humana”, a regra legítima para aprovar ou reprovar qualquer expressão de arte, o que nenhum cristão em sã consciência pode negar. Ele não tinha uma visão romântica de que todas as expressões artísticas, incluindo a música, são sagradas ou que as palavras não importam. Ele conhecia suficientemente bem a natureza humana decaída e sabia que a mente humana era uma fábrica permanente de ídolos, e que o poder peculiar das artes de influenciar e transformar as torna uma força perigosa se usadas ​​de maneira errada.
Calvino rejeitou com veemência a ideia, então vigente, de que imagens e arte representacional deveriam estar na igreja como "livros para os indoutos". Outros sucumbiram à tentação de exagerar o adorno de seus templos, mas para ele a verdadeira beleza da igreja não estava na decoração ou nas imagens, mas na vida espiritual e na unidade dos seus membros. Por esta razão foi intransigente em não transformar o culto e/ou templo em um teatro ou galeria de arte - mantendo firme a doutrina de que a pregação da Palavra e a administração dos sacramentos deveriam ser primordiais nas celebrações e nos espaços cúlticos reformados. O que em hipótese alguma prova que Calvino não valorizasse as artes e a particularmente a música.
            E para aqueles que ainda não estão satisfeitos, em seu prefácio ao comentário do Saltério de Genebra (metrificados dos salmos bíblicos) explicitamente revela o alto grau de importância e relevância que ele tinha para com a música:
Importância da Música
Agora, entre as outras coisas apropriadas para recriar o homem e dar-lhe prazer, a música é a primeira ou uma das principais; e é necessário que pensemos que é um presente de Deus designado para esse uso. Além disso, por isso, devemos ter mais cuidado para não abusá-lo, por medo de sujá-lo e contaminá-lo, convertendo-o em nossa condenação, onde foi dedicado ao nosso proveito e uso. Se não houvesse outra consideração, além disso, deveria realmente nos levar a moderar o uso da música, para fazê-la servir a todas as coisas honestas; e que isso não deve dar ocasião para darmos livre rédea à dissolução, ou nos tornarmos efeminados em delícias desordenadas, e que não deve se tornar o instrumento da lascívia nem de qualquer vergonha.
Poder da Música
Mas ainda há mais: dificilmente existe no mundo algo que seja mais capaz de virar ou dobrar dessa maneira a moral dos homens, como Platão considerava prudentemente. E, de fato, descobrimos por experiência que ela tem um poder sagrado e quase incrível para mover corações de uma maneira ou de outra. Portanto, devemos ser ainda mais diligente em regulá-la de tal maneira que nos seja útil e de modo algum perniciosa. Por essa razão, os antigos doutores da Igreja se queixam com frequência disso, de que as pessoas de seu tempo eram viciadas em canções desonestas e sem vergonha, que não sem motivo se referiam e chamavam de veneno mortal e satânico por corromper o mundo. Além disso, ao falar agora de música, entendo duas partes: a letra, ou assunto e conteúdo; segundo, a música ou a melodia. É verdade que toda palavra ruim (como disse São Paulo) perverte o bom modo, mas quando a melodia está presente, ela penetra muito mais fortemente o coração e entra nela; da mesma maneira que através de um funil, o vinho é derramado no vaso; assim também o veneno e a corrupção são destilados nas profundezas do coração pela melodia[3].
            Para os que acusam Calvino de ser meramente racional e destituído de emoções é preciso destacar a importância que ele dá ao “coração” tanto quanto ao intelecto, como as bússolas a nortear a vida cristã. Em sintonia com a grande orquestra bíblico-teológica por ele regida, o “coração” permeia as páginas de suas Institutas, com frequência cada vez mais singular – “mas a língua sem o coração é muito desagradável para Deus”.
            Como podem seus críticos o acusar de produzir uma teologia “sem intestinos”, sem emoção, sem sentimento? Como aceitar passivamente as palavras injuriosas de Ferdinand Brunetière, um importante estudioso da literatura francesa: “o horror à arte é e deve permanecer um dos traços essenciais e característicos do espírito - da Reforma em geral e da Reforma Calvinista em particular” (PHILIP Benedict, apud FINNEY, 1999, p. 21).
            Todas essas falácias serão questionadas no próximo artigo quando haveremos de demonstrar de forma concreta o genuíno pensamento de Calvino sobre a música como uma legitima expressão, primeiramente de louvor e adoração a Deus, mas também como fonte de alegria e prazer para a vida do cristão[4].

