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quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Mulheres na Reforma Protestante (Alemanha-Suíça)


 Na Reforma estavam mulheres notáveis que deixaram sua marca na história do cristianismo.

As mulheres atuaram concomitantemente nos esforços da implantação da Reforma Protestante. Suas atuações ainda que muito mais nos bastidores do que nos holofotes são fundamentais nas transformações implementadas pelo movimento reformado.

O que teria sido Lutero sem sua Katherine? E de Zwínglio sem o apoio e cuidado de Anna? As mulheres no desenvolvimento da Igreja Reformada foram (e continuam sendo) um elemento relevante na sua trajetória histórica. Assim como haviam sido Débora e Ester e as mulheres que apoiaram o ministério de Jesus no Novo Testamento e as cooperadoras na obra missionária de Paulo. Deus jamais deixou as mulheres de fora seja da História Bíblica ou da História da Igreja.

A Reforma tornou-se um marco no resgate da cidadania feminina. A partir do movimento da Reforma Protestante as mulheres emergem de casas e conventos, transcendem status concedidos por nascimento, e tornam-se figuras inextricavelmente ligadas com a obra do evangelho, impactando as estruturas eclesiais e sociais de sua época.

Alemanha

Katherine von Bora (1499-1552)

Foi criada desde a infância em conventos, mas aos vinte anos aproximadamente ela tomou conhecimento das teses reformadoras de Martinho Lutero. Estudo juntamente com outras reclusas e tomaram a decisão de seguir as teses do reformador. Sem apoio das famílias para saírem da clausura coube a Lutero através de um amigo Leonhard Koppe, que utilizando seus barris de peixes, as resgatou. Posteriormente veio a se casar com o próprio Lutero. Tomou contas das finanças da família; estabeleceu um pensionato para estudantes; tratava com os editores das obras de Lutero; manteve uma farmácia natural para atender familiares e hospedes, bem como a população mais carente de Wittemberg. Recebia em sua casa muitos refugiados que fugiam das perseguições religiosas. Após a morte de Lutero teve que lutar muito, primeiro para que o testamento dele fosse reconhecido, depois pela guarda dos filhos. As diversas guerras e pestes a empobreceu, mas ela jamais desistiu de seus ideias reformadas.

Ursula de Munsterberg (1491-1534)

Era neta do rei Jorge Prodiebrad da Boêmia, mas foi colocada em um mosteiro quando criança. Nunca aceitou passivamente essa condição e tomando conhecimento das teses de Lutero, juntamente com outras duas freiras (6 de outubro de 1528), fugiram à noite, e nunca mais voltaram. Sem poder retornar para sua família, que a repudiou, permanece por um tempo com a família Lutero.

Acusada de todas as formas Úrsula defendeu suas ações em um tratado ousado que mostrava claramente sua plena compreensão da diferença entre suas antigas crenças e sua nova compreensão das crenças reformadas. Declara: “A única esperança está na fé. Pelo batismo fomos recebidos no Reino de Cristo. E afirmar que o voto monástico é um segundo batismo e lava os pecados, como ouvimos do púlpito, é blasfêmia contra Deus, como se o sangue de Cristo não fosse suficiente para lavar todos os pecados. Somos casados com Cristo, e buscar ser salvo através de outro é adultério. Os três votos monásticos são obra das mãos dos homens”.

Katherine Schutz Zell (1497-1562)

Esta Katherine ficou conhecida por seu amor e conhecimento das Escrituras.  Também foi esposa de um reformador, o que só fez aumentar o seu ávido interesse pelas questões espirituais. Antecedendo as grandes teses do reformador alemão Lutero ela declarava:  

“Desde que eu tinha 10 anos tenho sido uma estudante e uma espécie de mãe da igreja, muito dada a assistir aos sermões. E tenho amado e frequentado a companhia de homens instruídos e conversado muito com eles, não sobre dança, máscaras e prazeres mundanos, mas sobre o Reino de Deus”.

