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sábado, 25 de junho de 2022

Calvino e Suas Institutas – Uma Leitura: Introdução


            Nunca se falou tanto sobre pensamento reformado, teologia reformada, Calvino e calvinismo como nos dias atuais. Por outro lado, quão poucos são aqueles que verdadeiramente leram e estudaram as obras do reformador genebrino. O aspecto negativo de um academicismo superficial é que uma maioria ao ler um único livro sobre um determinado assunto começa a pensar que já sabe e domina aquele tema. Raríssimos são aqueles que se debruçam sobre um autor e suas obras e só se satisfazem após ter lido toda a sua obra e pesquisado tudo que se relaciona com elas.

            No Brasil temos um academicismo bíblico teológico especialista em resumo, síntese, sinopse, compêndio, resenha e índice. Uma parcela ao menos se deu ao trabalho de ler uma obra do autor ou tema abordado, outra parcela nem isso. Uns poucos deste vasto universo eclesiástico academicista tupiniquim de fato percorreram todo o caminho do conhecimento oferecido pelo autor estudado e referido, assim como a integralidade de suas obras. 

            João Calvino e sua vasta biblioteca bíblico-teológica têm sido citados por um numero crescentes de acadêmicos e pretendentes a acadêmicos. Esse número crescente se autodenomina de calvinistas e/ou reformados, sem nunca terem lido ao menos as Institutas em sua integra, ou algum dos seus comentários bíblicos ou pelo menos uma das mais de cem biografias a respeito deste personagem cuja personalidade e legado extrapolam os séculos e continuam ainda hoje impactando a história eclesiástica e teológica.

            Minha diminuta contribuição com esta série de artigos iniciada é de oferecer a oportunidade para que os meros mortais, entre os quais me incluo, possam ter contato direto com a obra teológica que se constituiu na menina dos olhos de João Calvino. A elaboração e reelaboração deste trabalho pastoral teológico ocuparam todos os anos ativos deste reformador de origem francesa, mas que se tornou genebrino por opção e que tinha como objetivo fundamentar o estudo e pregação dos textos bíblicos em base sólida fugindo dos desvarios especulativos, que contagiavam e continuam contagiando a genuína teologia bíblica[1].

            Para se alcançar um mínimo de conhecimento das Institutas é preciso estudar os comentários bíblicos e para se adquirir uma compreensão teológica dos comentários é preciso estudar as Institutas. Para Calvino as Institutas e os comentários são as duas faces de uma mesma e única moeda – o genuíno conhecimento bíblico-teológico.

            Minha proposta é a de percorrermos juntos, sem pressa, a estrada teológica proposta por João Calvino em suas Institutas da Religião Cristã. Em suas próprias palavras as Institutas contém a síntese do conhecimento mínimo que todo cristão, não apenas o eclesiástico e acadêmico, precisa adquirir para que possa viver em perfeita sintonia com todo o conhecimento de Deus revelado em toda a Escritura.

A única condição para o progresso espiritual é que permaneçamos sinceros e humildes.

João Calvino

 

As Dedicatórias

            Calvino tinha muito claro seus objetivos em relação às suas Institutas Cristãs,[2] de maneira que a escolha a quem dedica-las, uma praxe utilizada desde tempos passados, como por exemplo, o evangelista Lucas que dedica sua obra evangélica e histórica (Atos) ao excelentíssimo Teófilo, tem sua razão e propósito peculiar.

            É preciso lembrar que Calvino vive e escreve suas obras ainda no epicentro do processo da Reforma Protestante. A autoridade maior neste momento na França é justamente o rei Francisco I (1494 – 1547). No período de seu reinado (1515-1547) ele vivenciou duas das maiores mudanças cultural da História a expansão do Humanismo e do movimento da Reforma Protestante. Inicialmente tolerante, o rei Francisco I posteriormente mostrou-se hostil contra os reformados, que na França passaram a ser conhecidos por huguenotes.

            Seu prefácio dirigido especificamente ao monarca francês era na verdade uma carta (Prefatory Address) que foi incluída a partir da edição 1536, bem como em todas as demais que se sucederam tanto em latim quanto em francês, mas Calvino teve o cuidado de manter a data original no final do texto: "Na Basileia, em 1º de agosto do ano de 1536".

            O jovem reformador francês-genebrino pretende esclarecer o monarca sobre os falsos rumores que degradavam aqueles que defendiam os princípios propostos pelos reformadores. Era possível que o jovem teólogo nutria alguma esperança de que o rei pudesse corrigir sua ótica em relação ao movimento de Reforma, todavia os fatos posteriores deixaram claro que tais esperanças não se concretizaram.

            Calvino produz um texto onde se pode ver o equilíbrio entre a firmeza e convicção teológica e a reverência pela autoridade real. Ele apela para o senso de justiça na expectativa de que à luz dos fatos e argumentos alinhavados na correspondência o rei pudesse corrigir sua ótica e percepção de que os reformadores não se constituíam em perigo ou ameaça nem para o rei e muito menos para a França. Entretanto, estavam sendo tratados como bandidos: “alguns de nós são algemados com ferros, espancados com varas, alguns levados como motivo de chacota, alguns proscritos, outros mais brutalmente torturados, alguns forçados a fugir. Todos nós somos oprimidos pela pobreza, amaldiçoados com terríveis execrações, feridos por calúnias e tratados das formas mais vergonhosas[3].

Calvino contrapõe afirmando que os reformadores desejavam o bem estar do monarca e do povo, o que eles almejavam e buscavam de fato era a liberdade para vivenciarem as verdades cristãs como de fato estavam estabelecidas nas Escrituras; sem as deformações produzidas através dos séculos por um catolicismo romano corroído em suas entranhas pela corrupção politico-eclesiástico e a depravação moral de suas autoridades maiores, bem como os erros teológico-exegéticos crassos facilmente identificados e confrontados.

Outro ponto fundamental nesta carta que Calvino deixa claro ao rei é que o ensino teológico produzido por ele e outros reformadores não era algo novo, mas a recuperação da pura teologia bíblica apostólica e patrística. O que não significava endossar todos os pontos e vírgulas da teologia dos chamados Pais da Igreja, mas manter as balizas das doutrinas bíblicas por eles expostas ao longo dos séculos. Para Calvino, a exposição das Escrituras é em si mesmo um apelo a uma rica herança recebida! Ele deixa claro ao rei que a reforma da Igreja tinha como objetivo restaura-la e não deforma-la.

O jovem reformador francês-genebrino deixa claro ao monarca francês de que os protestantes davam abundantes e continuas provas de serem cidadãos leais, oravam regularmente pelo rei, demonstravam coragem e fortaleza como cidadãos e soldados. Mas não podiam abrir mão da verdade e do combate a toda sorte de vícios nefastos que corroíam o tecido social não somente da França, mas das nações.

Concluindo sua carta dedicatória Calvino apela com tom pastoral, de um coração e alma que sofre ao contemplar as atrocidades que estão sendo infligidas aos seus irmãos reformados franceses: "poderemos recuperar seu favor, se em um estado de espírito calmo e composto você ler uma vez esta nossa confissão, que pretendemos em vez de uma defesa perante Vossa Majestade".

Os fatos demonstram que se o rei Francisco I leu esse prefácio e a própria Institutas, pouco alterou sua postura diante do movimento reformado e na formulação de leis que dessem qualquer segurança aos huguenotes (reformados) franceses. Mas como tão bem sintetizou J. I. Packer, aqueles de nós, que se dispor a ler este prefácio e a preciosa obra teológica de Calvino haverão de descobrir uma mina que: "continua se abrindo como um verdadeiro tesouro de sabedoria bíblica sobre todos os principais temas da fé cristã". (PACKER, Prefácio, 2008, p. xiii).

Nota: Por causa de sua extensão disponibilizo a integra deste Prefácio (Carta) em artigo especifico conforme indicado abaixo nos artigos relacionados.

