CARTA
AO REI FRANCISCO I[1]
Ao
Mui Poderoso e Ilustre Monarca,
FRANCISCO,
Cristianíssimo
Rei dos Franceses,
seu
Príncipe,
JOÃO
CALVINO
Roga
Paz e Salvação em Cristo
1. CIRCUNSTÂNCIAS EM QUE A OBRA FOI INICIALMENTE
ESCRITA
No princípio, quando me apliquei a escrever esta obra,
nada mais distante estava de minha mente, mui glorioso Rei, do que escrever
algo que, em seguida, fosse dedicado a Vossa Majestade. Meu propósito foi tão
somente transmitir certos rudimentos com os quais aqueles que são tocados por
algum zelo de religião fossem instruídos na verdadeira piedade. Assumi este
trabalho especialmente em prol de nossos compatrícios franceses, entre os quais
vi muitos sofrendo de fome e sede de Cristo, e vi bem poucos deles imbuídos de
um leve conhecimento a seu respeito. O livro em si testifica que foi essa a
minha intenção, adaptada, como é, a uma forma de ensino simples e, seria
possível dizer, até mesmo elementar.
Percebi, porém, que em vosso reino o furor e a ojeriza
de certas pessoas perversas de tal modo prevaleciam que não se deixou nele
lugar algum à sã doutrina. Por conseguinte, pareceu-me que eu estaria fazendo
algo mui digno se escrevesse um livro que servisse, concomitantemente, na mesma
obra, de instrução para os que estão desejosos de religião e de confissão de fé
perante Vossa Majestade. Disso, podereis aprender a natureza da doutrina contra
a qual ardem em fúria tais dementes, pessoas que hoje perturbam vosso reino com
espada e fogo. E não temerei confessar que aqui abarquei praticamente toda a
suma dessa mesma doutrina contra a qual gritam para que seja punida com prisão,
exílio, proscrição e fogo, e seja exterminada em terra e em mar. Aliás, eu bem
sei com que notícias eles têm saturado vossos ouvidos e vossa mente, com o fim
de tornar nossa causa tão odiosa quanto possível a vossos olhos. Mas, como
convém à vossa clemência, que peseis bem este fato: se bastasse meramente fazer
acusação, então nenhuma inocência permaneceria, quer em palavras, quer em atos.
PERSEGUIÇÕES E CALÚNIAS
Suponha-se que alguém, para suscitar ódio, pretenda
que essa doutrina, da qual ora estou tentando dar-vos conta e razão, há muito
já foi condenada pelo consenso comum de todos os estados, e que muitíssimas
sentenças têm-se fixado contra ela pelos tribunais. Seguramente, isso seria o
mesmo que dizer que ela, em parte, tem sido violentamente rejeitada pela
conjuração e o poder de seus oponentes; e, em parte, insidiosa e
fraudulentamente oprimida por meio de suas falsidades, sutilezas e calúnias. É
simplesmente uma violência que sentenças sanguinárias sejam lançadas contra
essa doutrina sem uma audiência; é fraudulento que ela seja imerecidamente
acusada de traição e vilania. Para que ninguém pense que, equivocadamente, nos
queixamos dessas coisas, ó nobilíssimo Rei, que pessoalmente sejais testemunha
de quantas falsas calúnias ela é, a cada dia, infamada diante de vós. É como se
essa doutrina visasse a nenhum outro fim senão subverter todas as ordens e
governos civis, destroçar a paz, abolir todas as leis, espalhar todos os
senhorios e possessões – em suma, converter tudo em ruína! No entanto, Vossa
Majestade, ainda nem ouvistes a mínima parte da acusação, pois monstruosas
notícias se têm difundido por toda parte entre o povo. Se elas fossem
verídicas, com justa razão o mundo inteiro poderia julgar essa doutrina e seus
autores dignos de mil fogueiras e cruzes. Quem agora se admiraria de que o ódio
público se tenha suscitado contra ela, quando se creem nessas acusações tão
perversas? Eis por que todas as classes, de comum acordo, conspiram em condenar
a nós, bem como à nossa doutrina. Os que se assentam em juízo, dominados por
esse sentimento, pronunciam como sentenças os preconceitos que têm trazido dos
lares. E creem que já se desincumbiram devidamente de seu ofício quando ordenam
que alguém seja exposto à punição sem que seja convencido ou por sua própria
confissão, ou por um testemunho seguro. Mas de que crime? Dessa doutrina
condenada, dizem eles. Mas com que direito ela foi condenada? Ora, a própria
fortaleza de sua defesa não visava desmentir essa mesma doutrina, mas
sustentá-la como verídica. Aqui se elimina até mesmo o direito de cochichar.
