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quinta-feira, 4 de junho de 2020

Calvino: Academia de Genebra



A figura de João Calvino ficou fixada como teólogo e pregador, de maneira que sua relevância na área da educação ficou relegada a um subproduto de sua trajetória como reformador, todavia, sua preocupação inesgotável com a questão educacional não pode de maneira alguma ser minimizada. Calvino tinha premente em sua cosmovisão reformada de que implantar e desenvolver um sistema educacional para todas as pessoas, independente da idade ou classe social, era a única forma de perpetuar os efeitos positivos produzidos pela Reforma, caso contrário todo esse hercúleo esforço se perderia nos anais da história. Aqui está a origem e a motivação que moveu Calvino na efetivação e continua modernização do sistema de ensino na Academia de Genebra.  
A pouco tempo se comemorou os 500 anos do nascimento de Calvino e os 450 da fundação da Academia de Genebra (1559). Esta Academia tinha como propósito amalgamar a teologia com as demais fontes de saberes acadêmica; o preparo dos futuros ministros (pastores) na Academia esta dentro de um âmbito muito mais amplo de transformação da Sociedade. Evidente que um projeto desta envergadura não seria implantado sem produzir tensões em relação a propostas distintas e até divergentes de tantas outras que na esteira da Reforma estavam sendo desenvolvidas.
A estruturação de uma educação teológica sempre esteve fortemente estabelecida na agenda de Calvino desde os seus primeiros dias em Genebra (1536). Primeiramente como Professor e Mestre nos textos bíblicos, onde ele inicia suas aulas no Segundo Testamento com as epístolas paulinas. Mas logo ele percebe que o ensino não estava inserido dentro de um projeto teológico-social da cidade de Genebra.
No período em que foi banido da cidade de Genebra (1538) ele foi morar e trabalhar na cidade Estrasburgo[1] e durante os três anos que ali permaneceu o convenceu de que a formação de pastores e outros que podiam liderar e servir à igreja e à sociedade era de fundamental importância. Na cidade de Martin Bucer, havia um ginásio famoso e conhecido, criado por Jean Sturm, que mais tarde se tornou a Cidade Universitária e Calvino estabeleceu esse modelo como meta para Genebra.
Quando retorna à Genebra além de suas funções pastorais ele se entrega completamente à estruturar a questão educacional da cidade. Seu projeto incluía um sistema de ensino fundamental no vernáculo para todos, incluindo leitura, escrita, aritmética, gramática e religião, pois sua visão educacional extrapolava as paredes eclesiásticas, pois entendia que se deveriam instruir os jovens e demais pessoas não apenas “para o ministério [pastoral], bem como para o governo civil” (REID, 1954, p. 63), ou seja, para todas as demais áreas da Sociedade. Embora houvesse algum tipo de educação formal disponível em Genebra, “Calvino aprimorou notavelmente o sistema existente, estabeleceu ensino superior, recrutou professores de primeira linha e advogou incessantemente pelo bem-estar da academia e de seus professores perante o magistrado” (KURIAN e LAMPORT, 2015, p. 536).[2] Esse alto nível de envolvimento clerical nas definições educacionais da cidade estabeleceu um padrão que foi sendo alterado até sua extinção a partir do século XVIII.
Uma confluência de acontecimentos contribuiu decisivamente para o estabelecimento do sistema de ensino de Calvino. O primeiro é que a liderança de Calvino foi extremamente fortalecida pelas mudanças políticas que ocorreram na cidade de Genebra; foi estabelecido um fundo educacional; o encerramento da Academia de Lausanne,[3] conduzida por seu querido amigo Pierre Viret, proporcionou uma abundância de professores (Mestres) experientes desde seu inicio de atividades.[4] Em 1559, a Academia de Genebra foi inaugurada e o grande reformador e amigo Teodoro Beza[5] foi nomeado reitor.
A Academia consistia em uma schola privata, um tipo de escola primária e secundária, e uma schola publicam, que se destinava mais a uma universidade onde se podia estudar teologia, e posteriormente direito e medicina. Beza e Viret saíram de Lausanne e foram trabalhar em Genebra, assim como Antoine le Chevalier como professor de hebraico, François Bérauld como professor de grego e Jean Tagautcomo professor de filosofia, enquanto Jean Randon, também de Lausanne, se tornou o regente da schola privata.
A faculdade (mais tarde denominada College Calvin) tinha como propósito fornecer educação em latim para meninos do ensino médio e fundamental, além de incentivar a vida piedosa e a disciplina cristã[6]; a Escola Superior da Academia (Schola Publico) era onde se preparava os futuros Mestres em teologia e recebiam estudos do grego e hebraico. É claro que ele, Bucer e tantos outros professores viam suas aulas na Academia como uma extensão de suas funções de ministro (pastor). Além disso, Calvino desempenhou um papel importante, apesar de uma saúde frágil, na ligação entre a Academia, Companhia de Pastores, responsável pela supervisão do ensino incluindo a nomeação e demissão dos professores e o Conselho Municipal, responsável pelo pagamento do pessoal e questões legais. Evidente que esta administração compartilhada não ficou desprovida de muita tensão, principalmente quando havia escassez financeira.