Utilização desde que citando a fonte

Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Reflexão Bíblica
http://reflexaoipg.blogspot.com.br/

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Referências Bibliográficas

CALVIN, Jean. As Institutas da Religião Cristã, edição clássica, em quatro volumes, tradução de Waldyr Carvalho Luz, com base na edição de 1559 em latim. São Paulo: Editora Cultura Cristã, Primeira Edição, 1984.

___________. As Institutas ou Instituição da Religião Cristã (da edição original francesa de 1541). Tradução e leitura de provas Odayr Olivetti; revisão e notas de estudo e pesquisa Herminsen Maia Pereira da Costa. 1ª edição. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002.

___________. As Institutas ou Instituição da Religião Cristã, em dois volumes, tradução de Carlos Eduardo de Oliveira [vol 1], Omayr J. de Moraes Jr. e Elaine C. Sartorelli [vol 2], com base na edição de 1559 em latim. São Paulo: Editora da UNESP, 2008 [vol 1] e 2009 [vol 2].

CALVINO, João. O Livro dos Salmos. Tradução Valter Graciano Martins. São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 1.

D'AUBIGNÉ, J. H. Merle. The Reformation in Europe in the time of Calvin. Vol. VIII. Translated William L. R. Cates. New York: Robert Carter and Brothers, 1879.

FERREIRA, Wilson Castro. Calvino: vida, influência e teologia. Campinas, SP: Edição de Luz Para o Caminho, 1985.

HALL, David W. e LILLBACK, Peter A. (Eds.). A Theological Guide to Calvin's Institutes – essays and analysis. Phillipsburg, New Jersey, P & R Publishing, 2008. [PACKER, J. I, Prefácio, p. xiii].

WILEMAN, Willian. John Calvin: his life, his teaching, and his influence. London: Robert Banks and Son.

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[1] Calvino publicou pela primeira vez suas Institutas em 1536. Esta primeira edição era bastante curta - nada comparada com os dois ou até quatro volumes, dependendo da edição e do idioma traduzido, que temos hoje. Ele continuou a fazer revisões e ampliações deste trabalho durante todo o resto de sua vida, que foram editadas em latim e francês. As edições em latim são as seguintes: 1536, 1539, 1543, 1550, 1559, poucos anos antes de seu falecimento. Esta última edição tem sido o texto base das melhores traduções para a língua inglesa e portuguesa.

[2] Embora “Instituição” traduza melhor o título, a obra tornou-se conhecida como Institutas. No século XVI, a palavra latina institutio [institutas] significava “educar”, “instruir”, “treinar”, expressando literalmente “instrução” e summam seria “sumário” ou “resumo”, ou seja, uma instrução resumida da fé cristã. Seu título original era: Institutas da Religião Cristã, envolvendo a soma de toda a piedade e tudo o mais que se deve saber sobre a doutrina da salvação: um livro digno de ser lido por todos os que zelam pela piedade (Christianae Religionis Institutio, totam fere pietatis summam, et quidquid est in doctrina salutis cognitu necessarium complectens; omnibus pietatis studiosis lectu dignissimum opus, ac recens editum).

[3] No prefácio do seu Comentário do Livro de Salmos, publicado em 1557, Calvino expõe essas atrocidades contra os huguenotes (reformados) em sua amada França e conclui com estas palavras: “se eu não me opusesse vigorosamente, quanto me fosse possível, eu não poderia desculpar-me, se fosse julgado frouxo e desleal.” (1999, Vol. 1, p. 39). Além de sua atuação pastoral, sua formação acadêmica em Direito o constrangia assumir a defesa daqueles cujo direito estavam sendo usurpados e condenados com argumentos falaciosos sendo acusados de crimes que poderiam levar a condenação e à morte.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Calvino - Prefácio das Institutas: Carta ao rei Francisco I da França

 


CARTA AO REI FRANCISCO I[1]

Ao Mui Poderoso e Ilustre Monarca,

FRANCISCO,

Cristianíssimo Rei dos Franceses,

seu Príncipe,

JOÃO CALVINO

Roga Paz e Salvação em Cristo

1. CIRCUNSTÂNCIAS EM QUE A OBRA FOI INICIALMENTE ESCRITA

No princípio, quando me apliquei a escrever esta obra, nada mais distante estava de minha mente, mui glorioso Rei, do que escrever algo que, em seguida, fosse dedicado a Vossa Majestade. Meu propósito foi tão somente transmitir certos rudimentos com os quais aqueles que são tocados por algum zelo de religião fossem instruídos na verdadeira piedade. Assumi este trabalho especialmente em prol de nossos compatrícios franceses, entre os quais vi muitos sofrendo de fome e sede de Cristo, e vi bem poucos deles imbuídos de um leve conhecimento a seu respeito. O livro em si testifica que foi essa a minha intenção, adaptada, como é, a uma forma de ensino simples e, seria possível dizer, até mesmo elementar.

Percebi, porém, que em vosso reino o furor e a ojeriza de certas pessoas perversas de tal modo prevaleciam que não se deixou nele lugar algum à sã doutrina. Por conseguinte, pareceu-me que eu estaria fazendo algo mui digno se escrevesse um livro que servisse, concomitantemente, na mesma obra, de instrução para os que estão desejosos de religião e de confissão de fé perante Vossa Majestade. Disso, podereis aprender a natureza da doutrina contra a qual ardem em fúria tais dementes, pessoas que hoje perturbam vosso reino com espada e fogo. E não temerei confessar que aqui abarquei praticamente toda a suma dessa mesma doutrina contra a qual gritam para que seja punida com prisão, exílio, proscrição e fogo, e seja exterminada em terra e em mar. Aliás, eu bem sei com que notícias eles têm saturado vossos ouvidos e vossa mente, com o fim de tornar nossa causa tão odiosa quanto possível a vossos olhos. Mas, como convém à vossa clemência, que peseis bem este fato: se bastasse meramente fazer acusação, então nenhuma inocência permaneceria, quer em palavras, quer em atos.

PERSEGUIÇÕES E CALÚNIAS

Suponha-se que alguém, para suscitar ódio, pretenda que essa doutrina, da qual ora estou tentando dar-vos conta e razão, há muito já foi condenada pelo consenso comum de todos os estados, e que muitíssimas sentenças têm-se fixado contra ela pelos tribunais. Seguramente, isso seria o mesmo que dizer que ela, em parte, tem sido violentamente rejeitada pela conjuração e o poder de seus oponentes; e, em parte, insidiosa e fraudulentamente oprimida por meio de suas falsidades, sutilezas e calúnias. É simplesmente uma violência que sentenças sanguinárias sejam lançadas contra essa doutrina sem uma audiência; é fraudulento que ela seja imerecidamente acusada de traição e vilania. Para que ninguém pense que, equivocadamente, nos queixamos dessas coisas, ó nobilíssimo Rei, que pessoalmente sejais testemunha de quantas falsas calúnias ela é, a cada dia, infamada diante de vós. É como se essa doutrina visasse a nenhum outro fim senão subverter todas as ordens e governos civis, destroçar a paz, abolir todas as leis, espalhar todos os senhorios e possessões – em suma, converter tudo em ruína! No entanto, Vossa Majestade, ainda nem ouvistes a mínima parte da acusação, pois monstruosas notícias se têm difundido por toda parte entre o povo. Se elas fossem verídicas, com justa razão o mundo inteiro poderia julgar essa doutrina e seus autores dignos de mil fogueiras e cruzes. Quem agora se admiraria de que o ódio público se tenha suscitado contra ela, quando se creem nessas acusações tão perversas? Eis por que todas as classes, de comum acordo, conspiram em condenar a nós, bem como à nossa doutrina. Os que se assentam em juízo, dominados por esse sentimento, pronunciam como sentenças os preconceitos que têm trazido dos lares. E creem que já se desincumbiram devidamente de seu ofício quando ordenam que alguém seja exposto à punição sem que seja convencido ou por sua própria confissão, ou por um testemunho seguro. Mas de que crime? Dessa doutrina condenada, dizem eles. Mas com que direito ela foi condenada? Ora, a própria fortaleza de sua defesa não visava desmentir essa mesma doutrina, mas sustentá-la como verídica. Aqui se elimina até mesmo o direito de cochichar.