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante

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Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Fernando de. Calvino e cultura: uma abordagem histórico-teológica sob a perspectiva da doutrina da graça comum. Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2007. [Orientador: Dr° Paulo Rodrigues Romeiro].
BENEDICT, Philip. Calvinism as a Culture? Preliminary Remarks on Calvinism and the Visual Arts. In: FINNEY, Paul Corby (Ed.). Seeing beyond the Word Visual Arts and the Calvinist Tradition. Michigan: Eerdmans Publishing Company Grand Rapids, 1999. Cap. 2, p. 19-46.
CALVINO, JOÃO. Institución de Ia Religión Cristiana. Países Bajos: FELiRé, 1986.
COSTA, Hermisten M. P. A Imagem de Deus no Homem segundo Calvino, p. 7. <http://www.monergismo.com/textos/jcalvino/A_lmagem_Deus_Homem
DOUEN, Orentin. Clément Marot et le Psautier Huguenot. Paris: 1878-79, I, p. 377.
DOUMERGUE, Emile. Music in the ou Work of Calvin. Banner of Truth magazine, 1977 (January).
ELWELL, Walter A. (org). Enciclopédia Histórico-teológica da Igreja Cristã. São Paulo, Vida Nova, 1990;
FINNEY, Paul Corby (Ed.). Seeing beyond the Word Visual Arts and the Calvinist Tradition. Michigan: Eerdmans Publishing Company Grand Rapids, 1999.
GARSIDE, Charles Jr. Calvin's Preface to the Psalter: A Re-Appraisal. The Musical Quarterly, Vol. 37, No. 4 (Oct., 1951), pp. 566-577. Published by: Oxford University Press Stable: http://www.jstor.org/stable/739611
KUIPER, Herman. Calvin on Common Grace. Grand Rapids, Michigan: Oosterbaan & Le Cointre, Goes, Netherlands and Smitter Book Company, 1928.
MACARTHUR, John. Pense Biblicamente. São Paulo: Hagnos, 2005.
HULLAH, J. P. Hullah. The History of Modem Music. 2nd ed. London: 1875.


[1] Pessoa que tem medo ou receio à aproximação ou convívio cultural e social de imagens.
[2] Estas expressões estão são citadas em um discurso de Emile Doumergue, um dos mais eminentes dentre os biógrafos de Calvino e foi proferido na 'Salle de la Reformation', em Genebra, em abril de 1902. Foi traduzido e impresso na Princeton Theological Review, outubro de 1909.
[3] Da edição fac-símile de: "Les Pseaumes mis en rime francoise por Clément Marot e Théodore de Béze. Mis musique a quatre parties por Claude Goudimel. Par les herériers de François Jacqui" (1565) - http://www.spindleworks.com/library/calvin/calvinpsalterpreface.html
[4] Neste artigo e no próximo utilizo como roteiro a palestra proferida pelo eminente biógrafo de Calvino Emile Doumergue, conforme referencias bibliográficas.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Farel - Como Lausanne Tornou-se Reformada



