É geralmente tomado como fato que a Reforma era hostil a
todas as formas de artes e ofícios; que era um movimento intelectual frio,
austero e que procurava acabar com a arte e a beleza e estabelecer uma
conformidade cinzenta em toda a Europa. Calvino, em particular, é visto como o
amargo inimigo da arte e do prazer estético, mostrando não apenas uma mera
falta de interesse pelas artes, mas se opondo a elas vigorosamente como as
ferramentas do diabo. Mas os fatos demonstram que não passa de uma grande
falácia.
A maioria das críticas a Calvino são decorrentes da
extrema ignorância de seus críticos sobre o trabalho realizado por esse
reformador. Tais críticos nem ao menos se deram ao trabalho de ler na integra,
assim como a maioria dos que se dizem calvinistas, de sua obra magna as
“Institutas da Religião Cristã”, e seus comentários bíblicos, que no Brasil
demorou quase um século e meio para ser traduzida em português, após a
implantação do protestantismo calvinista no país no final dos oitocentos.
Evidentemente que nem Calvino e nem suas obras
são inspirados, caso contrário ele deveria ser canonizado e suas obras inseridas
ao cânon das Escrituras. Nem mesmo os largos elogios que lhe são feitos por
seus admiradores seriam por ele endossado, pois ele sabia o quanto era pecador
e dependente permanentemente da graça de Deus. Sua teologia e seus comentários
são devedores a todos aqueles que o antecederam e que batalharam permanentemente
pela fé genuína que emana unicamente das Escrituras, que se constitui na
verdadeira tradição reformada.
Uma
das críticas mais ferinas e injustas sobre Calvino é que ele e sua teologia
eram nutridos por um intelectualismo-teológico antiartístico. Essa alcunha
pejorativa foi impressa de tal forma em Calvino que as pessoas passaram a ter
uma aversão permanente de tudo que se pareça com calvinismo.
Muitos
fazem concessões a Lutero, alegando que ele tinha um veio artístico e apoiou as
artes em seu processo de reforma religiosa. Mas quando se referem a Calvino os
termos são contundentes e implacáveis: “altivo e cruel”, “o mais fanático dos
líderes da Reforma”, “o mais implacável dos iconofóbicos”,[1] e
responsável por fazer “de uma só vez secar o coração e a alma”[2]. Na
Inglaterra, John Pyke Hullah participou de um ciclo de palestras no Instituto
Real, no qual afirmou que “Calvino, ao
contrário de Lutero, parece nunca ter reconhecido a música como um meio de
expressão religiosa, dificilmente para tê-lo apreciado como um auxílio à
devoção” (1875, p. 57-58). M. Douen um pastor protestante, em seu trabalho
sobre Saltério Huguenote Francês revela um viés indisfarçável contra Calvino em
suas duras palavras: "O Papa de
Genebra... um inimigo de todo prazer e distração, mesmo das artes e da música".
E não satisfeito ele continua: “Calvino é
do tipo dogmatismo autoritário, antiliberal, antiartístico, anti-humano e
anticristão” (1878-79, I, 377). Se tais definições partem de personas protestantes, não se deve
deixar impressionar as opiniões daqueles que não referendam a religião, como o
caso do líder revolucionário francês Voltaire
que em sua passagem por Genebra a descreve como uma cidade em que as pessoas
“nunca podem sorrir”, cujos cânticos extraídos do saltério bíblico são “versos
miseráveis” e seus pregadores são do tipo “monótono e mortal” e conclui que os
semblantes dos cidadãos genebrinos são tristes. O padre católico Mainbourg
descreve o calvinismo como uma religião seca que é um reflexo do temperamento
do próprio Calvino (cf. DOUMERGUE,
1977). Seria de fato Calvino
merecedor destas definições tão implacáveis? O que ele pensava sobre a arte e
mais especificamente sobre a música? O que ele fez em relação a elas?
O
reformador genebrino laborou em meio às mais intensas aflições e perseguições.
Não foi tempo de vitrais coloridos e capelas sistinas, mas de centenas e
milhares de mártires, onde mães e esposas assistiam seus filhos e esposos sendo
torturados e mortos das formas mais vis e cruéis; os huguenotes franceses foram
assassinados a sangue frio; quais os motivos que tinham para que ornamentassem
seus santuários com estátuas e quadros, para que construíssem catedrais
românicas ou góticas!