O nível de sua conversão sobre os aspectos da teologia estava em um nível acadêmico que a colocava acima de muitos mestres. Ao mesmo tempo, contra rumores de que pretendia usurpar uma cátedra sempre deixou muito bem claro que seu conhecimento derivava unicamente de seu intenso amor pelas Escrituras e nunca teve quaisquer pretensões de desafiar ou usurpar os ofícios estabelecidos por Deus para os homens:

“Eu não estou usurpando o ofício de pregador ou apóstolo [...] Eu sou como a querida Maria Madalena, que sem intenções de ser apóstolo, foi contar aos discípulos que ela havia encontrado o Senhor ressurreto”

Katherine Zell, além de amar intensamente as Escrituras, era também uma adoradora do Deus vivo. Ela escreveu muitos hinos nos quais seu amor a Palavra de Deus transpirava em todas as suas letrasse, assim como o salmista manifesta todo seu amor às Escrituras ao compor o Salmo 119 em forma acrostica utilizando cada letra do alfabeto hebraico.

Wibrandis Rosenblatt (1504 -1564)

A história dela é plena de acontecimentos inusitados. Ela ficou viúva quatro vezes, por isso recebeu a alcunha de “a noiva da Reforma”. É preciso deixar claro que no início do movimento da Reforma os clérigos e freiras que até então eram proibidos de se casarem ficaram livres de seus votos de celibato. Desta forma o casamento dos ministros reformados tornou-se uma extensão de suas atividades ministeriais.

Seus respectivos esposos foram: Ludwig Keller (1 filha); Johannes Oecolampadius (1 menino, 2 meninas), ele se referindo a ela: “O Senhor me deu uma irmã e uma esposa ... uma viúva com vários anos de experiência em carregar uma cruz”; o terceiro marido foi Wolfang Capito [pastor em Estrasburgo] (2 meninos e três meninas); o último esposo foi o reformador Martin Bucer, cuja primeira esposa morrera de câncer, mas ele escreve a respeito de Wibrandis: “Não há nada que falte à minha nova esposa, ela é solicita e atenciosa. Ela não é tão livre em suas críticas quanto minha primeira esposa ... Só espero poder ser tão terno com ela quanto ela é comigo”.

Wibrandis e outras esposas de pastores reformados do século 16 se apoiavam e consolavam por meio de cartas, determinando e forjando seu novo papel à medida que vivenciavam suas lutas e desafios.

Em 1564 a peste dizimou 7.000 pessoas, entre elas Wibrandis Rosenblatt. Como reconhecimento por tudo que ela fez e representou, na cidade rural de Bad Säckingen, na Alemanha, uma pequena rua que leva à margem do rio Reno recebeu seu nome - Wibrandis-Rosenblatt-Weg. E não menos significativo ao lado da rua fica a torre do sino do Evangelische Kirchengemeinde, uma igreja protestante.

Argula von Grumbach (1492-1563)

A relevância da vida de Argula extrapola os padrões rígidos da época. Ela foi a primeira mulher a produzir e editar material de cunho reformado. Indignada com a prisão de um jovem estudante, por se posicionar em favor das teses de Lutero, Argula empreende uma luta contra tal arbitrariedade. Suas cartas não apenas defende o jovem, mas acima de tudo expõe com toda clareza bíblico-teológica seus posicionamentos reformados.

Argula não foi martirizada, nem ameaçada de morte, mas perseguida de outras maneiras, talvez igualmente dolorosas, incluindo o próprio marido, já que a maior parte de sua cidade e grande parte da Alemanha se voltaram contra ela. Com toda razão ela foi comparada a Débora, Judite e às mulheres que acompanhavam Jesus.