2. SÚPLICA PELOS EVANGÉLICOS PERSEGUIDOS

Por essa razão, ó invencível Rei, não solicito de forma injusta que, pessoalmente, queirais tomar plena ciência de toda essa causa, a qual, até o momento, tem sido tratada à revelia, sem nenhuma ordem de direito, e com uma fúria impetuosa, em vez de gravidade judicial. E não penseis que aqui estou preparando minha própria defesa pessoal, para, com ela, voltar seguramente à minha terra natal. Ainda que eu considere minha pátria com aquele afeto natural que me vem, não sinto tanto pesar por estar excluído dela. Ao contrário, já abracei a causa comum de todos os piedosos, que é a do próprio Cristo e que, neste momento, se encontra em vosso reino tão menosprezada e pisoteada que parece já não ter mais remédio; e isso mais pela tirania de certos fariseus que por vossa aprovação.

Mas, como isso sucede, não me cabe dizê-lo aqui. Sem sombra de dúvida, nossa causa é grandemente afligida. Porquanto homens ímpios de tal modo têm prevalecido que a verdade de Cristo, se ainda não foi destruída nem dispersa, e ainda não morreu, ao menos se encontra escondida, sepultada e destituída de sua glória. E a pobrezinha Igreja, ou já foi devastada com mortandade cruel, ou banida para o exílio, ou de tal modo esmagada por ameaças e temores que nem mesmo ousa abrir a boca. Todavia, com tudo isso, com suas usuais fúria e demência, os ímpios insistem em torpedear um muro já socavado e, assim, completar a ruína para a qual tanto têm-se esforçado. No entanto, ninguém sai em defesa da Igreja e contra tais fúrias. Mas quem quer que deseje manifestar-se a fim de favorecer, de forma significativa, a verdade, dizem que se devem perdoar o erro e a imprudência dos homens ignorantes. Pois, assim falam, chamando de erro e imprudência àquilo que bem sabem ser a infalível verdade de Deus; e de idiotas àqueles a quem o Senhor outorgou os mistérios da sabedoria celestial! E, assim, todos se envergonham do evangelho!

Então, cabe a vós, ó sereníssimo Rei, não apartar nem vossos ouvidos nem vosso coração da defesa de uma causa tão justa; principalmente por ser um assunto de tanta importância: como a glória de Deus será mantida sobre a terra, como a verdade de Deus reterá seu lugar de honra, como o reino de Cristo permanecerá entre nós em bom estado de conservação. Isso, sem dúvida, é algo digno de vossa atenção, digno de vosso juízo, digno de vosso trono régio! Aliás, tal consideração faz um rei verdadeiro, a saber, reconhecer-se como genuíno ministro de Deus no governo de seu reino (Romanos 13.3 e seguintes); e, ao contrário, aquele que não reina com o fim de servir à glória de Deus, esse não governa regiamente, não passando de um salteador. Além do mais, engana-se todo aquele que espera grande prosperidade em um reino que não é regido com o cetro de Deus; quero dizer, com sua Santa Palavra. Porque o oráculo celestial não pode mentir, de modo que se proclama que o povo será disperso quando a profecia não se cumpre (Provérbios 29.18).

E o desprezo por nossa humildade não deve persuadir -vos desse comportamento. Aliás, temos plena consciência de que somos homens vis e de pouca importância; convém saber, diante de Deus, que somos míseros pecadores; e, aos olhos dos homens, bastante desprezíveis – se preferirdes, lixo e escória do mundo (cf. 1 Coríntios 4.13) e até mesmo as coisas mais vis que possamos nomear. De sorte que, diante de Deus, nada nos resta de que nos gloriarmos, salvo unicamente em sua misericórdia (cf. 2 Coríntios 10.17), por meio da qual, sem mérito nosso, temos sido salvos (Tito 3.5); e, diante dos homens, nada, exceto por nossa impotência (cf. 2 Coríntios 11.30; 12.5–9), a qual, até mesmo admiti-la ou confessá-la constitui a maior desonra entre os homens.

Nossa doutrina, porém, deve ser mantida invencível acima de toda a glória e acima de todo o poder do mundo, pois não é em nós que tem sua origem, e sim no Deus vivo e em seu Cristo, a quem o Pai constituiu Rei, para “governar de mar a mar, e desde os rios até os confins da terra” (Salmos 72.8; 71.7). E, para que de tal modo governe que, ferindo toda a terra com a vara de sua boca, ele a faça em pedaços, e com ela sua força e glória, como se fosse um vaso de barro, conforme o que os profetas profetizaram da magnificência de seu reino (Daniel 2.32–35; Isaías 11.4; Salmos 2.9). Aliás, nossos adversários gritam que falsamente tomamos a Palavra de Deus como pretexto nosso e impiamente a corrompemos. Ao lerdes nossa confissão, que Vossa Majestade julgueis, conforme vossa prudência, quão falsa é essa acusação e quão saturada é, não só de uma maliciosa calúnia, mas também de completo descaramento.

JULGUE-SE A DOUTRINA PELA PALAVRA DE DEUS

Todavia, aqui temos de dizer algo que vos abra uma via para lerdes nossa confissão. Quando o apóstolo Paulo quis que toda a profecia se conformasse à analogia da fé (Romanos 12.6), apresentou uma regra bastante clara para testar toda interpretação da Escritura. Ora, pois, se nossa interpretação for medida por essa regra de fé, a vitória estará em nossas mãos. Pois o que é mais consoante com a fé do que reconhecer que somos despidos de toda virtude, a fim de sermos vestidos por Deus? Que somos vazios de todo bem, a fim de nos enchermos dele? Que somos escravos do pecado, a fim de sermos libertados por ele? Cegos, a fim de sermos iluminados por ele? Coxos, a fim de que ele nos faça andar eretos? Fracos, a fim de sermos sustentados por ele? A fim de removermos de nós toda ocasião de vanglória, a fim de que somente ele se exiba de modo glorioso, e nós nos gloriemos nele (cf. 1 Coríntios 1.31; 2 Coríntios 10.17)?

Quando dizemos essas coisas e outras afins, nossos adversários interrompem e se queixam de que, nesse caso, subverteríamos não sei que luz da natureza, preparações imaginárias, livre-arbítrio e méritos. Pois não podem suportar que todo o louvor e toda a glória da bondade, da virtude, da justiça e da sabedoria repousem tão somente em Deus. Nós, porém, não lemos de alguém ser culpado por beber da profunda fonte da água viva (João 4.14). Ao contrário, foram seriamente repreendidos aqueles que cavaram para si cisternas, sim, cisternas esburacadas que não podem reter nenhuma água (Jeremias 2.13). Além disso, o que se harmoniza mais com a fé do que Deus prometer ser um Pai propício, quando Cristo é reconhecido como irmão e propiciador? Do que buscar confiantemente todo o bem e toda a prosperidade em Deus, cujo indizível amor se estendeu a nós, o qual “não poupou a seu próprio Filho, mas, antes, o entregou por todos nós (Romanos 8.32)”. Do que repousar sobre as infalíveis expectativas de salvação e vida eterna, quando consideramos que Cristo nos foi dado pelo Pai, em quem estão ocultos todos os tesouros?

