A
figura de João Calvino ficou fixada como teólogo e pregador, de maneira que sua
relevância na área da educação ficou relegada a um subproduto de sua trajetória
como reformador, todavia, sua preocupação inesgotável com a questão educacional
não pode de maneira alguma ser minimizada. Calvino tinha premente em sua
cosmovisão reformada de que implantar e desenvolver um sistema educacional para
todas as pessoas, independente da idade ou classe social, era a única forma de
perpetuar os efeitos positivos produzidos pela Reforma, caso contrário todo
esse hercúleo esforço se perderia nos anais da história. Aqui está a origem e a
motivação que moveu Calvino na efetivação e continua modernização do sistema de
ensino na Academia de Genebra.
A
pouco tempo se comemorou os 500 anos do nascimento de Calvino e os 450 da
fundação da Academia de Genebra (1559). Esta Academia tinha como propósito
amalgamar a teologia com as demais fontes de saberes acadêmica; o preparo dos
futuros ministros (pastores) na Academia esta dentro de um âmbito muito mais
amplo de transformação da Sociedade. Evidente que um projeto desta envergadura
não seria implantado sem produzir tensões em relação a propostas distintas e
até divergentes de tantas outras que na esteira da Reforma estavam sendo
desenvolvidas.
A
estruturação de uma educação teológica sempre esteve fortemente estabelecida na
agenda de Calvino desde os seus primeiros dias em Genebra (1536). Primeiramente
como Professor e Mestre nos textos bíblicos, onde ele inicia suas aulas no
Segundo Testamento com as epístolas paulinas. Mas logo ele percebe que o ensino
não estava inserido dentro de um projeto teológico-social da cidade de Genebra.
No
período em que foi banido da cidade de Genebra (1538) ele foi morar e trabalhar
na cidade Estrasburgo[1] e
durante os três anos que ali permaneceu o convenceu de que a formação de
pastores e outros que podiam liderar e servir à igreja e à sociedade era de
fundamental importância. Na cidade de Martin Bucer, havia um ginásio famoso e
conhecido, criado por Jean Sturm, que mais tarde se tornou a Cidade Universitária
e Calvino estabeleceu esse modelo como meta para Genebra.
Quando
retorna à Genebra além de suas funções pastorais ele se entrega completamente à
estruturar a questão educacional da cidade. Seu projeto incluía um sistema de
ensino fundamental no vernáculo para todos, incluindo leitura, escrita,
aritmética, gramática e religião, pois sua visão educacional extrapolava as
paredes eclesiásticas, pois entendia que se deveriam instruir os jovens e
demais pessoas não apenas “para o
ministério [pastoral], bem como para o governo civil” (REID, 1954, p. 63),
ou seja, para todas as demais áreas da Sociedade. Embora houvesse algum tipo de
educação formal disponível em Genebra, “Calvino
aprimorou notavelmente o sistema existente, estabeleceu ensino superior,
recrutou professores de primeira linha e advogou incessantemente pelo bem-estar
da academia e de seus professores perante o magistrado” (KURIAN e LAMPORT,
2015, p. 536).[2] Esse alto nível de envolvimento
clerical nas definições educacionais da cidade estabeleceu um padrão que foi
sendo alterado até sua extinção a partir do século XVIII.
Uma
confluência de acontecimentos contribuiu decisivamente para o estabelecimento
do sistema de ensino de Calvino. O primeiro é que a liderança de Calvino foi
extremamente fortalecida pelas mudanças políticas que ocorreram na cidade de
Genebra; foi estabelecido um fundo educacional; o encerramento da Academia de
Lausanne,[3]
conduzida por seu querido amigo Pierre Viret, proporcionou uma abundância de
professores (Mestres) experientes desde seu inicio de atividades.[4] Em
1559, a Academia de Genebra foi inaugurada e o grande reformador e amigo Teodoro
Beza[5]
foi nomeado reitor.
A
Academia consistia em uma schola privata, um tipo de escola primária e
secundária, e uma schola publicam, que se destinava mais a uma universidade
onde se podia estudar teologia, e posteriormente direito e medicina. Beza e
Viret saíram de Lausanne e foram trabalhar em Genebra, assim como Antoine le
Chevalier como professor de hebraico, François Bérauld como professor de grego
e Jean Tagautcomo professor de filosofia, enquanto Jean Randon, também de
Lausanne, se tornou o regente da schola privata.