Elisabeth of Brandenburg (1485-1545) 

Muitas mulheres pertencentes à nobreza não apenas adotaram os princípios da Reforma, mas se empenharam apesar do risco permanente de morte na defesa e implantação destes princípios dentro de suas respectivas esferas de poder. Com toda certeza Isabel de Brandemburgo foi uma duquesa consorte de Brunsvique-Göttingen-Calenberg por casamento com Érico I, Duque de Brunsvique-Luneburgo, e regente do Ducado de Brunsvique-Göttingen-Calenberg durante a menoridade de seu filho, Érico II. É denominada "princesa da Reforma", pelo seu apoio firme e contundente na implantação da na atual Baixa Saxônia do Sul.

Elisabeth [Isabel] de Braunschweig (1510-1558)

A história dessa mulher daria um maravilhoso filme sobre o contexto da Reforma Protestante. O jogo político acirrou ainda mais dentro do Império Alemão após o   início da Reforma Protestante. Alguns por convicção e outros pelos interesses pessoais abraçavam ou repudiavam as teses de Lutero. Eram tempos em que alianças era muito tênues e foi dentro deste contexto que nasceu e viveu Elisabeth. Ela abraça a fé reformada já como mãe, através da instrumentalidade de sua mãe Isabel de Brandenberg que fora convencida da veracidade das teses de Lutero.

Com a morte do marido ela passou a reinar como regente por cinco anos, pois o filho Eric tinha apenas 12 anos. Fez de um pastor Lutero o mestre de seus filhos. Duas de suas filhas se casaram com homens que adotaram os princípios reformados. Ela mesmo veio a se casar novamente com o duque Poppo de Henneberg, que abraçara a Reforma.

Mas o filho após assumir o trono abandona o ensino reformado da mãe e patrocina com violência um retorno ao catolicismo. Elisabeth escreve ao filho, mas a resposta é direta, ou concordava com a religião católica ou seria exilada. Ela permaneceu lá por três anos em total pobreza. Durante esse tempo, ela escreveu hinos e encontrou conforto em seu Senhor.

Ela escreveu: "Ninguém sem a experiência sabe a angústia que as crianças podem causar e, no entanto, serem amadas".

Apesar do retrocesso do filho, os esforços desta mulher determinada não foram vão.  Os cidadãos de Braunschweig abraçaram a fé da Reforma como resultado de pastores fiéis e do fervor de Elisabeth, comprovando de que uma pessoa pode fazer uma grande diferença.

Com ela aprendemos que nossos filhos não são nossos. Ela fez o possível para criá-los para saber a verdade. Mas como diz um ditado: "Deus não tem netos, somente filhos". Não podemos fazer nossos filhos crerem. Só podemos levá-los à verdade. O resto está nas mãos de Deus.

Mulheres Anabatistas

Mais complexa é a história destas mulheres visto que o movimento Anabatista dentro do movimento da Reforma sempre foi visto como anárquico. Todavia, essas mulheres estiveram imbuídas de uma fé e compromisso com Cristo que se constitui em um desafio perene à fé insonsa de grande parte do evangelicalismo atual. Margret Hottinger, Helene von Freyberg e Elisabeth Dirks são três nomes que representam a diversidade do movimento Anabatista em seus primórdios.

As esferas de atuação das mulheres são múltiplas e nem todas exerceram posições de autoridade dentro dos movimentos reformados. Mas o mais relevante é o conhecimento delas das Escrituras e como elas utilizaram para infundir a genuína fé nas mentes e corações dos filhos e de todos aqueles que compartilhavam de seus espaços vivenciais.

 

Suíça

Anna Zwínglio (1487-1538)

Ficou viúva ainda muito jovem com três filhos. Veio a se casar com o reformador Ulric Zwínglio quando ele veio pastorear a igreja reformada em Zurique. Ela adquiriu amplo conhecimento bíblico e participava das discussões dos temas propostos. Ouvia atentamente as leituras que Zwínglio fazia da sua tradução do Novo Testamento para a língua vernácula e foi uma das primeiras a divulgar a nova tradução, muitas vezes distribuindo alguns exemplares gratuitamente, visto que o preço não era acessível as pessoas mais humildes. Sua percepção e atuação na área social lhe deu a alcunha de “Dorcas Protestante” tornando-a um modelo para as mulheres reformadas.   