Aqui se assenhoreiam de nós, gritando que tal certeza de confiança não está isenta de arrogância e presunção. Mas, como de nós mesmos nada devemos presumir, assim devemos atribuir a Deus todas as coisas; nem devemos despir-nos de vanglória por qualquer outra razão, senão para nos gloriarmos no Senhor (cf. 2 Coríntios 10.17; 1 Coríntios 1.31; Jeremias 9.23–24).

O que mais direi? Examinai sucintamente, poderosíssimo Rei, todas as partes de nossa causa; que nos considereis as pessoas mais malditas de quantas vivem hoje, a não ser que descubrais claramente que “somos oprimidos e injuriados por depositarmos nossa esperança no Deus vivo” (1 Timóteo 4.10), porque cremos ser “esta a vida eterna: conhecer o Deus verdadeiro e aquele a quem ele enviou, Jesus Cristo” (João 17.3). Por causa dessa esperança, alguns de nós somos encarcerados, outros açoitados, outros expostos ao escárnio, outros desterrados, alguns torturados com requinte de crueldade; alguns se veem forçados a fugir; todos nós somos oprimidos pela pobreza, amaldiçoados com medonhas execrações, feridos por calúnias e tratados de maneira extremamente vergonhosa.

NOSSOS ADVERSÁRIOS

Em contrapartida, que Vossa Majestade atenteis bem para nossos adversários (falo das ordens sacerdotais por cujos aceno e vontade todos os demais nos tratam com hostilidade) e noteis, juntamente comigo, o zelo que os move. Prontamente permitem a si e aos demais ignorar, negligenciar e menosprezar a verdadeira religião, a qual nos é transmitida nas Escrituras e deveria ter lugar reconhecido entre todos os homens. Pensam que não é de grande importância aquilo em que cada um crê que deva ou não manter sobre Deus e Cristo, contanto que simplesmente submeta sua mente, com fé implícita, ao juízo da Igreja. Profanaram a visão da glória de Deus com francas blasfêmias sem muita preocupação. Por que labutam com tamanhas ferocidade e amargura em prol da missa, do purgatório, das peregrinações e de outras parafernálias do gênero, negando que possa haver verdadeira piedade sem uma fé mais explícita (por assim dizer) em tais coisas, ainda que nelas nada se possa provar pela Palavra de Deus? Qual a razão, exceto porque “seu deus é o ventre” (Filipenses 3.19), e sua religião, a cozinha?! Se essas coisas forem tiradas, creem que não são cristãos, nem mesmo homens! Porque, mesmo que alguns deles se excedam em suntuosidade, enquanto outros vivem roendo as migalhas de pão seco, todos vivem de uma mesma panela, panela que, sem tal combustível, se tornaria não só fria, mas até mesmo viria a se congelar por completo. Por conseguinte, todos eles, quanto mais solícitos se mostram pelo ventre, mais zelosos e ferrenhos defensores se mostram de sua fé. Enfim, todos os homens se esforçam por alcançar este alvo: conservar ou sua regra intata ou seu ventre empanturrado. Nem ao menos um deles dá a mais leve indicação de zelo sincero.

3. ACUSAÇÕES DE ANTAGONISTAS REFUTADAS

A despeito disso, não cessam de assaltar nossa doutrina e de reprová-la e infamá-la com nomes que a tornam ainda mais odiosa ou suspeita. Eles a denominam de “nova” e “de origem recente”. Acusam-na de “duvidosa e incerta”. Inquirem se ela tem o direito de prevalecer contra a concordância de tantos pais e contra costumes antiquíssimos. Insistem em que reconheçamos que ela é cismática, porquanto faz guerra contra a Igreja, ou que a Igreja esteve morta por tantos séculos em que não se ouviu tal coisa. Finalmente, dizem que não há necessidade de tantos argumentos, porque, por meio de seus frutos, é possível conhecer o que ela é, já que tem produzido de si mesma tão grande aglomerado de seitas, tantas revoltas e tumultos e licenciosidade tão ferrenha. Na verdade, é-lhes muito fácil vilipendiar uma causa negligenciada diante de uma multidão crédula e ignorante. Mas, se também nos fosse dada a liberdade de falar, essa amargura que vomitam sobre nós com a boca cheia se dissiparia.

NOSSA DOUTRINA É NOVA?

Em primeiro lugar, ao denominá-la de “nova”, fazem profunda injúria a Deus, cuja Sagrada Palavra não merece ser tratada como novidade. Aliás, de modo algum duvido tratar-se de algo novo para eles, uma vez que também lhes são novos o próprio Cristo e seu evangelho. Mas, para os que sabem ser antiga aquela pregação de Paulo, no sentido de que “Jesus Cristo foi morto por causa de nossas transgressões e ressuscitou por causa de nossa justificação” (Romanos 4.25), nada novo encontrarão entre nós. Quanto a jazer desconhecida e sepultada por tanto tempo, a culpa está na impiedade do homem. Ora, quando ela nos for restaurada pela bondade de Deus, então deveria admitir-se a reivindicação de sua antiguidade, ao menos por direito de descoberta.

A mesma ignorância os leva a considerá-la duvidosa e incerta. Isso é precisamente aquilo de que o Senhor se queixa pela boca de seu profeta, a saber, que “o boi conhece seu possuidor, e o jumento, o dono de sua manjedoura, mas Israel não tem conhecimento, meu povo não entende” (Isaías 1.3). Mas, por mais que caçoem de sua incerteza, se tivessem de selar sua doutrina com seu próprio sangue, e com o risco de suas próprias vidas, então seria possível ver quanto ela significaria para eles. Outra coisa bem distinta é nossa certeza, a qual não teme os horrores da morte, nem mesmo o próprio tribunal de Deus.

COM QUE MILAGRES ELA É CONFIRMADA?

Ao demandarem de nós milagres, agem com extrema desonestidade. Pois não estamos forjando um novo evangelho; estamos retendo aquele mesmo evangelho cuja verdade todos os milagres que Jesus Cristo e seus discípulos operaram servem de confirmação. Mas, comparados conosco, eles possuem um estranho poder: até hoje, podem confirmar sua fé por milagres contínuos! Em vez de citarem milagres que podem incomodar uma mente de outro modo tranquila, os deles são por demais néscios e ridículos, bastante fúteis e falsos! Todavia, ainda que esses fossem prodígios maravilhosos, em momento algum deveriam pôrse contra a verdade de Deus, pois é necessário que o nome de Deus seja sempre e em todo lugar santificado, quer por meio de milagres, quer por meio da ordem natural das coisas.

E podemos ainda oportunamente recordar que Satanás tem seus milagres, os quais, ainda que sejam truques enganosos, e não atos autênticos, são de tal natureza que podem até mesmo enganar os ingênuos e desavisados (cf. 2 Tessalonicenses 2.9–10). Os necromantes e encantadores sempre foram muito famosos por seus milagres. A idolatria tem sido fomentada por milagres prodigiosos, os quais, nem por isso, nos sancionam a superstição dos mágicos ou dos idólatras.

Com esse aríete, os donatistas de outrora destroçaram a simplicidade da multidão, dizendo que realizavam milagres poderosos. Portanto, agora respondemos aos nossos adversários da mesma forma que Agostinho fez noutro tempo aos donatistas: Que o Senhor nos advertiu contra estes operadores de milagres quando predisse “que surgirão falsos cristos e falsos profetas operando grandes sinais e prodígios para enganar, se possível, os próprios eleitos” (Mateus 24.24). E Paulo nos advertiu que “o aparecimento do iníquo é segundo a eficácia de Satanás, com todo poder, e sinais, e prodígios da mentira” (2 Tessalonicenses 2.9). Mas dirão que esses milagres não são feitos pelos ídolos, nem pelos mágicos, tampouco pelos falsos profetas, mas pelos santos. Como se não entendêssemos que a arte de Satanás é transfigurar-se em anjo de luz (2 Coríntios 11.14)! Os egípcios de outrora cultuaram o profeta Jeremias que estava sepultado em sua terra, oferecendolhe sacrifícios e honras divinas. Acaso não usaram mal o santo profeta de Deus com propósitos de idolatria? Todavia, com tal veneração de seu túmulo, encontram a cura da picada de serpente. O que diremos, senão que sempre foi assim, e sempre será, que a justa punição de Deus é “enviar àqueles que” não receberam o amor da verdade “uma forte ilusão para que creiam na mentira” (2 Tessalonicenses 2.11)?

