O
longo período de mil anos entre os séculos V e XV é o palco da ascensão e queda
da Comunidade Medieval Europeia. Como vimos o caos causado pela queda do
Império Romano, proporcionou à Igreja Cristã ascender ao topo do poder. Na
mesma proporção em que os povos bárbaros conquistadores foram sendo
cristianizados, a Igreja vai moldando todo o Ocidente à imagem e semelhança dos
ideais cristãos [não necessariamente de Jesus Cristo] da vida comum das
pessoas. Sobre os escombros do desaparecido Império Romano, o cristianismo vai
construindo uma nova ordem social e uma política civilizadora, um "mundo
único" cristão onde a unidade dos homens no Corpo de Cristo se expressava
em dois aspectos: espiritual na Igreja universal e material/temporal no Império
medieval.
Ainda
que a Idade Média tenha recebido um triste apelido pejorativo de “Idade das
Trevas”, e de fato do meio para o fim deste período as suas instituições tenham
de fato entrado em convulsões morais e espirituais que acabaram desembocando no
grande movimento da Reforma Protestante. Entretanto, nos dias de sua grandeza,
nenhuma época produziu um senso mais elevado de dever e maior disposição para
se sacrificar, ou uma concepção mais refinada da fraternidade comum entre as
pessoas sob uma única ordem mundial cristã.
Liderança Cristã em um Mundo em Transformação
Os
fundamentos sobre os quais a nova Europa haveria de ser construída serão
estabelecidos pelos arquitetos da Comunidade Medieval, os líderes cristãos dos
séculos IV e V. Dois personagens tornam-se representativos desse momento
crucial e formativo, que no pensamento e na ação construíram a ponte sobre a
qual o mundo Antigo passou para a Idade Média.
Ambrósio
de Milão (339-397)[1]: governador vigoroso e
hábil da cidade, exegeta bíblico, teórico político, mestre da eloquência
Latina, músico e professor; em todos esses papéis, ele estava falando a
respeito de Cristo. Embora o poder e a independência crescentes da Igreja na
época de Ambrósio fossem reforçados pela legislação imperial, foi o trabalho de
homens como ele que fizeram da organização cristã a única instituição estável
na cena em mudança.
Foi
firme nas questões concernentes às práticas pagãs; foi implacável em relação ao
arianismo, que havia avançado bastante; e coroando sua postura singular
enfrentou o imperador Teodósio I, o último imperador forte no Ocidente. E foi
nesse embate entre os dois maiores poderes daquele momento que Ambrósio
apresentou os princípios da relação entre Igreja e Estado que se constituirá na
bússola norteadora do pensamento medieval.
Em
390 a.C. Teodósio ordenou um massacre de sete mil moradores de Tessalônica,
horrorizando todo o mundo mediterrâneo. Depois disso, o imperador vai à
basílica de Milão, no que foi impedido pelo bispo Ambrósio de participar dos
sacramentos, até que houvesse demonstrado arrependimento. Nesse momento a
Igreja e o Estado pararam! Mas o imperador acata a autoridade da Igreja e se
retira acatando a pena que lhe foi imposta pelo bispo.
No
pensamento de Ambrósio, a Igreja e no Estado se constituem dois poderes que se
apoiam, mas independentes, um funcionando na esfera espiritual, o outro nos
assuntos temporais. Quanto à religião, o dever do Estado ou do imperador
cristão é proteger e apoiar a Igreja, fazer cumprir as decisões de seus
conselhos ecumênicos e elaborar um código legislativo de acordo com os
princípios morais cristãos.
Qualquer ação além dessas torna-se
interferência. A independência da Igreja
em relação à sua propriedade e à sua lei, bem como os privilégios e poderes do
seu clero, devem ser respeitados e garantidos. Aqui, está a síntese do
pensamento que determinou a relação da Igreja e do Estado no início da Idade
Média, antes da imposição do poder supremo e universal do papado tornar-se
dominante no Ocidente.
O
pensamento vitorioso de Ambrósio está em nítida distinção com o princípio
aceito na metade oriental do antigo império. Lá o conceito dos poderes
divinamente dados do imperador, onde tanto a Igreja quanto o Estado estão
debaixo de sua autoridade, era já difundido e cristalizado. Desta forma, o
abismo entre a parte Oriental do cristianismo e seu lado Ocidental vai cada vez
mais sendo ampliado, em decorrência dessas visões opostas da relação entre os
poderes espirituais e temporais cristãos.
O Legado de Ambrósio
Entre muito que poderíamos destacar
na vida de Ambrósio uma que se reveste de particular atenção é a sua participação
efetiva na conversão de Agostinho, cuja influência sobre o pensamento e a vida
da igreja até aos dias de hoje é difícil de exagerar. Não somente as exposições
bíblicas de Ambrósio, mas a amalgama com sua vida cristã piedosa atraíram e
impactaram a vida do jovem Agostinho que sempre se refere a ele como muito
apreço, como por exemplo, em suas Confissões:
“A Milão vim, ao Bispo Ambrósio ... cujo discurso eloquente
dispensou abundantemente a Teu povo a farinha de Teu trigo, a alegria de Teu
óleo e a sóbria embriaguez de Teu vinho. Por
ele eu fui guiado por Ti sem saber, para que por ele eu pudesse ser conduzido a
Ti conscientemente. Aquele homem de Deus me recebeu como um pai e
mostrou-me uma bondade episcopal em minha vinda” (Confissões, livro 5 - itálico
meu).
Ele foi sem duvida alguma um
baluarte na vitória da Ortodoxia Cristã contra as heresias produzidas
principalmente pelo Arianismo. Tornou-se um exemplo em permanecer firme contra a
arrogância de poderosos que praticavam atrocidades, incluindo o próprio
Imperador. Ele não se encolheu diante dos poderosos ou ricos, mas manteve-se dentro
dos padrões de justiça. Tal coragem é digna de emulação.
Suas teses da relação entre igreja e
o Estado em que ambos tinham suas esferas de autoridade e poder distintos foi
ainda no nascedouro deturpado, inclusive por ele mesmo ao tomar ações que sobrepunham
a igreja sobre o Estado. O que ao longo da Idade Média transformara a igreja em
autoridade maior sobre todas as outras e reis e imperadores sucumbiriam diante
dela. Mas este poder excedente acabou por deformar completamente a função da
igreja trazendo danos irreparáveis à espiritualidade eclesiástica.
Gregório I, o Grande e/ou Magno (590-604): transição da igreja Antiga para a Medieval.
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História da Igreja Cristã: A queda do Império Romano Ocidental e Ascensão da Igreja de Roma
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Historia da Igreja: Ascensão do Poder da Igreja de Roma
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História da Igreja Cristã: Teodósio, o primeiro imperador cristão
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História Igreja Cristã: A Igreja Absorvida pelo Império: Período Pós Constantino
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História Igreja Cristã: Divergências e Controvérsias Doutrinárias
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História da Igreja Cristã: Contexto Inicial
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Perseguições do Império Romano à Igreja: Nero a Marcos Antônio
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Perseguições Império Romano à Igreja: Severo ao Edito de Tolerância
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[1] “Anão Negro" era a alcunha que seus inimigos lhe davam. E o pequeno bispo egípcio de pele escura tinha muitos inimigos. Ele foi exilado cinco vezes por quatro imperadores romanos, passando 17 dos 45 anos que serviu como bispo de Alexandria no exílio. No final, seus inimigos teológicos foram "exilados" do ensino da igreja, e são os escritos de Atanásio que moldaram o futuro da igreja.
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