Idelette de Bure (1505-1549)

Apesar de ser quase desconhecida se constitui em uma das personagens mais interessante dentre as mulheres da Reforma. Além de ter sido um balsamo na vida João Calvino ela participou intensamente dos movimentos reformado em Genebra. As palavras de Calvino após a morte de Idelette expressão a relevância dela: “Eu perdi aquela que nunca teria me abandonado, fosse em exílio, ou na miséria, ou na morte. Ela foi uma preciosa ajuda para mim, e nunca se ocupava demais consigo mesma. A melhor das minhas companhias foi tirada de mim.”

Anna Bullinger (1504-64)

Cultivou um lar que serviu de modelo para todas as famílias reformadas. Com onze filhos sob seus cuidados, ela ainda hospedava um vasto número de visitantes protestantes e refugiados – algumas vezes dezenas ao mesmo tempo. Quando não estava em casa ou na igreja, ela visitava os pobres de Zurique trazendo conforto e apoio às famílias, principalmente em períodos de pandemias que assolavam toda a Europa.

 

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião
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 Referências Bibliográficas

ANDERSON, James M. Daily Life During the Reformation. Bloomsbury Academic, 2011. [Greenwood Press daily life through history series].

GOOD, James I. Womem fo the Reformed Church. Published by The Sunday-School Board of the Reformed Church in the United States. 1901. [First Edition].

MATHESON, Peter. Argula Von Grumbach. Cascade Books, Eugene, Oregon, 2013.

RUBLACK, Ulinka (ed). The Oxford Handbook of the Protestant Reformations [O Manual de Oxford das Reformas Protestantes]. Oxford: Oxford U.P., 2017.

SNYDER, C. Arnold and HECHT, Linda A. Huebert (Editors). Profiles of Anabaptist Women Sixteenth-Century Reforming Pioneers. Canadian Corporation for Studies in Religion, 1946.

Stjerna, K. Women and the Reformation. Blackwell Publishing, Oxford, 2009.

UBIETA, Carmen Bernabé (Ed.) Mujeres com autoridade em el cristianismo antiguo. Espanã: Asociación de Te´plogas Esanõlas (ATE) e Editorial Verbo Divino, 2007.

VANDOODWAAR, Rebecca. Reformation Women: Sixteenth-Century Figures who Shaped Christianity's Rebirth. Reformation Heritage Books, 2017.

WARNICKE, Retha M. Women of the English Renaissance and Reformation. ABC-CLIO, 1983.

WILSON, Derek. Mrs Luther and her sisters: Women in the Reformation. Lion Books, 2016.

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segunda-feira, 3 de julho de 2023

MULHERES DA REFORMA PROTESTANTE – Anna Reinhard


          Quando se fala de Reforma Protestante nossa mente é tomada por uma série de nomes masculinos, mas poucos são capazes de se lembrar de pelo menos alguns nomes de mulheres que participaram ativamente deste movimento reformador ocorrido no hoje longínquo século XVI, mas que ainda hoje no século XXI exerce forte influência em muitos países, incluindo o Brasil.

          Ao começarmos a pesquisar sobre a vida destas mulheres descobrimos um manancial de fé, amor, força e desprendimento que não apenas nos encantam, mas acima de tudo nos desafiam. Se para os homens do medievo aderir ao movimento da Reforma era um desafio e exigia o máximo de cada um, para as mulheres os desafios eram ainda maiores e mais custosos – elas (como ainda hoje) tinham que equilibrar sua própria vida, de seu marido e seus filhos. Elas podiam, assim como apostolo Paulo, declararem que pesava sobre elas essa tremenda responsabilidade de levar o Evangelho puro a todos os ouvidos entupidos por toda sorte de desvios doutrinários e heresias idolatras.