Muito bem, não nos faltam inteiramente milagres, os quais são infalíveis e não são tema de zombaria. Ao contrário, os “milagres” que nossos adversários apontam em seu próprio apoio são meras ilusões de Satanás, com as quais afastam o povo do verdadeiro culto de Deus para a vaidade.

4. FALSAS ALEGAÇÕES DE QUE OS PAIS SE OPÕEM AO ENSINO DA REFORMA

Além disso, injustamente, eles põem contra nós os Pais (quero dizer os primeiros escritores da época mais excelente da Igreja), como se neles tivessem os apoiadores de sua própria impiedade. Se a contenda fosse determinada pela autoridade patrística, o troféu da vitória mudaria de lado. Ora, esses pais escreveram muitas coisas sábias e excelentes. Todavia, em alguns casos, o que comumente sucede aos homens recaiu também sobre eles. Pois esses assim chamados filhos pios, com toda a sua agudeza de entendimento, juízo e espírito, idolatram somente as falhas e os erros desses pais. As boas coisas que esses pais escreveram não as fazem nem as notam, mas as entendem mal ou as pervertem. Pode-se dizer que seu único cuidado é extrair esterco do ouro. Então, com terrível reboliço, esmagam-nos como desprezadores e adversários dos pais! Todavia, não desprezamos os pais; aliás, se esse fosse nosso presente propósito, eu poderia, sem dificuldade alguma, demonstrar que a maior parte do que estamos afirmando hoje está de acordo com o ensino deles.

Não obstante, somos tão versados em seus escritos que sempre nos lembramos de que todas as coisas são nossas (1 Coríntios 3.21–22), para nos servir, não para exercer domínio sobre nós (Lucas 22.24–25), e que tudo pertence ao único Cristo (1 Coríntios 3.23), a quem devemos obediência em todas as coisas, sem exceção (cf. Colossenses 3.20). Aquele que não observa essa distinção nada terá por indubitável na religião; embora esses santos varões fossem ignorantes de muitas coisas, frequentemente discordavam entre si e, algumas vezes, até mesmo se contradiziam. Não é sem razão, dizem, que Salomão nos acautela para que não ultrapassemos os limites antigos que nossos pais puseram (Provérbios 22.28). Mas a mesma regra não se aplica às fronteiras dos campos e à obediência da fé, que deve ser de tal modo distribuída que “se esquece de seu povo e da casa de seu pai” (Salmos 45.10). Mas, caso se deleitem tanto com alegorias, por que não aceitam por Pais os apóstolos (mais que quaisquer outros), cujos limites e termos não é lícito remover (Provérbios 22.28)?

OS PAIS CONFIRMAM NOSSA DOUTRINA

Foi assim que Jerônimo interpretou esse versículo, e eles têm escrito suas palavras em seus cânones. Mas, se nossos oponentes querem preservar os limites impostos pelos pais, em conformidade com a compreensão que tiveram deles, por que eles mesmos os transgridem tão espontaneamente que sempre os adaptam? Um dos Pais foi quem disse que nosso Deus nem bebe nem come, e por isso não necessita nem de pratos nem de cálices; o outro, que os ritos sacros não demandam ouro, e que tais coisas não se compram com ouro, nem se deleitam com ouro. E, assim, transgridem esse limite quando, em suas cerimônias, deleitam-se tanto com ouro, prata, marfim, mármore, pedras preciosas, e creem que Deus não é adorado corretamente, a menos que tudo esteja envolto no excesso.

Pai também foi aquele que disse que, livremente, comia carne quando os outros dela se abstinham, porquanto ele era cristão. Portanto, transgridem os limites quando execram qualquer pessoa que deguste carne na Quaresma. Um dos pais disse que o monge que não trabalha com as próprias mãos deve ser considerado igual a um bandido; o segundo pai, que não é lícito aos monges viverem dos bens alheios, mesmo quando seja assíduo em contemplação, oração e estudo. Têm também transgredido esse limite quando põem os ventres preguiçosos dos monges nesses guisados e prostíbulos para que sejam saciados com a subsistência alheia.

Foi um pai que qualificou de terrível abominação ver uma imagem nas igrejas dos cristãos. Estão longe de permanecer dentro desses limites quando não deixam sequer um canto isento de imagens. Outro pai aconselhou que, depois de havermos exercido, em um sepultamento, o ofício de humanidade para com os mortos, que os deixemos em paz. Rompem esses limites quando fomentam perpétua solicitude para com os mortos. Foi um dos pais que disse que o corpo real não estava no sacramento da Ceia, mas somente o mistério do corpo, pois, assim, ele fala da palavra. Portanto, ultrapassam os limites quando fazem dele (um corpo) real e substancial.

Houve dois pais: um decretou que os que se contentam em participar de uma só espécie, porém se abstêm da outra, deveriam ser inteiramente excluídos da participação na Santa Ceia de Cristo; o outro defende veementemente que não se deve negar o sangue de seu Senhor ao povo cristão, o qual, ao confessá-lo, é concitado a derramar seu próprio sangue. Eles têm removido esses marcos quando ordenam, por uma lei inviolável, a própria coisa que o primeiro pai puniu com excomunhão e o segundo reprovou mediante uma razão válida.

Foi um pai que afirmou ser temerário quando, ajuizando-se alguma matéria obscura, assuma-se um lado ou o outro sem um claro e evidente testemunho da Escritura. Esqueceram esse limite quando estabeleceram tantas constituições, cânones e decisões doutrinais, sem qualquer palavra de Deus. Foi um pai que repreendeu Montanus por, entre outras heresias, ser o primeiro a impor as leis de jejum. Também foram além desses limites quando ordenaram jejuns mediante uma lei por demais rigorosa.

Foi um pai que negou que se proibisse o matrimônio aos ministros da Igreja, declarando que alguém é casto quando coabita com sua esposa. E outros pais concordaram com sua opinião. Ao imporem severamente o celibato a seus sacerdotes, foram muito além desse limite. Foi um pai que determinou que se ouça somente a Cristo, pois a Escritura afirma: “Ouvi-o” (Mateus 17.5); e que não devemos preocupar -nos com o que outros antes de nós disseram ou fizeram, mas somente com o que Cristo, que é o primeiro de todos, ordenou. Quando põem a si mesmos e a outros ministros no lugar de Cristo, não se obrigaram por esse limite, nem permitiram que outros o observassem.

Todos os pais, com um só coração, se aborreceram e com uma só voz detestaram o fato de que a Santa Palavra de Deus fosse contaminada pelas sutilezas dos sofistas e envolvida nas contendas dos dialéticos. Quando, em toda a sua vida, nada fazem senão encobrir e obscurecer a simplicidade da Escritura com contendas intermináveis e discursos sofisticados, porventura se mantêm dentro desses limites? Por que, se os pais fossem trazidos de volta à vida, e deparassem com tal arte de tagarelar, como essas pessoas chamam a teologia especulativa, nada há em que menos acreditariam que tais pessoas estivessem disputando sobre Deus! Meu discurso, porém, excederia o limite se eu decidisse rever quão audaciosamente rejeitam o jugo dos pais, cujos filhos obedientes desejam parecer. Aliás, meses e até mesmo anos não me seriam suficientes! Não obstante, são de um descaramento tão covarde e depravado que ousam repreender-nos por ultrapassarmos os antigos limites.