Outro
aspecto negativo da época de Calvino foi sem dúvida os excessos praticados em
nome de uma religiosidade totalmente desconectadas dos fundamentos bíblicos. A
pintura, escultura e acentuadamente a música eclesiástica estavam carregadas de
licenciosidade e muitas explicitamente depravadas, a ponto de ser condenada até
mesmo pelas lideranças católicas romanas, a grande patrona destas expressões
“artísticas”. O famoso e tão celebrado Concílio de Trento considerou tais
expressões de “arte” como sendo aberrações, em prejuízo à genuína arte. O
reformador de Genebra tinha plena ciência de todos esses excessos e não fechou
seus olhos para esta triste realidade, de maneira que para inibir tais
expressões antibíblica estabeleceu critérios extremamente rígidos à luz de uma
concepção bíblico-teológica quanto à arte e à música na esfera eclesiológica.
Apesar do contexto, exemplificado acima, Calvino jamais
abriu mão da genuína arte e música. Em suas Institutas e nos comentários
bíblicos podemos verificar sua concepção de arte original e encantadora. Para
ele a arte, em todas as suas formas, está dentro do contexto da graça comum de
Deus em relação ao ser humano criado à sua imagem e semelhança. A beleza
indescritível da criação – “e viu Deus que era bom” – e mais especificamente na
criação do ser humano – “e viu Deus que era muito bom” – refletem a beleza e
glória do próprio Deus. Ainda que o pecado tenha deturpado esse reflexo da
beleza divina, a natureza e o próprio ser humano ainda são capacitados por Deus
a expressarem coisas lidas e maravilhosas que enchem os olhos e alegram a alma.
De forma desequilibrada muitos teólogos calvinistas se
concentram na graça especial, relacionada à salvação, e colocam na periferia a
graça comum; por seu lado os críticos afunilam ainda mais e miram todo seu
arsenal anti-calvinista na doutrina da predestinação e ignoram completamente
sua teologia da graça comum. Mas para Calvino a graça comum não é menos
considerável ou menos real do que a graça especial – são os dois aspectos da
mesma teologia. A vida pós-queda somente é suportável em decorrência da
manifestação permanente da graça comum, pela qual Deus distribui dons a todos
os seres humanos – faz chover para bons e maus. Calvino declara: “não nego que sejam dons de Deus todas as
virtudes e excelentes qualidades que são vistas nos infiéis” [...] E
conclui ele afirmando que todas essas virtudes, ou como ele prefere denominar -
imagens de virtudes – “são dons de Deus,
visto que nada é de algum modo louvável que não venha dele” (Institutas
III, 14.2). E comentando este aspecto do pensamento de Calvino o Rev. John
Marcarthur conclui que a fonte de qualquer verdade é decorrente da revelação de
Deus e quando os incrédulos tratam a respeito da verdade eles vão ao encontro
da verdade divina e não o contrário (2005, pp. 508-509). Deus nunca abriu mão
deste mundo e permaneceu atuante, não apenas na criação, mas igualmente na humanidade
“através das graças universais como a capacidade de exercitar excelentes virtudes. Por
cause disso, o cristão não deve rejeitar a priori todos os frutos provenientes
da cultura humana” (ALMEIDA, 2007, p.
73).
Assim sendo, esta graça comum, distinta da graça especial
e da comunidade da fé, se constitui na base da sociedade humana - com sua
ciência, sua indústria, sua filosofia e sua política. Quando teólogos e
historiadores cirurgicamente amputam do pensamento teológico de Calvino a graça
comum e mais alguns outros aspectos, o que sobra é uma teologia totalmente
mutilada e desfigurada, hedionda e repulsiva – mas, isso não é mais calvinismo.
A razão para que tratemos da graça comum é porque nela
encontram-se as artes que “são instiladas
por Deus em nossos entendimentos” e que nos fazem “contemplar a bondade de Deus”, que se constitui no “único autor e mestre de todas essas artes”,
pois todas “as artes procedem de Deus e
dever ser consideradas invenções divinas” (Comentário Isaías 28.29;
Comentário Êxodo 31.2).