          O meu convite é que você possa, assim como eu, descobrir cada uma destas mulheres e não apenas aprender com elas, mas se deixar ser desafiado por elas em fé e coragem. Que possamos com elas permanecermos firmes e inabaláveis em meios às maiores adversidades, bem como sermos pacientes nas tribulações. Cada uma delas figura na Galeria da Fé Reformada e parafraseando o escritor bíblico de Hebreus – o mundo não foi digno delas.

Anna Reinhard

          Propositalmente retiro o sobrenome de seu marido (Zwínglio) para que a nossa atenção possa ser centrada na figura dela, pois ela possui valor intrínseco, pois sua vida e história fala por si mesma.

          Não há registro oficial da data de seu nascimento, todavia os historiadores propõem o ano de 1484. Muito cedo um jovem amigo, de origem nobre chamado John Meyer von Knonau se encantou por sua beleza e personalidade, mas seu pai se opôs, então o rapaz tomou a decisão de fugirem e se casarem secretamente. Porém, este ato de rebeldia lhe custou muito caro. Foi deserdado, sendo que a herança do pai foi deixada para a madrasta.

O marido de Anna foi agora lançado aos seus próprios recursos. Tentou a carreira política sendo eleito vereador em 1511, mas os recursos eram escassos e a saída encontrada foi tornar-se alferes no exército suíço, indo com eles para a Itália nas guerras contra a França. Depois de várias campanhas ele retorna com a saúde bastante debilitada e morreu em 1517, deixando Anna viúva com dois filhos, uma menina e um menino. Ela havia tido uma segunda filha, mas ela faleceu ainda bebê.

O filho Gerald Meyer será o instrumento da providência divina para a jovem viúva. Era um menino que chamava a atenção e certo dia, com três anos, sendo levado ao mercado seu avô paterno o viu e se encantou pelo menino e depois de tomar conhecido que se tratava de seu próprio neto, esquecendo a frustração com o filho assume os cuidados do neto.  Aos nove anos o avô faleceu e ele continuou sendo cuidado pela avó (madrasta do seu pai), de maneira que somente aos onze anos, com o falecimento da avó-madrasta o menino retorna aos cuidados de Anna.  

A providência divina em ação. Anna estava travando sua luta para sustentar e educar seus filhos, embora estivesse limitada pelos seus poucos recursos. Neste interim o reformador suíço Ulrico Zwínglio veio para Zurique, sua pregação e sua personalidade atraia muitas pessoas, dentre as quais estava Anna, pois sua residência ficava na área atendida por esta paróquia.

No exercício de seu ofício paroquial Zwínglio tinha que dar assistência às famílias, foi quando passou a ter contato com a viúva e seus filhos. Logo percebe as necessidades da família, mas foi o agora jovem Gerald que lhe chama mais atenção. O reformador percebe os talentos da criança e oferece aulas particulares de grego e latim, que eram obrigatórios para entrar em qualquer colégio ou academia na época. Desta forma ao chegar aos onze anos o menino foi então enviado para estudar em Basileia, então um dos mais importantes centros literários da Suíça, fazendo de Zwínglio um tutor não oficial do rapaz. O menino se destacou tanto nos estudos acadêmicos que seu professor escreve a Zwínglio que se tivesse outros com semelhante aptidão podia ser-lhe enviados que os receberia como pai.

A relação do reformador com o filho de Anna manteve-se forte e quando o rapaz foi (1523) enviado de férias aos balneários em Baden, em vez de lhe dar o presente habitual, Zwínglio deu-lhe algo que era melhor. Escreveu um livro, intitulado "Como se deve educar e instruir a juventude nas boas maneiras e disciplina cristã” e dedicou-o a ele.[1] Esses detalhes são relevantes pois Gerald será o link entre sua mãe e o reformador.

