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domingo, 10 de março de 2024

História da Igreja - Atanasio (293-373)

 

"Deus se fez homem para que o homem se tornasse Deus.

Atanásio

"o Milagre Central afirmado pelos cristãos é a Encarnação...”

C. S. Lewis

Atanásio é considerado um dos maiores teólogos da igreja cristã. Exerceu o bispado de Alexandria, sua terra de origem. Durante os debates em relação à divindade de Jesus Cristo ele foi intransigente no combate ao arianismo, que perdurou por pelo menos cinco décadas, pois eles não aceitavam que Jesus continha as duas naturezas divina e humana. Sua defesa tornou-se a base da teologia cristã que ainda é aceita em todas as vertentes genuinamente cristã.

Muito cedo ele sentiu-se vocacionado para a vida clerical, por seis anos ele exerceu a função de leitor o qual exigia uma vida devocional ilibada e um conhecimento básico das Escrituras. Em época de um número elevado de analfabetismo e de ausência de equipamento de som, o leitor tornava-se uma figura relevante. Quando se início aos embates com o arianismo Atanasio já estava exercendo a função de diácono (23 anos), portanto, já fazia parte do clero junto com padres e bispos. Tinha uma tripla função: auxiliar na elaboração da liturgia, fazer as leituras bíblicas e quando convidado podia também expor a homilia daquele dia.

Pesquisadores entendem que já neste tempo Atanásio escreveu ao menos duas obras “Contra os Gentios” e “Sobre a Encarnação”. Nesta segunda obra ele expõe pontos cardeais de sua teologia. Ele enfatiza a encarnação como o meio de salvação e o outro lado desta mesma moeda é a plenitude da divindade de Jesus Cristo. Em sua encarnação Cristo assume a plenitude de nossa humanidade e na sua divindade ele mantém a sua unicidade com o Pai e o Espírito Santo, desta forma, em Jesus Cristo (o apóstolo Paulo amava esta expressão “em Cristo”) de maneira que Ele traz o genuíno conhecimento do Pai, e provê vida eterna no lugar da morte. Nestas obras germinais ele já fundamentava toda sua teologia em defesa da unidade ontológica da substância (homoousios) do Pai e do Filho e por conseguinte do Espírito Santo. Para ele o arianismo era uma espécie de politeísmo cristão, pois Jesus Cristo era adorado como um deus menor (tese ainda adota pelos Testemunhas de Jeová). Seguindo o raciocínio deles o papel de Cristo no processo da nossa salvação torna-se secundário, uma vez, que somente Deus criador pode de fato realizar uma nova criação. Isso era inaceitável para Atanásio, mas muito aceitável por inúmeros teólogos no transcorrer da história da igreja, incluindo os nossos dias.

Ainda como coadjuvante (secretário) do bispo Alexandre, o jovem Atanásio desempenhou um papel fundamental nos bastidores do Concílio de Nicéia (325)[1], uma vez que ele não sendo bispo não poderia ter voz no plenário. Embora sendo um diácono, surpreendeu a todos os conciliares pela sua capacidade de manter-se firme nas mais difíceis e duras discussões teológicas, onde revela a cada embate um conhecimento profundo das Escrituras, que seus adversários têm cada vez mais dificuldade de se opor. Em razão do hercúleo esforço de Atanasio, o Concílio afirmou (alguns dizem confirmou) a divindade plena de Cristo contra a tese do arianismo. O Credo Niceno assim definiu a divindade de Cristo: “o Filho de Deus, gerado unigênito do Pai, isto é, da substância do Pai; Deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não feito, consubstancial ao Pai”. Podemos sempre descansar no fato de que para cada Ário que se levanta com ideias contrárias ao genuíno ensino bíblico, Deus em sua providência perfeita suscita um Atanasio (Agostinho, Lutero, Calvino...).

Com a morte do bispo Alexandre, logo após a promulgação do Credo Niceno, o jovem Atanásio (com apenas 30 anos) foi escolhido para sucedê-lo no bispado de Alexandria. Desde o início e durante todo o período restante de sua vida ele foi contestado, tendo em Eusébio de Nicomédia (não confundir com Eusébio de Cesareia) um órfão do arianismo, que lutava para reverter o resultado conclusivo do concílio de Niceia e para isso tentou de todas as formas, inclusive ilícitas, desacreditar o então bispo Atanasio.

Acusando-o sistematicamente diante do imperador Constantino, que se aborrecia facilmente com as questões teológicas e em seu afã de promover a unidade da igreja (seu instrumento de poder e dominação) acabou por ceder aos opositores e baniu Atanasio, sob acusação de heresia e perturbação da ordem pública. Essa foi primeira de uma série de cinco banimentos, e a cada vez Atanasio retornava ainda mais forte e convicto de seus posicionamentos teológicos. Seus opositores o apelidaram de "Anão Negro" foi a etiqueta que seus inimigos lhe deram, em decorrência de ser um bispo egípcio de pele escura e baixa estatura.[2] Mas na história ele se constituiu em um gigante da teologia ortodoxia cristã que estava sendo estabelecida.