            Farel, William (1489–1565)
Pioneiro da Reforma Protestante na Suíça

A cidade de Lausanne, na Suíça, é conhecida pelos brasileiros em decorrência do grande Congresso Internacional de Evangelização Mundial, em julho de 1974, onde se reuniram mais de 2.400 participantes de 150 nações e que deu origem à chamada Teologia da Missão Integral, ainda hoje repercutindo no mundo inteiro. Desta conferência foram produzidos muitos documentos dos quais um ou outro foram traduzidos em português.
            Mas se desconhece quase que por completo a história desta cidade e que se constitui na razão pela qual a Conferência ocorreu nela e não em tantas outras cidades Suiças mais celebres historicamente falando como Genebra ou Berna, das quais temos um pouco mais de informação sobre o processo de reforma religiosa pelas quais passaram em meados do século XVI.
Um dos personagens proeminentes dos eventos reformistas que a cidade de Lausanne experimentou foi Guilherme Farel. Esse personagem da galeria dos reformadores do século XVI, apesar de ser pouco comentado, foi fundamental para que essa cidade Suíça e outras, inclusive Genebra, viessem aderir ao movimento da Reforma Protestante que a partir da Alemanha vinha se espalhando por toda a Europa.
Farel, de origem francesa, havia feito diversas tentativas frustradas de obter autorização das autoridades para pregar em Lausanne. A cidade antiga, com seu orgulhoso bispo, sua grande catedral, amiga de padres e monges, sempre esteve muito bem guardada contra as heresias reformistas. Mas a situação política da cidade mudou radicalmente, pois o Cantão Pays de Vaud, cuja capital era Lausanne, conseguiu sua independência e agora havia uma nova administração pública que fazendo uma entrada triunfante em Lausanne destituiu o todo poderoso bispo católico, que rapidamente deixou a cidade. Escrevendo a um sobrinho Farel registra: "Fizemos uma excelente recepção em Friburgo", e a recepção por parte da população havia sido muito animadora.
O Conselho de Berna estava determinado a efetivar a mudança religiosa na nova Província de maneira que se decretou um debate público, muito comum naquela época, entre os padres católicos e os pastores protestantes. A data definida para o debate foi de 1 a 10 de outubro de 1536, dando tempo para que os padres da cidade encontrassem os doutores hábeis para o debate. O Imperador Carlos V emite um documento proibindo o debate, mas as autoridades suíças não tomaram conhecimento da ordem emitida pelo então grande imperador de toda a Europa. Por outro lado, Carlos V tinha preocupações muito maiores com a França de Francisco I, de maneira que os acontecimentos de Lausanne eram naquele momento de menor relevância.
Guilherme Farel elaborou dez artigos que sintetizavam a teologia reformada: reafirma a supremacia da Bíblia, a justificação pela fé somente, o sumo-sacerdócio e mediação de Cristo, o culto espiritual sem cerimônias e imagens, a santidade do casamento e a liberdade cristã na observância ou não das questões indiferentes, como jejuns e festas [santas]. Foi dele também o sermão de abertura da assembleia em 1º outubro, bem como o sermão de encerramento no dia oito, que nos revela a relevância dele neste período de mudanças religiosas profundas. João Calvino, ainda jovem, chegou a participar das discussões, cujo principal oponente foi o francês Claude Blanchrose, um dos médicos da corte que havia se estabelecido em Lausanne, mas diante do trabalho de Farel e Viret, ficou plenamente satisfeito, de maneira que se absteve de maiores intersecções no transcorrer dos debates.
A disputa foi realizada na Catedral de Lausanne, contrariando a vontade dos clérigos que, incapazes de impedir a alegada profanação do edifício, removeram uma imagem altamente venerada da Virgem Maria e dos santos para um lugar de segurança. Na abertura das atividades da assembleia Von Wattenwyl, o oficial de justiça sênior, fez saber a todos os presentes qual era o objeto da disputa: a necessidade de encerrar os distúrbios que haviam surgido no país por causa das questões religiosas. Ele fez um juramento aos debatedores, de que ouviria os dois lados com a mesma imparcialidade e aplacaria todos os conflitos e permitiriam que o apelo final fosse feito somente às Escrituras. Os debatedores ficaram frente a frente, tendo o mediador no centro: pelo lado protestante, Farel, Viret,[1] Calvino,[2] Caroli,[3] Fabri, Marcourt e Le Comte; e, pelo lado católico romano, vários sacerdotes e monges estavam presentes, como Drogy, Mimard, Michod, Loys, Berilly e Claude Blancherose, dominicanos e franciscanos de Lausanne, os agostinianos de Thonon e todo o sacerdócio dos distritos conquistados. Todos os debates foram feitos em francês.
Como é percebido Farel assumiu a liderança das discussões, ainda que todos os demais também expusessem as teses apresentadas. Uma a uma foram sendo colocadas e abertas para que seus opositores pudessem rebatê-las, todavia os clérigos romanos não conseguiam encontrar argumentações que pudessem rebatê-las e em grande parte tentavam atitudes evasivas fazendo ataques pessoais de forma injuriosa aos representantes protestantes.
Por sua vez, de forma firme e contundente os reformadores foram respondendo os protestos e objeções dos clérigos, sempre comparando Escritura com Escritura, os pais da igreja com os pais da igreja e os decretos de um concílio com outros, demonstrando sempre as incoerências e distorções produzidas pela igreja romana. A cada nova tese apresentada revelava-se aos presentes a ignorância dos clérigos romanos, bem como a decadência da própria igreja romana e muitas vezes o silêncio eram suas únicas respostas.
Em suas palavras finais Farel faz menção a uma trama orquestrada por líderes eclesiásticos romanos de Lausanne, para assassinar os ministros protestantes durante a trajetória para chegar à cidade e conclui que não há nele e nos demais companheiros um desejo de vingança, mas que oravam em favor de tais pessoas, para que se arrependessem e recebessem o perdão completo. O oficial de justiça dissolveu a assembleia e solicita que eles esperassem silenciosamente o resultado.
A partir destes debates na cidade de Lausanne as autoridades civis de Berna, em 1º de novembro do mesmo ano, decretam seria adotado em toda sua jurisdição o padrão reformado de fé em rejeição as doutrinas católicas romanas. Viret e Pierre Caroli foram designados pregadores e Viret lecionou, na mesma época, na academia fundada em Berna, em 1540. Farel e Calvino, bem como os demais companheiros retornam às suas cidades e prosseguem suas atividades, tomados por grande gratidão a Deus.  