Percalços e Entraves para o Casamento

Todo cenário estava preparado para que Zwínglio e Anna se casassem, todavia, naquele momento histórico de ruptura isso se constituiu em enorme problema, pois ainda um ranço muito forte de que ministro, mesmo que reformado, não deveria se casar. Enfrentando todas as oposições eles se casaram (1522), primeiramente em segredo, mas posteriormente assumiram publicamente (1524) apenas um ano antes do casamento de Martinho Lutero com a ex-freira Katharina von Bora, o que causou forte comoção, ainda que tenha repercutido mais em sua cidade natal do que propriamente em Zurique. Os romanistas e anabatistas (grupo radical dos reformados), chegaram a o injuriarem espalhando de que Zwínglio havia se casado interessado no dinheiro e na beleza dela. Ele se defendeu publicamente declarando que a renda da esposa alcançava pouco mais de 400 florins (1.053,44 reais) anuais.

Anna e suas Múltiplas Atividades

          Como tantas outras mulheres Anna não se acomodou com o simples papel de dona de casa. Ela tinha consciência de que olhos furtivos estariam sobre ela, até mais do que no marido. Sem que fosse pedido ou sugerido pelo marido, ela voluntariamente abriu mão de utilizar suas joias. Além de extremamente cuidadosa com as coisas da casa, filhos e marido, ela voltou-se para o campo da ação social trabalhando incansavelmente em favor dos desfalecidos e párias sociais, bem como dos enfermos dentro do campo pastoral de Zwínglio. Começou a ser chamada carinhosamente de a “Dorcas da Reforma”, referência à personagem descrita em no livro de Atos (Atos 9.36-43). Seu cuidado para com o esposo era ainda maior. Ela participava efetivamente de todos os momentos do reformador, fossem nas alegrias ou tristezas do ministério.

          Quando o esposo iniciou o trabalho precioso da tradução da Bíblia (1525), juntamente com outros reformadores de Zurique e que foi concluído depois de quatro anos (1529)[2] de árduo e exaustivo esforço (ele não tinha nenhum dos confortos mínimos de hoje, como por exemplo, luz elétrica).

          Anna era a primeira ouvinte dos textos traduzidos por Zwínglio pouco antes de irem dormir e era testemunha da satisfação de ouvir os evangelhos em sua própria língua suíça, na medida em que os textos eram produzidos. Quando saiu a primeira edição desta tradução completa ela recebeu de presente do esposo um exemplar. Imediatamente ela começa um projeto de financiar esta bíblia traduzida para cada família da igreja, pois o custo dos livros era muito grande no medievo.

          Ela está sempre atenta para a exaustão do esposo que muitas vezes se deixava absorver integralmente em suas múltiplas atividades pastorais. Era costume dele levantar-se muito cedo para aproveitar cada lampejo da claridade e acabava indo dormir muito tarde. Desta forma ela o fazia descansar um pouco mais.

Em suas relações interpessoais era bastante prudente evitando quaisquer conversas frívolas e se atentando para as conversas que edificavam. Anna tinha plena satisfação de conversas que podiam trazer novos subsídios para o seu entendimento bíblico e devocional. Amava ouvir as pregações de Zwínglio, mesmo antes de se casarem, trazendo novas percepções da pessoa e ensino de Cristo. Lembrando que ela cresceu em pleno romanismo em seu estágio mais deplorável - missas, peregrinações, relíquias, veneração de santos e a paisagem urbana dela era moldada pelo catolicismo (sete mosteiros e quatro igrejas).

          Por sua vez Zwínglio tinha o maior respeito pelo caráter e fé de Anna e em todas as oportunidades ele expressa esse reconhecimento. Em uma de suas poucas correspondências que foram preservadas ele se refere a Anna como uma amálgama entre Marta e Maria. Era a realidade dessa mulher, que soube como poucas equilibrar a família com uma vida cristã intensamente ativa.

Pela relevância que Zwínglio alcançava, sua residência estava sempre recebendo toda sorte de pessoas, dos amigos, aos irmãos da fé, bem como os refugiados que estavam sendo perseguidos e mortos pelas autoridades à serviço do romanismo.

Na ausência do marido era Anna que assumia o papel de anfitriã e conduzia as conversas e discussões sobre os temas cotidianos. Há várias referências de ilustres personagens históricos daqueles dias que ratificam o testemunho do caráter e do discernimento que Anna possuía a respeito das temáticas bíblicas, políticas e sociais.