5. APELO AO “COSTUME” CONTRA A VERDADE

Mesmo em seu apelo ao “costume”, nada conseguem. Constranger-nos a nos rendermos ao costume seria o mesmo que nos tratar com extrema injustiça. Aliás, se os critérios humanos fossem corretos, seria necessário buscar o costume de homens bons. Mas, com frequência, ocorre algo muito diferente: o que se vê ser realizado pela maioria tem obtido a função de costume; enquanto as atividades dos homens raramente têm sido tão bem reguladas que as coisas superiores têm aprazido a maioria. Portanto, algumas vezes, os vícios privados de muitos têm levado ao erro público, ou, melhor, a uma concordância geral com os vícios, os quais esses bons homens querem agora transformar em lei. Os que têm olhos podem perceber que não só um oceano de males tem inundado a terra, como também muitas pragas danosas a têm invadido e criado um caos. Daí, ou alguém se desespera por completo das atividades humanas, ou se aferra a esses grandes males – ou, ao contrário, violentamente os sufoca. E esse remédio é rejeitado por nenhuma outra razão salvo que temos por tanto tempo nos acostumado a tais males. Mas, dando ao erro público um lugar na sociedade dos homens, ainda no reino de Deus sua eterna verdade deve ser ouvida exclusivamente e observada, uma verdade que não pode ser ditada pela extensão de tempo, pelo costume há muito radicado ou pela conspiração dos homens. Dessa maneira, Isaías, nos velhos tempos, instruiu os eleitos de Deus a não “chamar conspiração tudo o que este povo chama conspiração”, ou seja, não conspirar na conspiração do povo e em consenso com ela, “nem temer o que temem, nem ter isso por temível”, mas, antes, “santificai o Senhor dos Exércitos; seja ele vosso temor, seja ele vosso espanto” (Isaías 8.12–13).

Ora, pois, deixe que nossos adversários nos apresentem tantos exemplos quantos queiram, desde as eras antigas até as atuais. Se santificarmos o Senhor dos Exércitos, não viveremos grandemente atemorizados. Mesmo que tantas eras tenham concordado com semelhante impiedade, o Senhor é forte para dar livre curso à vingança, até a terceira e a quarta gerações (Números 14.18; cf. Êxodo 20.4). Assim, ainda que o mundo inteiro conspire na mesma perversidade, ele nos tem ensinado pela experiência qual é o fim dos que pecam com a multidão. Ele fez isso quando destruiu toda a raça humana pelo dilúvio, porém conservou Noé com sua pequena família; e Noé, com sua fé, a fé de um só homem, condenou o mundo inteiro (Gênesis 7.1; Hebreus 11.7). Em suma, o mau costume nada é senão um tipo de peste pública em que os homens perecem não menos do que quando caem com a multidão.

6. ERROS SOBRE A NATUREZA DA IGREJA

Com seu argumento poderoso, eles não nos impressionam de modo tão contundente que nos vemos forçados a admitir ou que a Igreja esteve morta por algum tempo, ou que agora estamos em conflito com ela. Seguramente, a Igreja de Cristo tem vivido e viverá enquanto Cristo reinar à destra de seu Pai. Ela é sustentada por sua mão; armada com sua proteção; e fortalecida por seu poder. Pois, certamente, ele concretizará o que uma vez prometeu: que ele estaria presente com os seus até o fim do mundo (Mateus 28.20). Contra essa Igreja, não temos agora nenhuma disputa. Porque, se alguém concorda com todo o povo crente, cultuamos e adoramos a um só Deus e a Cristo, o Senhor (1 Coríntios 8.6), como ele sempre foi adorado por todos os homens piedosos. Mas se extraviam, em grande medida, da verdade ao não reconhecerem a Igreja, a menos que a vejam com seus próprios olhos e tentem mantê-la dentro dos limites aos quais de modo algum ela pode estar confinada.

Nossa controvérsia gira em torno destas articulações: primeiro, contendem que a forma da Igreja é sempre aparente e observável. Segundo, eles põem essa forma na visão da Igreja romana e em sua hierarquia. Nós, ao contrário, afirmamos que a Igreja pode existir sem qualquer aparência visível, e que sua aparência não está contida nessa magnificência externa que nesciamente admiram. Ao contrário, ela tem outra marca completamente diferente, a saber, a pregação pura da Palavra de Deus e a legítima administração dos sacramentos. Eles se enfurecem se a Igreja nem sempre pode ser apontada com o dedo. Mas, entre o povo judeu, muitas vezes ela esteve de tal modo deformada que não restou nenhuma semelhança dela! Que forma cremos nós ela exibiu quando Elias se queixou de ter ficado sozinho (1 Reis 19.10, ou 14)? E como, depois da vinda de Cristo, ela como que desapareceu sem qualquer forma? Com quanta frequência ela, desde esse tempo, foi oprimida por guerras e heresias, de modo que dela não se emitiu nenhum esplendor? Se tivessem vivido naquele tempo, teriam crido que alguma Igreja ainda existisse? No entanto, Elias ouviu que ainda restavam sete mil homens que não haviam dobrado seus joelhos diante de Baal. E não devemos nutrir dúvidas de que Cristo sempre reinou sobre a terra desde que ascendeu ao céu. Mas, se os crentes, então, buscassem alguma forma visível, acaso não teriam perdido de vez todo o ânimo? Visto que somente o Senhor “conhece os seus” (2 Timóteo 2.19), por isso deixemos com ele que algumas vezes remova dos olhos dos homens a noção externa de sua Igreja. Confesso que essa é uma terrível visitação de Deus à terra. Mas, se a impiedade dos homens merece tal coisa, por que nos empenharíamos em fazer oposição à justiça divina? Foi assim que o Senhor, outrora, puniu a ingratidão dos homens. Pois, visto que se recusaram a obedecer à sua verdade e extinguiram sua luz, ele permitiu que seus cegos sentidos fossem, respectivamente, iludidos e mergulhados em trevas profundas, de modo a não restar nenhuma forma da verdadeira Igreja. Entretanto, ele preservou seus próprios filhos, ainda que dispersos e ocultos em meio a esses erros e a essas trevas. E isso não causa surpresa, pois ele sabia como preservá-los na confusão de Babilônia e nas chamas da fornalha ardente (Daniel 3).

OS BISPOS FORMAM A IGREJA?

Agora salientarei quão perigoso é seu desejo de ter as formas da Igreja julgadas por alguma sorte de pompa inútil. Esboçarei isso, em vez de explicar extensamente, para que não prolongue meu discurso interminavelmente. O papa romano, dizem, que ocupa a sé apostólica, bem como os demais bispos, representam a Igreja e devem ser tidos como a Igreja; portanto, eles não podem errar. Por que pensam assim? Porque, respondem, eles são os pastores da Igreja e foram consagrados pelo Senhor. Acaso Arão e os demais líderes do povo de Israel não foram também pastores? No entanto, Arão e seus filhos, ainda que designados sacerdotes, erraram quando fabricaram o bezerro (Êxodo 32.4). Por que, segundo esse raciocínio, aqueles quatrocentos profetas que enganaram Acabe (1 Reis 18.18) também não representavam a Igreja? E a Igreja estava do lado de Miqueias, um homem sozinho e desprezível, mas que falava a verdade. Porventura os profetas que se insurgiram contra Jeremias, vangloriando-se de que “a lei não podia perecer do sacerdote, nem o conselho do sábio, nem a palavra do profeta” (1 Jeremias 18.18; cf. 4.9), acaso não portavam o nome e a forma da Igreja? Porventura essa mesma pompa não foi exibida naquele concílio em que os sacerdotes, escribas e fariseus se reuniram para deliberar acerca da execução de Cristo (João 11.47ss.)? Ora, pois, vamos e nos apegamos a essa máscara externa, fazendo cismáticos Cristo e todos os profetas do Deus vivente; de modo inverso, os ministros de Satanás, os órgãos do Espírito Santo!