O prédio onde funcionaria a Academia foi dedicado em 5 de junho de 1559, com 600 pessoas presentes na Catedral de St. Pierre. Calvino arrecadou dinheiro para o fundo educacional junto a muitos expatriados franceses e outros que encontraram abrigo em Genebra, e muitos dentre eles tinham sido atraídos para o novo centro acadêmico de Genebra pela própria figura de Calvino. A campanha de arrecadação foi um sucesso, e a oferta de cinco centavos (Botli), da esposa de um padeiro, bem como os 312 florins doados pelo impressor Robert Estienne, garantiu a construção de um belo edifício novo com vista para o lago.
 A Escola Pública, que tinha sete séries, matriculou 280 alunos durante o ano inaugural, e o Seminário da Academia se expandiu para 162 alunos em apenas três anos. O novo prédio logo se tornou pequeno demais e, em 1562, Calvino e Beza começaram a dar palestras no antigo prédio da igreja de Notre-Dame-la-Neuve, que ficou conhecido como Auditório, perto de a catedral de St. Pierre.[7] Ambas as escolas naquele período inicial não cobravam mensalidades e desta forma foram “precursoras da educação pública moderna”. Poucas instituições acadêmicas europeias experimentaram um crescimento tão rápido em tão pouco tempo. Quando da morte de Calvino em 1564, havia 1.200 estudantes na faculdade. No início, a escola era apenas uma universidade teológica, posteriormente, ainda que Calvino não mais pudesse contemplar, foram adicionadas com sucesso as faculdades de direito e medicina.
            Mas este centro acadêmico reformado em Genebra extrapolou em muito suas fronteiras geográficas não somente da Europa, mas de Continente. Calvino jamais idealizou uma Academia de Genebra voltada para si mesma, mas como uma agência evangelística e missionária. Aqueles que por ela passavam tornavam-se testemunhas vivas do poder das Escrituras e agora capacitadas e habilitadas retornavam para seus países de origem e mesmo para outras nações compartilhando a genuína mensagem Bíblica. João Calvino sabia que a genuína fé salvadora repousa no conhecimento e não na ignorância (Jo 17.3) e que a verdade apreendida que liberta é decorrente da genuína graça (Jo 8.32). Para Calvino, a consequência da fé é um esforço permanente para construir o Reino de Deus na terra. Alguns exemplos concretos dessa proposta da Academia genebrina- calviniana:
John Knox estudou na Academia e declarava que não havia na Europa escola semelhante. Levou não apenas os princípios da Reforma religiosa à sua terra natal, a Escócia, como igualmente os princípios educacionais calviniano que fizeram da Escócia semianalfabeta uma nação referência na educação na Europa.
Refugiados ingleses que encontram acolhimento em Genebra e ali estudaram na Academia, ao retornarem para seu país produziram a "Bíblia de Genebra" que se tornou uma referência não apenas religiosa, mas cultural moldou Shakespeare e político inspirou a revolução americana.
A Academia preparou italianos refugiados para transformar sua nação; e, mais importante, preparou os refugiados franceses para discipular a França. Esses huguenotes, assim eram denominados os protestantes franceses, chegaram a discipular e educar cerca 48% da população francesa e 40% da aristocracia francesa antes de seu massacre em 1572, na chamada “Noite de São Bartolomeu” e subsequente dispersão.
Alunos que passaram pela Academia de Genebra elaboraram o Catecismo Heidelberg na Alemanha (1563), teologicamente calvinista. Essa excelente síntese do cristianismo bíblico transformou a Holanda. Os holandeses espalharam para o mundo o Catecismo de Heidelberg, cuja interpretação e aplicação do ensinou que o mandamento de Deus para santificar o sábado implicava no financiamento missionário para levar as nações ao conhecimento da verdade! Esse catecismo chegou ao Brasil quase 150 anos depois, através da invasão holandesa na região nordeste (1630 e 1654).
A Academia de Genebra reformou as nações porque fez da educação cristã a espinha dorsal das igrejas reformadas. Os brasileiros sentiram o efeito desta cosmovisão educacional com a chegada dos primeiros protestantes presbiterianos (calvinistas) no final dos oitocentos, quase trezentos anos depois da Academia genebrina e aqui implantaram o primeiro curso teológico protestante e posteriormente uma escola que veio a se transformar na Universidade Mackenzie.
Infelizmente essa cosmovisão educacional genebrina foi esquecida pelas denominações protestantes calvinistas, que optaram por outras formas de propagar a mensagem do Reino de Deus e essa opção tem custado muito caro às missões. No Brasil e na América Latina a proposta de se estabelecer pequenos feudos evangélicos, com seus respectivos senhores feudais regionais, com suas superestruturas eclesiásticas, com suas teologias voltadas para si mesmas são algumas das razões pela qual sofremos hoje as consequências nefastas do avanço de sistemas anticristãos que tem permeado as politicas regionais. Uma das propostas da Academia era preparar funcionários públicos e cidadãos honestos – se essa proposta tivesse sido desenvolvida nestes 160 anos de protestantismo no Brasil e América Latina faria alguma diferença hoje, diante do caos que estamos vivenciando?

