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sexta-feira, 18 de novembro de 2022

História da Igreja: A Comunidade de Reinos no Medievo

 

"Quando falamos de sabedoria, estamos a falar de Cristo. Quando falamos sobre a virtude, estamos a falar de Cristo. Quando falamos de justiça, estamos a falar de Cristo. Quando estamos a falar de verdade e de vida e redenção, estamos falando a respeito de Cristo "

O longo período de mil anos entre os séculos V e XV é o palco da ascensão e queda da Comunidade Medieval Europeia. Como vimos o caos causado pela queda do Império Romano, proporcionou à Igreja Cristã ascender ao topo do poder. Na mesma proporção em que os povos bárbaros conquistadores foram sendo cristianizados, a Igreja vai moldando todo o Ocidente à imagem e semelhança dos ideais cristãos [não necessariamente de Jesus Cristo] da vida comum das pessoas. Sobre os escombros do desaparecido Império Romano, o cristianismo vai construindo uma nova ordem social e uma política civilizadora, um "mundo único" cristão onde a unidade dos homens no Corpo de Cristo se expressava em dois aspectos: espiritual na Igreja universal e material/temporal no Império medieval.

Ainda que a Idade Média tenha recebido um triste apelido pejorativo de “Idade das Trevas”, e de fato do meio para o fim deste período as suas instituições tenham de fato entrado em convulsões morais e espirituais que acabaram desembocando no grande movimento da Reforma Protestante. Entretanto, nos dias de sua grandeza, nenhuma época produziu um senso mais elevado de dever e maior disposição para se sacrificar, ou uma concepção mais refinada da fraternidade comum entre as pessoas sob uma única ordem mundial cristã.

Liderança Cristã em um Mundo em Transformação

Os fundamentos sobre os quais a nova Europa haveria de ser construída serão estabelecidos pelos arquitetos da Comunidade Medieval, os líderes cristãos dos séculos IV e V. Dois personagens tornam-se representativos desse momento crucial e formativo, que no pensamento e na ação construíram a ponte sobre a qual o mundo Antigo passou para a Idade Média.

Ambrósio de Milão (339-397)[1]: governador vigoroso e hábil da cidade, exegeta bíblico, teórico político, mestre da eloquência Latina, músico e professor; em todos esses papéis, ele estava falando a respeito de Cristo. Embora o poder e a independência crescentes da Igreja na época de Ambrósio fossem reforçados pela legislação imperial, foi o trabalho de homens como ele que fizeram da organização cristã a única instituição estável na cena em mudança.

Foi firme nas questões concernentes às práticas pagãs; foi implacável em relação ao arianismo, que havia avançado bastante; e coroando sua postura singular enfrentou o imperador Teodósio I, o último imperador forte no Ocidente. E foi nesse embate entre os dois maiores poderes daquele momento que Ambrósio apresentou os princípios da relação entre Igreja e Estado que se constituirá na bússola norteadora do pensamento medieval.

Em 390 a.C. Teodósio ordenou um massacre de sete mil moradores de Tessalônica, horrorizando todo o mundo mediterrâneo. Depois disso, o imperador vai à basílica de Milão, no que foi impedido pelo bispo Ambrósio de participar dos sacramentos, até que houvesse demonstrado arrependimento. Nesse momento a Igreja e o Estado pararam! Mas o imperador acata a autoridade da Igreja e se retira acatando a pena que lhe foi imposta pelo bispo.

No pensamento de Ambrósio, a Igreja e no Estado se constituem dois poderes que se apoiam, mas independentes, um funcionando na esfera espiritual, o outro nos assuntos temporais. Quanto à religião, o dever do Estado ou do imperador cristão é proteger e apoiar a Igreja, fazer cumprir as decisões de seus conselhos ecumênicos e elaborar um código legislativo de acordo com os princípios morais cristãos.

Qualquer ação além dessas torna-se interferência. A independência da Igreja em relação à sua propriedade e à sua lei, bem como os privilégios e poderes do seu clero, devem ser respeitados e garantidos. Aqui, está a síntese do pensamento que determinou a relação da Igreja e do Estado no início da Idade Média, antes da imposição do poder supremo e universal do papado tornar-se dominante no Ocidente.

O pensamento vitorioso de Ambrósio está em nítida distinção com o princípio aceito na metade oriental do antigo império. Lá o conceito dos poderes divinamente dados do imperador, onde tanto a Igreja quanto o Estado estão debaixo de sua autoridade, era já difundido e cristalizado. Desta forma, o abismo entre a parte Oriental do cristianismo e seu lado Ocidental vai cada vez mais sendo ampliado, em decorrência dessas visões opostas da relação entre os poderes espirituais e temporais cristãos.

O Legado de Ambrósio

            Entre muito que poderíamos destacar na vida de Ambrósio uma que se reveste de particular atenção é a sua participação efetiva na conversão de Agostinho, cuja influência sobre o pensamento e a vida da igreja até aos dias de hoje é difícil de exagerar. Não somente as exposições bíblicas de Ambrósio, mas a amalgama com sua vida cristã piedosa atraíram e impactaram a vida do jovem Agostinho que sempre se refere a ele como muito apreço, como por exemplo, em suas Confissões:

“A Milão vim, ao Bispo Ambrósio ... cujo discurso eloquente dispensou abundantemente a Teu povo a farinha de Teu trigo, a alegria de Teu óleo e a sóbria embriaguez de Teu vinho. Por ele eu fui guiado por Ti sem saber, para que por ele eu pudesse ser conduzido a Ti conscientemente. Aquele homem de Deus me recebeu como um pai e mostrou-me uma bondade episcopal em minha vinda” (Confissões, livro 5 - itálico meu).

            Ele foi sem duvida alguma um baluarte na vitória da Ortodoxia Cristã contra as heresias produzidas principalmente pelo Arianismo. Tornou-se um exemplo em permanecer firme contra a arrogância de poderosos que praticavam atrocidades, incluindo o próprio Imperador. Ele não se encolheu diante dos poderosos ou ricos, mas manteve-se dentro dos padrões de justiça. Tal coragem é digna de emulação.

            Suas teses da relação entre igreja e o Estado em que ambos tinham suas esferas de autoridade e poder distintos foi ainda no nascedouro deturpado, inclusive por ele mesmo ao tomar ações que sobrepunham a igreja sobre o Estado. O que ao longo da Idade Média transformara a igreja em autoridade maior sobre todas as outras e reis e imperadores sucumbiriam diante dela. Mas este poder excedente acabou por deformar completamente a função da igreja trazendo danos irreparáveis à espiritualidade eclesiástica.

 

 Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Outro Blog
Reflexão Bíblica

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Referências Bibliográficas
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[1] “Anão Negro" era a alcunha que seus inimigos lhe davam. E o pequeno bispo egípcio de pele escura tinha muitos inimigos. Ele foi exilado cinco vezes por quatro imperadores romanos, passando 17 dos 45 anos que serviu como bispo de Alexandria no exílio. No final, seus inimigos teológicos foram "exilados" do ensino da igreja, e são os escritos de Atanásio que moldaram o futuro da igreja.