O CONCÍLIO DE BASILEIA [1431–1437]

Mas, se falam sinceramente, então que me respondam de boa-fé: em que região ou entre que povo se pensa que a Igreja residiu depois que Eugenio, por decreto do Concílio de Basileia, foi despojado do pontificado e substituído por Amadeus? Mesmo que se explodissem, não poderiam negar que o concílio era legítimo quanto aos arranjos externos, e foi convocado não só por um papa, mas por dois. Eugenio foi ali condenado por cisma, rebelião e obstinação, com todo o grupo de cardeais e bispos que tramaram a dissolução do concílio com ele. Não obstante, subsequentemente sustentado pelo favor dos príncipes, ele recuperou, ileso, seu ofício papal. Aquela eleição de Amadeus, devidamente solenizada pela autoridade de um concílio geral e santo, dissolveu-se como fumaça, exceto pelo fato de que o supracitado Amadeus foi apaziguado por um chapéu de cardeal, como um cão que ladra por um pedaço de osso. Desses rebeldes e obstinados hereges, entraram para a história todos os futuros papas, cardeais, bispos, abades e sacerdotes.

Aqui deveriam deter-se e se conter. Pois de que lado eles admitirão que se põe o nome de Igreja? Acaso negarão que o concílio foi geral, ao qual nada faltou de majestade externa, foi solenemente convocado por duas bulas, consagrado pelo presidente legado da sé romana e bem ordenado em todos os aspectos, preservando a mesma dignidade até o fim? Acaso admitirão que Eugenio e toda a sua companhia, por quem foram consagrados, eram cismáticos? Portanto, ou que definam a forma da Igreja em outros termos, ou os considerarão – por mais numerosos que sejam – como tendo sido, ciente e voluntariamente, ordenados por hereges, sendo cismáticos. Mas, se isso nunca fosse descoberto antes, que, sob esse eminente título “Igreja”, por tanto tempo tem tão arrogantemente apregoado ao mundo, ainda que tenham sido pragas mortais na Igreja, pode munir-nos com abundante prova de que a Igreja não está atrelada a pompas externas. Não falo acerca de seus costumes e trágicos malfeitos, com os quais enxameiam toda a sua vida, já que falam de si mesmos como os fariseus, que devem ser ouvidos, porém não imitados (Mateus 23.3). Se você devotar um pouco de seu lazer à leitura de nossas palavras, então, inequivocamente, reconhecerá que essa mesmíssima doutrina por meio da qual reivindicam ser a Igreja, não passa de um açougue mortal das almas, um tição, uma ruína e a destruição da Igreja.

7. ALEGA-SE QUE O ENSINO DA REFORMA RESULTA EM TUMULTO

Por último, não agem com suficiente candura quando, invejosamente, recordam quantos distúrbios, tumultos e contendas o ensino de nossa doutrina tem arrastado consigo, e quais frutos ela produz entre muitos. A culpa desses males tem sido injustamente lançada contra ela, quando isso deveria ser imputado à malícia de Satanás. Temos aqui, por assim dizer, certa característica da divina Palavra: ela nunca se manifesta enquanto Satanás estiver em repouso e cochilando. Essa é a marca mais segura e mais digna para distingui-la das doutrinas subjacentes, as quais prontamente se apresentam, sendo recebidas por todos com ouvidos atentos, e ouvidas por um mundo que aplaude. Assim, por alguns séculos, durante os quais tudo permaneceu submerso em trevas profundas, os homens eram a diversão e a zombaria desse senhor do mundo, e, não diferente de algum Sardanapalus, Satanás se manteve ocioso e em sono profundo. Pois o que mais ele tinha a fazer senão zombar e se divertir, em tranquila e pacífica posse de seu reino? Todavia, quando a luz brilha do alto, em certa medida dissipando suas trevas, quando “o homem mais forte” passou a perturbar e assaltar seu reino (cf. Lucas 11.22), então começou a abalar sua costumeira modorra e a empunhar suas armas. De fato, em primeiro lugar, ele incitou os homens à ação, para que, por esse meio, pudesse oprimir violentamente a verdade nascente. E, quando isso não lhe trouxe qualquer proveito, voltou-se aos estratagemas: incitou discordância e contendas dogmáticas através de seus catabatistas e outros chacais monstruosos, a fim de obscurecer e, por fim, extinguir a verdade. E agora ele persiste em sitiá-la com ambos os engenhos. Com as mãos violentas dos homens, ele tenta arrancar aquela verdadeira semente e busca (na medida em que estiver em seu poder) sufocá-la com suas ervas daninhas, a fim de impedi-la de crescer e frutificar. Mas tudo isso resulta ineficaz se atentarmos bem para o Senhor, nosso monitor, que há muito tem exposto as vilezas de Satanás diante de nós, para que não nos apanhe despercebidos; e nos armou com defesas bastante sólidas contra todos os seus intentos. Além do mais, quão grande malícia é a de atribuir à própria Palavra de Deus o ódio ou as sedições que os perversos e rebeldes incitam contra ela, ou as seitas que os impostores incrementam, tanto em oposição a ela como ao ensino dela! Todavia, esse não é um exemplo novo. A Elias, indagou-se se porventura não era ele quem perturbava Israel (1 Reis 18.17). Para os judeus, Cristo era sedicioso (Lucas 23.5; João 19.7ss.). A acusação de incitar o povo recaiu contra os apóstolos (Atos 24.5ss.). O que mais estão fazendo os que nos culpam hoje por todas as perturbações, tumultos e contendas que borbulham contra nós? Elias nos ensinou como devemos responder a tais acusações: não somos nós que difundimos erros por toda parte ou incitamos tumultos, mas aqueles que contendem contra o poder de Deus (1 Reis 18.18). Mas, ainda que só essa resposta seja suficiente para refrear sua temeridade, também, em contrapartida, pode socorrer a estultícia de outros que, com frequência, se deixam mover por tais escândalos e, assim perturbados, vacilar. Estes, pois, para que não desmaiem com essa perturbação, nem retrocedam, devem entender que as mesmas coisas que hoje nos ocorrem foram experimentadas pelos apóstolos em seu tempo.

Houve homens iletrados e instáveis que, para sua própria destruição, perverteram coisas que foram divinamente escritas por Paulo, no dizer de Pedro (2 Pedro 3.16). Havia desprezadores de Deus que, ouvindo que o pecado transbordara para que a graça superabundasse, prontamente concluíram: “Permaneceremos no pecado, para que a graça transborde ainda mais” (cf. Romanos 6.1). Ao ouvirem que os crentes já não estão mais debaixo da lei, prontamente gracejaram: “Pecaremos porque já não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça” (cf. Romanos 6.15). Houve pessoas que acusaram Paulo de ser um fomentador do mal (Romanos 3.8). Muitos falsos apóstolos se introduziram nas igrejas para destruí-las, as quais ele havia edificado (1 Coríntios 1.10–17; 2 Coríntios 11.3–15; Gálatas 1.6–11). “Alguns pregavam o evangelho movidos de inveja e porfia (Filipenses 1.15), “não sinceramente”, até mesmo maliciosamente, “pensando com isso aumentar o peso de suas cadeias” (Filipenses 1.17). Em outros lugares, o evangelho fez pouco progresso. “Todos buscavam seus próprios interesses, não os de Jesus Cristo” (Filipenses 2.21). Outros retornavam, “como cães, ao seu vômito, e, como porcos, a revolver-se na lama” (2 Pedro 2.22). Muitos degradavam a liberdade do Espírito à licenciosidade da carne (2 Pedro 2.18– 19). Muitos irmãos se introduziam ardilosamente, expondo, assim, os santos aos perigos (2 Coríntios 11.3-6). Entre esses mesmos irmãos, explodiam várias contendas (Atos 6; 11; 15). Nesse caso, o que os apóstolos deveriam fazer? Deveriam ter dissimulado por algum tempo, ou desistido totalmente do evangelho, abandonando-o, porque viam que era sempre semente de tantas disputas, fonte de tantos perigos, ocasião de tantos escândalos? Todavia, nas tribulações desse gênero, foram sustentados pelo pensamento de que Cristo é “rocha de escândalo e pedra de tropeço” (Romanos 9.33; cf. 1 Pedro 2.8; Isaías 8.14), “posto para a queda e o soerguimento de muitos... e por sinal aos que se contradizem” (Lucas 2.34). Armados com essa certeza, ousadamente avançaram em meio a todos os perigos de tumultos e escândalos. Convém que também nós sejamos sustentados pela mesma consideração, conquanto Paulo testifica em prol desta eterna qualidade do evangelho: que “ele é um aroma de morte para a morte” (2 Coríntios 2.15) para aqueles que perecem; para aqueles que já foram salvos, “ele é um aroma de vida para a vida” (2 Coríntios 2.16).