A
faculdade (mais tarde denominada College Calvin) tinha como propósito fornecer
educação em latim para meninos do ensino médio e fundamental, além de
incentivar a vida piedosa e a disciplina cristã[6]; a
Escola Superior da Academia (Schola Publico) era onde se preparava os futuros
Mestres em teologia e recebiam estudos do grego e hebraico. É claro que ele,
Bucer e tantos outros professores viam suas aulas na Academia como uma extensão
de suas funções de ministro (pastor). Além disso, Calvino desempenhou um papel
importante, apesar de uma saúde frágil, na ligação entre a Academia, Companhia
de Pastores, responsável pela supervisão do ensino incluindo a nomeação e demissão dos professores e o Conselho Municipal, responsável pelo pagamento do pessoal e questões legais. Evidente que esta administração compartilhada não ficou desprovida de muita tensão, principalmente quando havia escassez financeira.
O
prédio onde funcionaria a Academia foi dedicado em 5 de junho de 1559, com 600
pessoas presentes na Catedral de St. Pierre. Calvino arrecadou dinheiro para o
fundo educacional junto a muitos expatriados franceses e outros que encontraram
abrigo em Genebra, e muitos dentre eles tinham sido atraídos para o novo centro
acadêmico de Genebra pela própria figura de Calvino. A campanha de arrecadação foi
um sucesso, e a oferta de cinco centavos (Botli), da esposa de um padeiro, bem
como os 312 florins doados pelo impressor Robert Estienne, garantiu a
construção de um belo edifício novo com vista para o lago.
A Escola Pública, que tinha sete séries,
matriculou 280 alunos durante o ano inaugural, e o Seminário da Academia se
expandiu para 162 alunos em apenas três anos. O novo prédio logo se tornou
pequeno demais e, em 1562, Calvino e Beza começaram a dar palestras no antigo
prédio da igreja de Notre-Dame-la-Neuve, que ficou conhecido como Auditório,
perto de a catedral de St. Pierre.[7] Ambas
as escolas naquele período inicial não cobravam mensalidades e desta forma
foram “precursoras da educação pública
moderna”. Poucas instituições acadêmicas europeias experimentaram um
crescimento tão rápido em tão pouco tempo. Quando da morte de Calvino em 1564,
havia 1.200 estudantes na faculdade. No início, a escola era apenas uma
universidade teológica, posteriormente, ainda que Calvino não mais pudesse contemplar,
foram adicionadas com sucesso as faculdades de direito e medicina.
Mas este centro acadêmico reformado em Genebra extrapolou
em muito suas fronteiras geográficas não somente da Europa, mas de Continente.
Calvino jamais idealizou uma Academia de Genebra voltada para si mesma, mas
como uma agência evangelística e missionária. Aqueles que por ela passavam
tornavam-se testemunhas vivas do poder das Escrituras e agora capacitadas e
habilitadas retornavam para seus países de origem e mesmo para outras nações
compartilhando a genuína mensagem Bíblica. João Calvino sabia que a genuína fé
salvadora repousa no conhecimento e não na ignorância (Jo 17.3) e que a verdade
apreendida que liberta é decorrente da genuína graça (Jo 8.32). Para Calvino, a
consequência da fé é um esforço permanente para construir o Reino de Deus na
terra. Alguns exemplos concretos dessa proposta da Academia genebrina- calviniana:
John
Knox estudou na Academia e declarava que não havia na Europa escola semelhante.
Levou não apenas os princípios da Reforma religiosa à sua terra natal, a
Escócia, como igualmente os princípios educacionais calviniano que fizeram da
Escócia semianalfabeta uma nação referência na educação na Europa.
Refugiados
ingleses que encontram acolhimento em Genebra e ali estudaram na Academia, ao
retornarem para seu país produziram a "Bíblia de Genebra" que se
tornou uma referência não apenas religiosa, mas cultural moldou Shakespeare e
político inspirou a revolução americana.
A
Academia preparou italianos refugiados para transformar sua nação; e, mais
importante, preparou os refugiados franceses para discipular a
França. Esses huguenotes, assim eram denominados os protestantes
franceses, chegaram a discipular e educar cerca 48% da população francesa e 40%
da aristocracia francesa antes de seu massacre em 1572, na chamada “Noite de São Bartolomeu” e subsequente
dispersão.
Alunos
que passaram pela Academia de Genebra elaboraram o Catecismo Heidelberg na
Alemanha (1563), teologicamente calvinista. Essa excelente síntese do
cristianismo bíblico transformou a Holanda. Os holandeses espalharam para
o mundo o Catecismo de Heidelberg, cuja interpretação e aplicação do ensinou
que o mandamento de Deus para santificar o sábado implicava no financiamento
missionário para levar as nações ao conhecimento da verdade! Esse catecismo
chegou ao Brasil quase 150 anos depois, através da invasão holandesa na região
nordeste (1630 e 1654).