E o que Calvino quer dizer por “artes”? Os precipitados
ou mal intencionados apressam em afirmar que ele se refere apenas as artes
liberais e mecânicas, mas certamente o entendimento de Calvino é muito mais
amplo, como ele deixa claro em seu comentário de Gênesis (4.20): “Agora, embora a invenção da harpa, e de
instrumentos musicais semelhantes, possa ministrar ao nosso prazer, e não à
nossa necessidade, ainda assim não deve ser considerado supérfluo: muito menos
merece, por si só, ser condenado”. Fica claro que ele não condena ao
inferno as artes que visam o deleite (contentamento, gozo, prazer, alegria, satisfação).
Sua única e inflexível ressalva é que este deleite não pode jamais estar
desconectado do “temor de Deus e às
necessidades comuns da sociedade humana”, a regra legítima para aprovar ou
reprovar qualquer expressão de arte, o que nenhum cristão em sã consciência
pode negar. Ele não tinha uma visão romântica de que todas as expressões
artísticas, incluindo a música, são sagradas ou que as palavras não importam.
Ele conhecia suficientemente bem a natureza humana decaída e sabia que a mente
humana era uma fábrica permanente de ídolos, e que o poder peculiar das artes
de influenciar e transformar as torna uma força perigosa se usadas de maneira
errada.
Calvino
rejeitou com veemência a ideia, então vigente, de que imagens e arte
representacional deveriam estar na igreja como "livros para os
indoutos". Outros sucumbiram à tentação de exagerar o adorno de seus
templos, mas para ele a verdadeira beleza da igreja não estava na decoração ou
nas imagens, mas na vida espiritual e na unidade dos seus membros. Por esta
razão foi intransigente em não transformar o culto e/ou templo em um teatro ou
galeria de arte - mantendo firme a doutrina de que a pregação da Palavra e a
administração dos sacramentos deveriam ser primordiais nas celebrações e nos
espaços cúlticos reformados. O que em hipótese alguma prova que Calvino não
valorizasse as artes e a particularmente a música.
E para aqueles que ainda não estão satisfeitos, em seu
prefácio ao comentário do Saltério de Genebra (metrificados dos salmos bíblicos)
explicitamente revela o alto grau de importância e relevância que ele tinha
para com a música:
Importância
da Música
Agora,
entre as outras coisas apropriadas para recriar o homem e dar-lhe prazer, a
música é a primeira ou uma das principais; e é necessário que pensemos que
é um presente de Deus designado para esse uso. Além disso, por isso,
devemos ter mais cuidado para não abusá-lo, por medo de sujá-lo e contaminá-lo,
convertendo-o em nossa condenação, onde foi dedicado ao nosso proveito e
uso. Se não houvesse outra consideração, além disso, deveria realmente nos
levar a moderar o uso da música, para fazê-la servir a todas as coisas
honestas; e que isso não deve dar ocasião para darmos livre rédea à
dissolução, ou nos tornarmos efeminados em delícias desordenadas, e que não
deve se tornar o instrumento da lascívia nem de qualquer vergonha.
Poder
da Música
Mas
ainda há mais: dificilmente existe no mundo algo que seja mais capaz de virar
ou dobrar dessa maneira a moral dos homens, como Platão considerava
prudentemente. E, de fato, descobrimos por experiência que ela tem um
poder sagrado e quase incrível para mover corações de uma maneira ou de
outra. Portanto, devemos ser ainda mais diligente em regulá-la de tal
maneira que nos seja útil e de modo algum perniciosa. Por essa razão, os
antigos doutores da Igreja se queixam com frequência disso, de que as pessoas
de seu tempo eram viciadas em canções desonestas e sem vergonha, que não sem
motivo se referiam e chamavam de veneno mortal e satânico por corromper o
mundo. Além disso, ao falar agora de música, entendo duas partes: a letra,
ou assunto e conteúdo; segundo, a música ou a melodia. É verdade que
toda palavra ruim (como disse São Paulo) perverte o bom modo, mas quando a
melodia está presente, ela penetra muito mais fortemente o coração e entra
nela; da mesma maneira que através de um funil, o vinho é derramado no
vaso; assim também o veneno e a corrupção são destilados nas profundezas
do coração pela melodia[3].
Para os que acusam Calvino de ser meramente racional e
destituído de emoções é preciso destacar a importância que ele dá ao “coração”
tanto quanto ao intelecto, como as bússolas a nortear a vida cristã. Em
sintonia com a grande orquestra bíblico-teológica por ele regida, o “coração”
permeia as páginas de suas Institutas, com frequência cada vez mais singular –
“mas a língua sem o coração é muito
desagradável para Deus”.