2. SÚPLICA PELOS EVANGÉLICOS PERSEGUIDOS
Por essa razão, ó invencível Rei, não solicito de
forma injusta que, pessoalmente, queirais tomar plena ciência de toda essa
causa, a qual, até o momento, tem sido tratada à revelia, sem nenhuma ordem de
direito, e com uma fúria impetuosa, em vez de gravidade judicial. E não penseis
que aqui estou preparando minha própria defesa pessoal, para, com ela, voltar
seguramente à minha terra natal. Ainda que eu considere minha pátria com aquele
afeto natural que me vem, não sinto tanto pesar por estar excluído dela. Ao
contrário, já abracei a causa comum de todos os piedosos, que é a do próprio
Cristo e que, neste momento, se encontra em vosso reino tão menosprezada e
pisoteada que parece já não ter mais remédio; e isso mais pela tirania de
certos fariseus que por vossa aprovação.
Mas, como isso sucede, não me cabe dizê-lo aqui. Sem
sombra de dúvida, nossa causa é grandemente afligida. Porquanto homens ímpios
de tal modo têm prevalecido que a verdade de Cristo, se ainda não foi destruída
nem dispersa, e ainda não morreu, ao menos se encontra escondida, sepultada e
destituída de sua glória. E a pobrezinha Igreja, ou já foi devastada com
mortandade cruel, ou banida para o exílio, ou de tal modo esmagada por ameaças
e temores que nem mesmo ousa abrir a boca. Todavia, com tudo isso, com suas
usuais fúria e demência, os ímpios insistem em torpedear um muro já socavado e,
assim, completar a ruína para a qual tanto têm-se esforçado. No entanto,
ninguém sai em defesa da Igreja e contra tais fúrias. Mas quem quer que deseje
manifestar-se a fim de favorecer, de forma significativa, a verdade, dizem que
se devem perdoar o erro e a imprudência dos homens ignorantes. Pois, assim
falam, chamando de erro e imprudência àquilo que bem sabem ser a infalível
verdade de Deus; e de idiotas àqueles a quem o Senhor outorgou os mistérios da
sabedoria celestial! E, assim, todos se envergonham do evangelho!
Então, cabe a vós, ó sereníssimo Rei, não apartar nem
vossos ouvidos nem vosso coração da defesa de uma causa tão justa;
principalmente por ser um assunto de tanta importância: como a glória de Deus
será mantida sobre a terra, como a verdade de Deus reterá seu lugar de honra,
como o reino de Cristo permanecerá entre nós em bom estado de conservação.
Isso, sem dúvida, é algo digno de vossa atenção, digno de vosso juízo, digno de
vosso trono régio! Aliás, tal consideração faz um rei verdadeiro, a saber,
reconhecer-se como genuíno ministro de Deus no governo de seu reino (Romanos
13.3 e seguintes); e, ao contrário, aquele que não reina com o fim de servir à
glória de Deus, esse não governa regiamente, não passando de um salteador. Além
do mais, engana-se todo aquele que espera grande prosperidade em um reino que
não é regido com o cetro de Deus; quero dizer, com sua Santa Palavra. Porque o
oráculo celestial não pode mentir, de modo que se proclama que o povo será
disperso quando a profecia não se cumpre (Provérbios 29.18).
E o desprezo por nossa humildade não deve persuadir
-vos desse comportamento. Aliás, temos plena consciência de que somos homens
vis e de pouca importância; convém saber, diante de Deus, que somos míseros
pecadores; e, aos olhos dos homens, bastante desprezíveis – se preferirdes,
lixo e escória do mundo (cf. 1 Coríntios 4.13) e até mesmo as coisas mais vis
que possamos nomear. De sorte que, diante de Deus, nada nos resta de que nos gloriarmos,
salvo unicamente em sua misericórdia (cf. 2 Coríntios 10.17), por meio da qual,
sem mérito nosso, temos sido salvos (Tito 3.5); e, diante dos homens, nada,
exceto por nossa impotência (cf. 2 Coríntios 11.30; 12.5–9), a qual, até mesmo
admiti-la ou confessá-la constitui a maior desonra entre os homens.