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Jane Soares de. É preciso educar o povo! – a influência da ação missionária protestante na educação escolar brasileira. CUNHA, Marcus Vinicius (org.). Ideário e imagens da educação escolar. Campinas (SP): Autores Associados; Araraquara, SP: Programa de Pós-graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, 2000. (Coleção Polêmicas do nosso tempo; 73).
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SCHALKWIJK, Frans Leonard. Igreja e Estado no Brasil holandês (1630 a 1654), 3ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2004 (1986).




[1] Os anos de 1538 a 1541 foram um período de exílio para Calvino e seu colega reformador Guilherme Farel, ambos sofreram banimento por decreto do governo da Cidade por causa de sua insistência no direito da igreja de elaborar sua própria liturgia e seu pedido de cuidadoso escrutínio da moralidade pública e do direito da igreja de disciplinar seus próprios membros. Nos três anos seguintes, Calvino pastoreou uma igreja de refugiados franceses na cidade alemã de Strassburg. Esses foram os anos mais felizes de sua vida: Ele se casou com uma viúva, Idelette, foi homenageado pela cidade de Strassburg como um respeitado professor de teologia e foi feito representante da cidade em importantes conferências religiosas na Alemanha. No entanto, a cidade de Genebra pediu seu retorno.
[2] Mesmo antes da chegada de Calvino o Conselho da cidade de Genebra havia estabelecido o ensino fundamental obrigatório e o College de Rive (1536), que ensinava latim e grego.  Mas além do fato de que estava fora da influência religiosa protestante, a desorganização administrativa e pedagógica, a rotatividade de alunos e professores e a falta de verba decretaram seu fechamento.
[3] A Academia de Lausanne foi fundada em janeiro de 1537 e foi a primeira academia protestante do mundo francófono. Muitos acadêmicos vieram de muitos países vizinhos para ensinar na nova escola e  Lausanne tornou-se um refúgio, assim como Berna e Genebra, pois as perseguições expulsaram muitos estudiosos protestantes de seus países. Alguns estudantes que ingressaram na Academia incluem Zacharias Ursinus e Casper Olevianus, autores do Catecismo de Heidelberg, em 1562, e Guido de Bres, autor da Confissão Belga de 1561.
[4] Em conflito aberto com as autoridades de Berna, Pierre Viret e seus colegas acadêmicos foram forçados a arrumar seus pertences e procurar refúgio em outro lugar. Este refúgio foi logo encontrado na cidade vizinha de Genebra, onde Calvinoo recebeu seu amigo com o mais caloroso carinho. Apenas cinco meses após a chegada deles à cidade, Calvinoo fundava a Academia de Genebra, empregando como núcleo os rejeitados que haviam se retirado de Lausanne.
[5] Ele havia retornado a Genebra em 1559, por causa da crise em Lausane. Voltou como pastor, como reitor da Universidade fundada por Calvinoo, e como o braço direito de Calvinoo. Foi Beza quem escreveu uma biografia de Calvinoo, quem colecionou suas cartas, e quem foi o líder da igreja de Genebra por quarenta anos após a morte de Calvinoo.
[6] Instruções vernáculas básicas também estavam disponíveis para algumas meninas em certos bairros, onde elas eram ensinadas a ler a Bíblia e, às vezes, interpretar e aritmética. O que naquele momento era um grande avanço.
[7] Esse detalhe ficou famoso, pois o relógio dessa igreja batia a cada hora, de maneira que Calvinoo sabia exatamente quando ele deveria começar sua aula e, mais importante, exatamente quando parar para poder seguir em frente para a próxima tarefa. Assim, ele terminou sua 123ª aula sobre Jeremias com as palavras: "Não posso continuar agora, pois o relógio está batendo".

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