Nem tudo eram flores, pois viviam em dias tremendamente difíceis. Zwínglio e demais expoentes da Reforma viviam em permanente risco de morte e Anna sabia muito bem disso. Cuidava em tempo integral da segurança do esposo, sempre atenta aos rumores e sempre precavida em relação à segurança dele.

Sabia que o marido não deveria sair sozinho à noite, pois poderia ser raptado e levado para algum cantão católico, assim como acontecera com John Huss que foi preso, julgado e condenado, por isso ela sempre arrumava alguém para viajar junto com ele. Tinha que ficar atento ao que ele comia pois havia o risco constante de ser envenenado. Sempre vigilante, Anna, mantinha sempre pessoas que poderiam socorrê-lo em uma emergência. Mesmo na cidade, não o deixava ir ou retornar de suas atividades pastorais sozinho, principalmente depois de escurecer.

Ela era a fiel guardiã e graças a essas ações muitas tentativas contra a vida de Zwínglio, embora próximas do cumprimento, foram frustradas. Em 28 de agosto de 1525, a casa deles foi apedrejada por dois cidadãos à noite, por exemplo, um susto sem efeitos colaterais maiores. Por todo esse zelo Zwínglio chamava Anna de “esposa anjo”, reconhecendo publicamente seu respeito e gratidão por ela.

Nuvens Escuras se Formam

          Apesar de toda tensão que Anna e Zwínglio viviam dias mais difíceis estavam por chegar. No dia 09 de outubro de 1531 é anunciado que o exército dos cantões católicos marcha contra a cidade de Zurique. Imediatamente foram convocados os soldados da cidade para enfrentar os inimigos. Zwínglio é convocado como Capelão desse exército.  Anna revê um filme que havia assistido com o primeiro esposo. Os soldados se reúnem na Praça da Cidade e ela ali se faz presente juntamente com os filhos. As lágrimas ficam incontidas, principalmente quando Zwínglio lhe fala: “Chegou a hora que nos separar”. Enquanto a esposa lhe dá um abraço de despedida, mesmo tomada pelo medo ela ainda consegue dizer-lhe: “Vamos nos ver novamente se o Senhor assim quiser”, e pergunta-lhe: “O que você trará quando retornar?”. E ele reponde: “Bênção após a noite escura”. Esse foi o último diálogo deles e as palavras do marido a confortou para as notícias que chegariam, pois ela cria que a bênção viria depois da noite escura da terra, tinha a forte convicção da luz bendita da pátria celestial.

          Retornando rapidamente para casa com os filhos, derrama-se diante do Senhor e ora as palavras de Jesus no Getsêmani: "Pai, não a minha vontade, mas a Tua seja feita”. Resoluta, aguarda as notícias advindas do campo de batalha. Chegam então as terríveis notícias, com a notícia da morte do marido vieram relatos sobre as mortes de seu filho Gerald, seu irmão, genros, seu

cunhado, seu primo e muitos amigos que também caído. Ela foi dominada pela dor e chorou amargamente com seus filhos (Grob 1883:192). A cidade foi tomada por sonoros gritos de lamentação e lágrimas, mas seu choro sobressaia-se e sua dor dilacerava seu coração.

A morte lhe cercou por todos os lados e então lhe chegou os detalhes horrendos de que o corpo de Zwínglio fora esquartejado e queimado e suas cinzas espalhadas por vários lugares – para que não ficasse vestígio algum dele. Poucos experimentaram tamanha dor e sofrimento. Um profeta experimentou tamanha dor e sofrimento, o profeta Jeremias: “Atendei, e vede, se há dor como a minha dor, que veio sobre mim,” (Lamentações 1.12).

 O consolo reconfortante veio de todos os lugares, desde os moradores da cidade, como das autoridades civis e religiosas. Muitos ministros reformados de outras cidades, como Bucer da cidade de Strasbourg, lhes escreveram cartas que muito a confortaram.