Nossa doutrina, porém, deve ser mantida invencível
acima de toda a glória e acima de todo o poder do mundo, pois não é em nós que
tem sua origem, e sim no Deus vivo e em seu Cristo, a quem o Pai constituiu
Rei, para “governar de mar a mar, e desde os rios até os confins da terra”
(Salmos 72.8; 71.7). E, para que de tal modo governe que, ferindo toda a terra
com a vara de sua boca, ele a faça em pedaços, e com ela sua força e glória,
como se fosse um vaso de barro, conforme o que os profetas profetizaram da
magnificência de seu reino (Daniel 2.32–35; Isaías 11.4; Salmos 2.9). Aliás,
nossos adversários gritam que falsamente tomamos a Palavra de Deus como
pretexto nosso e impiamente a corrompemos. Ao lerdes nossa confissão, que Vossa
Majestade julgueis, conforme vossa prudência, quão falsa é essa acusação e quão
saturada é, não só de uma maliciosa calúnia, mas também de completo
descaramento.
JULGUE-SE A DOUTRINA PELA PALAVRA DE DEUS
Todavia, aqui temos de dizer algo que vos abra uma via
para lerdes nossa confissão. Quando o apóstolo Paulo quis que toda a profecia
se conformasse à analogia da fé (Romanos 12.6), apresentou uma regra bastante
clara para testar toda interpretação da Escritura. Ora, pois, se nossa
interpretação for medida por essa regra de fé, a vitória estará em nossas mãos.
Pois o que é mais consoante com a fé do que reconhecer que somos despidos de
toda virtude, a fim de sermos vestidos por Deus? Que somos vazios de todo bem,
a fim de nos enchermos dele? Que somos escravos do pecado, a fim de sermos
libertados por ele? Cegos, a fim de sermos iluminados por ele? Coxos, a fim de
que ele nos faça andar eretos? Fracos, a fim de sermos sustentados por ele? A
fim de removermos de nós toda ocasião de vanglória, a fim de que somente ele se
exiba de modo glorioso, e nós nos gloriemos nele (cf. 1 Coríntios 1.31; 2
Coríntios 10.17)?
Quando dizemos essas coisas e outras afins, nossos
adversários interrompem e se queixam de que, nesse caso, subverteríamos não sei
que luz da natureza, preparações imaginárias, livre-arbítrio e méritos. Pois
não podem suportar que todo o louvor e toda a glória da bondade, da virtude, da
justiça e da sabedoria repousem tão somente em Deus. Nós, porém, não lemos de
alguém ser culpado por beber da profunda fonte da água viva (João 4.14). Ao
contrário, foram seriamente repreendidos aqueles que cavaram para si cisternas,
sim, cisternas esburacadas que não podem reter nenhuma água (Jeremias 2.13).
Além disso, o que se harmoniza mais com a fé do que Deus prometer ser um Pai
propício, quando Cristo é reconhecido como irmão e propiciador? Do que buscar
confiantemente todo o bem e toda a prosperidade em Deus, cujo indizível amor se
estendeu a nós, o qual “não poupou a seu próprio Filho, mas, antes, o entregou
por todos nós (Romanos 8.32)”. Do que repousar sobre as infalíveis expectativas
de salvação e vida eterna, quando consideramos que Cristo nos foi dado pelo
Pai, em quem estão ocultos todos os tesouros?
Aqui se assenhoreiam de nós, gritando que tal certeza
de confiança não está isenta de arrogância e presunção. Mas, como de nós mesmos
nada devemos presumir, assim devemos atribuir a Deus todas as coisas; nem
devemos despir-nos de vanglória por qualquer outra razão, senão para nos gloriarmos
no Senhor (cf. 2 Coríntios 10.17; 1 Coríntios 1.31; Jeremias 9.23–24).