A
Academia de Genebra reformou as nações porque fez da educação cristã a espinha
dorsal das igrejas reformadas. Os brasileiros sentiram o efeito desta
cosmovisão educacional com a chegada dos primeiros protestantes presbiterianos
(calvinistas) no final dos oitocentos, quase trezentos anos depois da Academia
genebrina e aqui implantaram o primeiro curso teológico protestante e
posteriormente uma escola que veio a se transformar na Universidade Mackenzie.
Infelizmente
essa cosmovisão educacional genebrina foi esquecida pelas denominações
protestantes calvinistas, que optaram por outras formas de propagar a mensagem
do Reino de Deus e essa opção tem custado muito caro às missões. No Brasil e na
América Latina a proposta de se estabelecer pequenos feudos evangélicos, com
seus respectivos senhores feudais regionais, com suas superestruturas eclesiásticas,
com suas teologias voltadas para si mesmas são algumas das razões pela qual
sofremos hoje as consequências nefastas do avanço de sistemas anticristãos que
tem permeado as politicas regionais. Uma das propostas da Academia era preparar
funcionários públicos e cidadãos honestos – se essa proposta tivesse sido
desenvolvida nestes 160 anos de protestantismo no Brasil e América Latina faria
alguma diferença hoje, diante do caos que estamos vivenciando?
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Latina
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[1] Os anos de 1538 a 1541 foram
um período de exílio para Calvino e seu colega reformador Guilherme Farel,
ambos sofreram banimento por decreto do governo da Cidade por causa de sua
insistência no direito da igreja de elaborar sua própria liturgia e seu pedido
de cuidadoso escrutínio da moralidade pública e do direito da igreja de
disciplinar seus próprios membros. Nos três anos seguintes, Calvino
pastoreou uma igreja de refugiados franceses na cidade alemã de Strassburg.
Esses foram os anos mais felizes de sua vida: Ele se casou com uma viúva,
Idelette, foi homenageado pela cidade de Strassburg como um respeitado
professor de teologia e foi feito representante da cidade em importantes
conferências religiosas na Alemanha. No entanto, a cidade de Genebra pediu seu
retorno.
[2] Mesmo antes da chegada de Calvino o Conselho
da cidade de Genebra havia estabelecido o ensino fundamental obrigatório e o
College de Rive (1536), que ensinava latim e grego. Mas além do fato de que estava fora da
influência religiosa protestante, a desorganização administrativa e pedagógica,
a rotatividade de alunos e professores e a falta de verba decretaram seu
fechamento.
[3] A Academia de Lausanne foi fundada em
janeiro de 1537 e foi a primeira academia protestante do mundo francófono. Muitos
acadêmicos vieram de muitos países vizinhos para ensinar na nova escola e Lausanne tornou-se um refúgio, assim como
Berna e Genebra, pois as perseguições expulsaram muitos estudiosos protestantes
de seus países. Alguns estudantes que ingressaram na Academia incluem Zacharias
Ursinus e Casper Olevianus, autores do Catecismo de Heidelberg, em 1562, e
Guido de Bres, autor da Confissão Belga de 1561.
[4] Em conflito aberto com as autoridades
de Berna, Pierre Viret e seus colegas acadêmicos foram forçados a arrumar seus
pertences e procurar refúgio em outro lugar. Este refúgio foi logo encontrado
na cidade vizinha de Genebra, onde Calvinoo recebeu seu amigo com o mais
caloroso carinho. Apenas cinco meses após a chegada deles à cidade, Calvinoo
fundava a Academia de Genebra, empregando como núcleo os rejeitados que haviam se
retirado de Lausanne.
[5] Ele havia retornado a Genebra em 1559,
por causa da crise em Lausane. Voltou como pastor, como reitor da Universidade
fundada por Calvinoo, e como o braço direito de Calvinoo. Foi Beza quem
escreveu uma biografia de Calvinoo, quem colecionou suas cartas, e quem foi o
líder da igreja de Genebra por quarenta anos após a morte de Calvinoo.
[6] Instruções vernáculas básicas também
estavam disponíveis para algumas meninas em certos bairros, onde elas eram
ensinadas a ler a Bíblia e, às vezes, interpretar e aritmética. O que naquele
momento era um grande avanço.
[7] Esse detalhe ficou famoso, pois o
relógio dessa igreja batia a cada hora, de maneira que Calvinoo sabia exatamente
quando ele deveria começar sua aula e, mais importante, exatamente quando parar
para poder seguir em frente para a próxima tarefa. Assim, ele terminou sua 123ª
aula sobre Jeremias com as palavras: "Não
posso continuar agora, pois o relógio está batendo".
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