Ao longo de sua vida Calvin
escreveu pouco sobre si mesmo. Ao contrário de outros líderes que
compartilharam suas experiências pessoais o reformador genebrês foi econômico
no que tange às suas questões pessoais. Mas o pouco que ele compartilhou é de
valor significativo. No entanto, ao elaborar o prefácio de seus comentários
sobre os salmos, escritos já no último quarto de sua vida, o reformador
genebrino abre o coração e nos permite um pequeno deslumbre de sua origem e
vocação e lutas pessoais, dificilmente encontrados em qualquer outra parte de
seus escritos.
O fato desse
compartilhamento da intimidade pessoal acontecer no contexto dos salmos é
significativo uma vez que ele os denomina de “uma anatomia de todas as partes da alma”, de maneira que se sente
livre para expressar suas emoções. Ele se idêntica pessoalmente com Davi, pois
entende que as lutas do salmista rei são semelhantes às suas lutas pastorais e
líder da igreja e fez dos salmos seu modelo de orações.
Outra correlação é que
Calvino nesse momento histórico (1557) está passando por grandes pressões e
apreensões em seu ministério, consequência de suas edições ampliadas das
Institutas cujos temas despertavam certo grau de descontentamento por parte de
outras lideranças reformadas e total rejeição por parte de seus adversários.
Pois,
embora eu siga Davi a uma grande distância, não chego a igualá-lo; ou melhor,
embora, ao aspirar lentamente e com grande dificuldade, alcançar as muitas
virtudes em que se destacou, ainda sinto-me manchado pelos vícios contrários;
no entanto, se tenho algo em comum com ele, não hesito em me comparar com ele.
Ao ler os exemplos de sua fé, paciência, fervor, zelo e integridade, ele (como
deveria) extraiu de mim gemidos e suspiros desnutridos que estou tão longe de
me aproximar; mas não obstante, tornou-se muito vantajoso contemplar nele como
um espelho tanto o início de minha vocação quanto o curso contínuo de minha
função; para que eu saiba com mais certeza que tudo o que aquele rei e profeta
mais ilustre sofreu foi exibido para mim por Deus como um exemplo de imitação.
Minha condição, sem dúvida, é muito inferior à dele, e é desnecessário demostrar
isso. Mas como ele foi retirado do aprisco e elevado à categoria de autoridade
suprema; então Deus, tendo me tirado de minha condição originalmente obscura e
humilde, me considerou digno de ser investido no ofício honroso de um pregador
e ministro do evangelho.
Quando
eu ainda era criança, meu pai [Gérard Cau-vin] havia me destinado para o estudo
da teologia. Mas depois, quando considerou que a profissão de advogado
geralmente elevava aqueles que a seguiam à riqueza, essa perspectiva o levou a
mudar de propósito de repente. Assim, aconteceu que fui retirado do estudo da
filosofia e colocado no estudo do direito. A essa busca, esforcei-me fielmente
em me aplicar, em obediência à vontade de meu pai; mas Deus, pela orientação
secreta de Sua providência, finalmente deu uma direção diferente ao meu curso.
E, primeiro, como eu era muito obstinadamente devotado às superstições do papado
para ser facilmente libertado de um abismo tão profundo de lama, Deus, por uma
súbita conversão, subjugou e trouxe a um ambiente de ensino minha mente, que
estava mais endurecida em assuntos do que poderia ser esperados de mim em meu
período inicial de vida. Tendo assim recebido algum gosto e conhecimento da
verdadeira piedade, fiquei imediatamente inflamado com um desejo tão intenso de
progredir nela, que, embora não tenha deixado de lado outros estudos, ainda os
perseguia com menos entusiasmo[1]. (Genebra, 22 de julho de
1557).
Neste
recorte do Prefácio encontramos Calvino compartilhando um pouco de si mesmo.
Percebe-se certa timidez e retração, mas também determinação e entusiasmo em
alcançar seus objetivos, fossem os determinados pelo pai e educadores ou
aqueles por ele mesmo proposto. De forma suscita é possível enumerarmos alguns
pontos peculiares de seu caráter:
Ministério Pastoral: ele entendia que sua função ministerial constituía seu
maior privilégio e a função de teólogo era subordinativa. Ele pessoalmente não
se referia como teólogo e até mesmo via o termo “teologia” como instrumento de
especulação comercial (não mudou muito desde então). Amou e foi fiel à vocação
pastoral até o último suspiro (Calvino Singularidades:Pregando Até o Fim). Sua grande
motivação vinha do exercício da “religião verdadeira” e não da “teologia”. Ainda
que tenha sido uma das mentes mais brilhantes da teologia reformada, ele não se
deixou encantar pelo “intelectualismo teológico” que ilude um grande numero de
ontem e dos dias atuais.
Sua Conversão: ele deixa transparecer que sua conversão o marcou
profundamente e tornou-se a bússola a indicar a direção a ser seguida por ele. Não
fora algo que ele buscou, mas um ato da “providência secreta” de Deus, que
mudou radicalmente seus planos imediatos e futuros. Entedia que suas atividades
pastorais e teológicas se constituíam em instrumentos nas mãos de Deus para a
realização de Seus propósitos eternos e que ele não podia nem resistir ou
menosprezar tão grandes privilégios concedidos a ele para edificação da Igreja
de Cristo. Sentia-se permanentemente devedor à providência que o resgatou do
lamaçal do pecado e o fez digno de conduzir o rebanho de Deus.
Sua Adesão à Reforma: A mesma Providência que o converteu também lhe abriu a
mente para perceber os excessos da igreja católica de seus dias e que o
impulsionou continua e persistentemente a buscar o “conhecimento da verdadeira
piedade”. Sua inserção no movimento protestante não se deu por questões
políticas ou estratégicas, mas porque compreendia que no movimento protestante
estavam as sementes germinadoras da fé sem mácula emanada das Escrituras, na
linguagem dele “a genuína piedade”. Ele tinha plena consciência que o movimento
da reforma tinha suas limitações e seus excessos e deturpações, que ele
enumerou e fez as devidas e necessárias criticas e repúdios. Mas sempre
interpretou a Reforma como o meio pelo qual Deus resgatou Sua Igreja e Sua
Palavra do lamaçal em que os detentores do poder eclesiásticos os haviam
lançado e mantido ao longo dos séculos. Todavia, teve a sensibilidade e
discernimento de aproveitar tudo que havia de bom e rejeitar o que não se
ajustava ao estudo sincero das Escrituras (Sua Relação com os Pais daIgreja).
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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[1] A
Selection from the PREFACE TO THE COMMENTARY ON PSALMS, 1557. TRANSLATED FROM
THE ORIGINAL LATIN, AND COLLATED WITH THE AUTHOR'S FRENCH VERSION by the Rev. James
Anderson - http://www.ccel.org (em português
- tradução eletrônica livre).
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