Em certa ocasião sendo influenciado por pessoas de seu círculo pessoal o imperador Constantino ordena que Atanasio (em seus primeiros anos como bispo de Alexandria) recebesse Ário (que havia sido exilado) em sua Congregação, com o risco de degradação e banimento se desobedecesse. Atanasio simplesmente responde ao Imperador que não poderia receber uma pessoa que havia sido condenado (Concílio de Niceia) por toda a Igreja. Diante da postura dele Constantino o exilou para o posto avançado mais afastado do Império Romano no Ocidente: a cidade alemã de Treveris.

Nos quarenta e seis anos em que exerceu seu episcopado em Alexandria (328 a 373), então um dos maiores centros do cristianismo antigo, Atanasio enfrentou os mais duros embates teológicos e políticos da igreja cristã antiga. Além do imperador Constantino, seus sucessores Constâncio, Juliano, Valente tentaram se livrar dele, ou reduzi-lo ao silêncio. Também tem que enfrentar os órfãos de Ário, os cismáticos melecianos (do mentor Melécio de Licópolis), assim como os extremistas intransigentes do próprio concilio de Nicéia. Quase dezesseis anos de seu episcopado foram passados em exílios.

Com toda razão temos que concordar com o grande historiador da igreja Gonzales que expressando um consenso da maioria dos teólogos cristãos afirmam: “Atanásio foi, sem dúvida alguma, o bispo mais notável que chegou a ocupar a antiga sé de Alexandria e (...) foi também o maior teólogo de seu tempo”.

Uma de suas obras mais conhecida hoje é “Sobre a Encarnação do Verbo” – escrito ainda em sua juventude, que trata na verdade mais sobre a divindade do Filho antes dele assumir a nossa humanidade, do que sobre a encarnação propriamente dita. O que não tira o mérito da obra é que serviu de fundamentação para as teses consequentes da perfeita divindade de Cristo.

Atanásio faleceu em 373, aos 77 anos, sendo considerado um dos pais da Ortodoxia Cristã e um dos mais importantes doutores da Igreja.

  

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas

FERGUSON, Everett. História da Igreja: dos dias de Cristo à Pré-Reforma - Volume 1. Editora Central Gospel Ltda: Rio de Janeiro, 2017

GONZALEZ, Justo L. Uma história do pensamento cristão. V.1. Tradução Paulo Arantes, Vanuza Helena Freire de Mattos. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.

__________, Dicionário ilustrado dos intérpretes da fé. Tradução Reginaldo Gomes de Araújo. Santo André, SP: Editora Academia Cristã Ltda, 2005.

HURST, John Fletcher y ROPERO, Afonso. Historia geral del Cristianismo – desde los Orígenes a nuestros días. Espanha: Editorial CLIE, 2008.

LEWIS, C. S. Miracles. Nova Iorque: Touchstone, 1996 repr. 1947. [p.143].

ORSON, Roger E. História da teologia cristã: 2.000 anos de tradição e reformas. Tradução Gordon Chown. São Paulo: Editora Vida, 2001.

SANTO ATANÁSIO. Contra os pagãos - A encarnação do Verbo - Apologia ao imperador Constâncio - Apologia de sua fuga - Vida e conduta de S. Antão. São Paulo: Paulus, 2002. [Patrística vol. 18]. Está coleção é relevante para quem deseja estudar mais a fundo a História da Igreja.

O Credo de Atanásio - Paulo Anglada, Sola Scriptura: A Doutrina Reformada das Escrituras (São Paulo: Os Puritanos, 1998), 180-82.

O Credo Niceno – Paulo Anglada, Sola Scriptura : A Doutrina Reformada das Escrituras (São Paulo: Os Puritanos, 1998), 179-80.

 


[1] Considerado o mais importante dos Concílios dos primeiros séculos da Igreja Cristã. Realizado na cidade de Bitínia, contando com representantes de todas as partes da cristandade, incluindo a Índia, que enviaram seu bispo. Alcançou um número expressivo de trezentos bispos tendo em sua conclusão a presença do Imperador Constantino, que havia convocado o Concílio.

[2] Apenas Justo Gonzales faz essa citação entre aspas, mas não sita a fonte de sua afirmativa. Certamente Atanásio não era branco/loiro, pois era egípcio e portanto, no mínimo de pela escura. Certamente seus adversários focaram em sua pequena estatura e ampliaram a cor de sua pele.