O jovem Henry Bullinger, o sucessor de seu marido lhe disse: “Nada te faltará, querida mãe” e de fato ele passou a cuidar dela e seus filhos, uma vez que Zwínglio quase nada havia deixado, pois tudo investia na obra.

Assim como o apostolo João se responsabilizou por Maria, Henry levou Anna com os filhos para sua casa, junto à sua família. Assumiu plenamente os cuidados paternais para com as crianças, supervisionando sua educação e quando o jovem Ulric alcançou idade foi enviado para Basileia custeado por Henry.

          Anna passou seus últimos anos vivendo para os filhos Regula, Ana, Guilherme, e Huldrych, de Zwínglio. Ainda que com menos intensidade continuou a atuar em seus esforços de atividades sociais junto à igreja e aos necessitados. Sua filha mais velha Regula herdou a beleza da mãe e a piedade dos pais. Casou-se com o jovem Rudolph Gualther, que se tornou o chefe da igreja em Zurique. Durante a terrível perseguição contra os reformados no reinado de Maria (a sanguinária) na Inglaterra, muitos refugiados procuram asilo na Suíça e vários encontraram abrigo na residência deste casal, entre tantos Grindal, que posteriormente foi constituído arcebispo de Canterbury. Após a morte de Regula o esposo escreveu: “ela soube afastar a tristeza e todo cuidado atormentador”, o que tão bem poderia ser dito de sua mãe Anna. A saúde de Anna foi se debilitando, mas enquanto teve forças jamais esmoreceu. Veio a falecer em 06 de dezembro de 1538.

O testemunho de Bullinger nos dá uma ideia do que foi a vida de Anna Reinhard Zwínglio:Não desejo um final de vida mais feliz. Ela faleceu tranquilamente, como uma luz suave, e foi para casa de seu Senhor, adorando e recomendando a todos nós a Deus”. Sua morte foi como sua vida - doce, tranquila, linda. A cena mais marcante de sua vida, e a mais dolorosa foi as mortes do marido e filho.

 

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião
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 Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Rute Salviano. Uma voz feminina na reforma. A contribuição de Margarida de Navarra à Reforma Protestante. São Paulo: Hagnos, 2010.

BAITER, H. Ulrich Zwingli e Gerold Meyer von Knonau.

GOOD, James I. Womem fo the Reformed Church. Published by The Sunday-School Board of the Reformed Church in the United States. 1901. [First Edition].

RUBLACK, Ulinka (ed). The Oxford Handbook of the Protestant Reformations [O Manual de Oxford das Reformas Protestantes]. Oxford: Oxford U.P., 2017.

STJERNA, Kirsi. Women and the Reformation. John Wiley & Sons, 2011.

TEIXEIRA, José Luiz Sauer. A atuação das mulheres nas primeiras comunidades cristãs. Revista de Cultura Teológica, v. 18, n. 72 - OUT/DEZ 2010.

UBIETA, Carmen Bernabé (Ed.) Mujeres com autoridade em el cristianismo antiguo. Espanã: Asociación de Te´plogas Esanõlas (ATE) e Editorial Verbo Divino, 2007.

VANDOODWAAR, Rebecca. Reformation Women: Sixteenth-Century Figures who Shaped Christianity's Rebirth. Reformation Heritage Books, 2017.

WARNICKE, Retha M. Women of the English Renaissance and Reformation. ABC-CLIO, 1983.

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As Mulheres na Vida e Ministério de Jesus

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[1] Esta se constitui em uma das primeiras, senão a primeira, obra no âmbito educacional, produzida por um reformador. A qual irei disponibilizar, em breve, no blog com a transcrição da dedicatória. Este trabalho foi selecionado por estudiosos como sendo culturalmente importante e faz parte da base de conhecimento da civilização como a conhecemos.

[2] Lembrando que o igualmente esforço extraordinário de Lutero em traduzir a Bíblia para a língua alemã, foi lançada somente em 1534.