O que mais direi? Examinai sucintamente, poderosíssimo
Rei, todas as partes de nossa causa; que nos considereis as pessoas mais
malditas de quantas vivem hoje, a não ser que descubrais claramente que “somos
oprimidos e injuriados por depositarmos nossa esperança no Deus vivo” (1
Timóteo 4.10), porque cremos ser “esta a vida eterna: conhecer o Deus
verdadeiro e aquele a quem ele enviou, Jesus Cristo” (João 17.3). Por causa dessa
esperança, alguns de nós somos encarcerados, outros açoitados, outros expostos
ao escárnio, outros desterrados, alguns torturados com requinte de crueldade;
alguns se veem forçados a fugir; todos nós somos oprimidos pela pobreza,
amaldiçoados com medonhas execrações, feridos por calúnias e tratados de
maneira extremamente vergonhosa.
NOSSOS ADVERSÁRIOS
Em contrapartida, que Vossa Majestade atenteis bem
para nossos adversários (falo das ordens sacerdotais por cujos aceno e vontade
todos os demais nos tratam com hostilidade) e noteis, juntamente comigo, o zelo
que os move. Prontamente permitem a si e aos demais ignorar, negligenciar e
menosprezar a verdadeira religião, a qual nos é transmitida nas Escrituras e
deveria ter lugar reconhecido entre todos os homens. Pensam que não é de grande
importância aquilo em que cada um crê que deva ou não manter sobre Deus e
Cristo, contanto que simplesmente submeta sua mente, com fé implícita, ao juízo
da Igreja. Profanaram a visão da glória de Deus com francas blasfêmias sem
muita preocupação. Por que labutam com tamanhas ferocidade e amargura em prol
da missa, do purgatório, das peregrinações e de outras parafernálias do gênero,
negando que possa haver verdadeira piedade sem uma fé mais explícita (por assim
dizer) em tais coisas, ainda que nelas nada se possa provar pela Palavra de
Deus? Qual a razão, exceto porque “seu deus é o ventre” (Filipenses 3.19), e
sua religião, a cozinha?! Se essas coisas forem tiradas, creem que não são
cristãos, nem mesmo homens! Porque, mesmo que alguns deles se excedam em
suntuosidade, enquanto outros vivem roendo as migalhas de pão seco, todos vivem
de uma mesma panela, panela que, sem tal combustível, se tornaria não só fria,
mas até mesmo viria a se congelar por completo. Por conseguinte, todos eles,
quanto mais solícitos se mostram pelo ventre, mais zelosos e ferrenhos
defensores se mostram de sua fé. Enfim, todos os homens se esforçam por
alcançar este alvo: conservar ou sua regra intata ou seu ventre empanturrado.
Nem ao menos um deles dá a mais leve indicação de zelo sincero.
3. ACUSAÇÕES DE ANTAGONISTAS REFUTADAS
A despeito disso, não cessam de assaltar nossa
doutrina e de reprová-la e infamá-la com nomes que a tornam ainda mais odiosa
ou suspeita. Eles a denominam de “nova” e “de origem recente”. Acusam-na de
“duvidosa e incerta”. Inquirem se ela tem o direito de prevalecer contra a
concordância de tantos pais e contra costumes antiquíssimos. Insistem em que
reconheçamos que ela é cismática, porquanto faz guerra contra a Igreja, ou que
a Igreja esteve morta por tantos séculos em que não se ouviu tal coisa.
Finalmente, dizem que não há necessidade de tantos argumentos, porque, por meio
de seus frutos, é possível conhecer o que ela é, já que tem produzido de si
mesma tão grande aglomerado de seitas, tantas revoltas e tumultos e
licenciosidade tão ferrenha. Na verdade, é-lhes muito fácil vilipendiar uma
causa negligenciada diante de uma multidão crédula e ignorante. Mas, se também
nos fosse dada a liberdade de falar, essa amargura que vomitam sobre nós com a
boca cheia se dissiparia.
NOSSA DOUTRINA É NOVA?
Em primeiro lugar, ao denominá-la de “nova”, fazem
profunda injúria a Deus, cuja Sagrada Palavra não merece ser tratada como
novidade. Aliás, de modo algum duvido tratar-se de algo novo para eles, uma vez
que também lhes são novos o próprio Cristo e seu evangelho. Mas, para os que
sabem ser antiga aquela pregação de Paulo, no sentido de que “Jesus Cristo foi
morto por causa de nossas transgressões e ressuscitou por causa de nossa
justificação” (Romanos 4.25), nada novo encontrarão entre nós. Quanto a jazer desconhecida
e sepultada por tanto tempo, a culpa está na impiedade do homem. Ora, quando
ela nos for restaurada pela bondade de Deus, então deveria admitir-se a
reivindicação de sua antiguidade, ao menos por direito de descoberta.