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas
KIRCHHOFER, Melchior. The life of William Farel, the Swiss reformer. London: The Religious Tract Society, 1837.
McGRATH, Alister. Christianity’s Dangerous Idea. New York: Harper One, 2008. p. 83-104.
M’CLINTOCK, John and STRONG, James Strong (Eds.). Cyclopædia of Biblical, Theological, and Ecclesiastical Literature. Vol X. New York: Harper & Brothers, 1894.
SCHAFF, Philip. History of the Christian Church. v. 8. Grand Rapids: Christian Classics Ethereal Library, 2002. p. 142-148.


[1] Pierre Viret era o único suíço nativo entre os pioneiros do protestantismo na Suíça ocidental; todos os outros eram fugitivos franceses. Em Lausanne trabalhou como pastor, professor e escritor por vinte e dois anos.
[2] Em um aparte quando da tese sobre a Ceia, Calvino foi retomado em seguida por Calvin, que explicou tão claramente suas razões para rejeitar a transubstanciação, bem como os benefícios reais associados à Ceia do Senhor, que um constrangedor silêncio se fez por parte dos debatedores católicos e diante disso Tandi, um franciscano, confessou perante todos que fora vencido pelo poder da verdade e que, dali em diante, ele acreditaria no evangelho puro e regularia sua vida por ele.
[3] Caroli ficou por um curto período apenas. Depois de desavenças com Viret, Farel e Calvino e acusações sem fundamento de ensinavam doutrinas do arianismo, foi deposto como caluniador, e terminou voltando à Igreja Romana.