8. QUE O REI SE ACAUTELE DE AGIR SOB FALSAS ACUSAÇÕES: OS INOCENTES AGUARDAM A DEFESA DIVINA

Eu, porém, volto a vos falar, ó mui generoso Rei. De modo algum vos deixeis mover por aquelas vãs acusações com que nossos adversários tentam inspirar-vos terror: de que, por esse novo evangelho (pois assim o chamam), os homens se esforçam e só buscam oportunidade para sedições e impunidade de todos os crimes. “Pois Deus não é o autor de divisão, e sim de paz” (1 Coríntios 14.33); e o Filho de Deus não é “o ministro do pecado” (Gálatas 2.17), porquanto ele veio “destruir as obras do diabo” (1 João 3.8).

E somos também injustamente acusados de uma espécie de intenção que jamais se permita suscitar a mínima suspeita. Nós estamos, suponho eu, envidando todos os esforços para a sublevação dos reinos – nós, de quem jamais se ouviu sequer uma palavra sediciosa; nós que, quando vivemos sob vosso (governo), sempre fomos reconhecidos como tranquilos e simples; nós, que não cessamos de orar pela plena prosperidade vossa e de vosso reino, embora hoje sejamos fugitivos da pátria! Presumo que somos caçados de um modo selvagem por vícios libertinos! Ainda que, em nossas ações morais, muitas coisas sejam dignas de censura, nada merece tão grande censura do que isso. E, pela bondade de Deus, não temos haurido tão pouco proveito do evangelho que nossa vida não seja para esses mentirosos um exemplo de castidade, generosidade, misericórdia, continência, modéstia e de todas as demais virtudes.

É perfeitamente evidente que tememos e cultuamos a Deus; pois que, com nossa vida e com nossa morte, desejamos que seu nome seja santificado (cf. Filipenses 1.20) e nossos próprios adversários se veem constrangidos a dar testemunho da inocência e da justiça política de alguns de nossos homens, aos quais eles faziam morrer por aquilo que era digno de perpétua memória. Mas, se algumas pessoas suscitam tumulto sob o pretexto do evangelho – até aqui, nenhuma dessas pessoas tem sido encontrada em nosso ambiente –, se alguns adornam a licença de seus próprios vícios como a liberdade da graça de Deus – tenho conhecido muitos desse tipo –, há leis e penas legais pelas quais devem ser severamente refreados segundo seus méritos. Que o evangelho de Deus não seja blasfemado por causa da perversidade dos homens infames!

A perversa peçonha de nossos caluniadores tem sido, ó nobilíssimo Rei, em seus muitos detalhes, tão suficientemente desmascarada que não podeis inclinar um ouvido crédulo, além da medida, às suas calúnias. Temo, inclusive, que tantos detalhes sejam incluídos, visto que este prefácio já cresceu quase ao tamanho de toda a apologia. Nele, não tentei formular uma defesa, mas meramente dispor vossa mente a dar ouvidos à apresentação objetiva de nossa causa. Vossa mente está agora, de fato, desviada e alienada de nós, inclusive inflamada. E eu acrescentaria: até mesmo contra nós. Mas confiamos que possamos reconquistar vosso favor se, de um modo tranquilo, composto, quando lerdes esta nossa confissão, a qual desejamos que sirva de defesa diante de Vossa Majestade. Não obstante, suponhamos que os sussurros dos malevolentes de tal modo tapem vossos ouvidos que os acusados não tenham chance de falar em defesa própria, mas aquelas fúrias selvagens, enquanto concordardes com eles, sempre rugirão contra nós com prisões, açoites, flagelações, mutilações e fogueiras (cf. Hebreus 11.36-37). Então, seremos reduzidos ao extremo último justamente como ovelhas destinadas ao matadouro (Isaías 53.7-8; Atos 8.33). Mas isso só se dará se, “em nossa paciência, possuirmos nossas almas” (Lucas 21.19); e se esperarmos a forte mão do Senhor, a qual seguramente se manifestará em seu devido tempo, mostrando-se armada para livrar os pobres de sua aflição e também punir seus desprezadores.

Que o SENHOR, O REI DOS REIS, estabeleça vosso trono em retidão (cf. Provérbios 25.5), e vosso domínio, com equidade, poderosíssimo e eminentíssimo Rei.

De Basileia, 23 de agosto do ano de 1535.

 

Referências Bibliográficas

CALVIN, Jean. As Institutas da Religião Cristã, edição clássica, em quatro volumes, tradução de Waldyr Carvalho Luz, com base na edição de 1559 em latim. São Paulo: Editora Cultura Cristã, Primeira Edição, 1984.

CALVIN, Jean. As Institutas ou Instituição da Religião Cristã (da edição original francesa de 1541). Tradução e leitura de provas Odayr Olivetti; revisão e notas de estudo e pesquisa Herminsen Maia Pereira da Costa. 1ª edição. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002.

CALVIN, Jean. As Institutas da Religião Cristã, edição clássica, em quatro volumes, tradução de Waldyr Carvalho Luz, com base na edição de 1559 em latim. São Paulo: Editora Cultura Cristã, Segunda Edição, revista, com linguagem atualizada e simplificada, 2004.

CALVIN, Jean. As Institutas da Religião Cristã, edição especial, em quatro volumes, com notas para estudo e pesquisa, tradução de Odayr Olivetti, com base na tradução da edição de 1541 em francês. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2006.

CALVIN, Jean. A Instituição da Religião Cristã, em dois volumes, tradução de Carlos Eduardo de Oliveira [vol 1], Omayr J. de Moraes Jr. e Elaine C. Sartorelli [vol 2], com base na edição de 1559 em latim. São Paulo: Editora da UNESP, 2008 [vol 1] e 2009 [vol 2].

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Calvino e a Importância da Música (1ª Parte)
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Calvino e Sua Relação com os Pais da Igreja
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Protestantismo: Os Quatro João (John) da Reforma
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[1] Devo esse texto à tradução do eminente tradutor e inestimável Rev. Valter Graciano Martins, que fez uma tradução em linguagem mais acessível aos leitores brasileiros, com pequenos e quase imperceptíveis ajustes à luz de outro eminente tradutor Dr. e Rev. Waldyr Carvalho Luz que rompeu os 400 anos de silêncio desta inigualável obra de Calvino, ao verte-la para o vernáculo português, possibilitando aos calvinistas reformados no Brasil o privilégio de pela primeira vez lê-la. A diferença nas traduções é apenas de objetivos, o Dr. Waldyr faz a tradução como trabalho acadêmico como tese de seu doutorado e o Rev. Valter tem um objetivo mais pastoral. Todavia, ambas as traduções tem sua relevância e estão inseridas nas referências bibliográficas, assim como outras traduções.