Como podem seus críticos o acusar de produzir
uma teologia “sem intestinos”, sem emoção, sem sentimento? Como aceitar
passivamente as palavras injuriosas de Ferdinand Brunetière, um importante
estudioso da literatura francesa: “o horror à arte é e deve permanecer um dos traços
essenciais e característicos do espírito - da Reforma em geral e da Reforma
Calvinista em particular” (PHILIP Benedict, apud FINNEY, 1999, p. 21).
Todas
essas falácias serão questionadas no próximo artigo quando haveremos de demonstrar
de forma concreta o genuíno pensamento de Calvino sobre a música como uma
legitima expressão, primeiramente de louvor e adoração a Deus, mas também como
fonte de alegria e prazer para a vida do cristão[4].
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes,
Ivan Pereira
Mestre
em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro
Blog
Historiologia
Protestante
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Protestantismo – Calvino
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Protestantismo: Os Quatro
João (John) da Reforma
VERBETE – Pais Apostólicos
Referências
Bibliográficas
ALMEIDA, Fernando de. Calvino e cultura: uma abordagem
histórico-teológica sob a perspectiva da doutrina da graça comum. Dissertação
de Mestrado em Ciências da Religião. São Paulo: Universidade Presbiteriana
Mackenzie, 2007. [Orientador: Dr° Paulo Rodrigues Romeiro].
BENEDICT, Philip. Calvinism as a Culture? Preliminary Remarks on
Calvinism and the Visual Arts. In: FINNEY, Paul Corby
(Ed.). Seeing beyond the Word Visual
Arts and the Calvinist Tradition. Michigan: Eerdmans Publishing Company
Grand Rapids, 1999. Cap. 2, p. 19-46.
CALVINO, JOÃO. Institución de Ia
Religión Cristiana. Países Bajos: FELiRé, 1986.
COSTA, Hermisten M. P. A Imagem
de Deus no Homem segundo Calvino, p. 7. <http://www.monergismo.com/textos/jcalvino/A_lmagem_Deus_Homem
DOUEN, Orentin. Clément Marot et le Psautier Huguenot.
Paris: 1878-79, I, p. 377.
DOUMERGUE,
Emile. Music in the ou Work of Calvin.
Banner of Truth magazine,
1977 (January).
ELWELL, Walter A. (org).
Enciclopédia Histórico-teológica da
Igreja Cristã. São Paulo, Vida Nova, 1990;
FINNEY, Paul Corby (Ed.). Seeing beyond the Word Visual Arts and the Calvinist Tradition.
Michigan: Eerdmans Publishing Company Grand Rapids, 1999.
GARSIDE, Charles Jr. Calvin's
Preface to the Psalter: A Re-Appraisal. The Musical Quarterly, Vol. 37, No.
4 (Oct., 1951), pp. 566-577. Published by: Oxford University Press Stable: http://www.jstor.org/stable/739611
KUIPER, Herman. Calvin on Common
Grace. Grand Rapids, Michigan: Oosterbaan & Le Cointre, Goes,
Netherlands and Smitter Book Company, 1928.
MACARTHUR, John. Pense
Biblicamente. São Paulo: Hagnos, 2005.
HULLAH, J. P. Hullah. The History of Modem Music. 2nd ed.
London: 1875.
[1] Pessoa que tem medo ou receio à
aproximação ou convívio cultural e social de imagens.
[2] Estas expressões estão são citadas em
um discurso de Emile Doumergue, um dos mais eminentes dentre os biógrafos de
Calvino e foi proferido na 'Salle de la Reformation', em Genebra, em abril de
1902. Foi traduzido e impresso na Princeton Theological Review, outubro de
1909.
[3] Da edição fac-símile de: "Les
Pseaumes mis en rime francoise por Clément Marot e Théodore de Béze. Mis
musique a quatre parties por Claude Goudimel. Par les herériers de François
Jacqui" (1565) -
http://www.spindleworks.com/library/calvin/calvinpsalterpreface.html
[4]
Neste artigo e no próximo utilizo como roteiro a palestra proferida pelo
eminente biógrafo de Calvino Emile Doumergue, conforme referencias
bibliográficas.
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