A mesma ignorância os leva a considerá-la duvidosa e
incerta. Isso é precisamente aquilo de que o Senhor se queixa pela boca de seu
profeta, a saber, que “o boi conhece seu possuidor, e o jumento, o dono de sua
manjedoura, mas Israel não tem conhecimento, meu povo não entende” (Isaías
1.3). Mas, por mais que caçoem de sua incerteza, se tivessem de selar sua
doutrina com seu próprio sangue, e com o risco de suas próprias vidas, então
seria possível ver quanto ela significaria para eles. Outra coisa bem distinta
é nossa certeza, a qual não teme os horrores da morte, nem mesmo o próprio
tribunal de Deus.
COM QUE MILAGRES ELA É CONFIRMADA?
Ao demandarem de nós milagres, agem com extrema
desonestidade. Pois não estamos forjando um novo evangelho; estamos retendo
aquele mesmo evangelho cuja verdade todos os milagres que Jesus Cristo e seus
discípulos operaram servem de confirmação. Mas, comparados conosco, eles
possuem um estranho poder: até hoje, podem confirmar sua fé por milagres
contínuos! Em vez de citarem milagres que podem incomodar uma mente de outro
modo tranquila, os deles são por demais néscios e ridículos, bastante fúteis e
falsos! Todavia, ainda que esses fossem prodígios maravilhosos, em momento
algum deveriam pôrse contra a verdade de Deus, pois é necessário que o nome de
Deus seja sempre e em todo lugar santificado, quer por meio de milagres, quer
por meio da ordem natural das coisas.
E podemos ainda oportunamente recordar que Satanás tem
seus milagres, os quais, ainda que sejam truques enganosos, e não atos
autênticos, são de tal natureza que podem até mesmo enganar os ingênuos e
desavisados (cf. 2 Tessalonicenses 2.9–10). Os necromantes e encantadores
sempre foram muito famosos por seus milagres. A idolatria tem sido fomentada
por milagres prodigiosos, os quais, nem por isso, nos sancionam a superstição
dos mágicos ou dos idólatras.
Com esse aríete, os donatistas de outrora destroçaram
a simplicidade da multidão, dizendo que realizavam milagres poderosos.
Portanto, agora respondemos aos nossos adversários da mesma forma que Agostinho
fez noutro tempo aos donatistas: Que o Senhor nos advertiu contra estes
operadores de milagres quando predisse “que surgirão falsos cristos e falsos
profetas operando grandes sinais e prodígios para enganar, se possível, os
próprios eleitos” (Mateus 24.24). E Paulo nos advertiu que “o aparecimento do
iníquo é segundo a eficácia de Satanás, com todo poder, e sinais, e prodígios
da mentira” (2 Tessalonicenses 2.9). Mas dirão que esses milagres não são
feitos pelos ídolos, nem pelos mágicos, tampouco pelos falsos profetas, mas
pelos santos. Como se não entendêssemos que a arte de Satanás é transfigurar-se
em anjo de luz (2 Coríntios 11.14)! Os egípcios de outrora cultuaram o profeta
Jeremias que estava sepultado em sua terra, oferecendolhe sacrifícios e honras
divinas. Acaso não usaram mal o santo profeta de Deus com propósitos de
idolatria? Todavia, com tal veneração de seu túmulo, encontram a cura da picada
de serpente. O que diremos, senão que sempre foi assim, e sempre será, que a
justa punição de Deus é “enviar àqueles que” não receberam o amor da verdade “uma
forte ilusão para que creiam na mentira” (2 Tessalonicenses 2.11)?
Muito bem, não nos faltam inteiramente milagres, os
quais são infalíveis e não são tema de zombaria. Ao contrário, os “milagres”
que nossos adversários apontam em seu próprio apoio são meras ilusões de
Satanás, com as quais afastam o povo do verdadeiro culto de Deus para a
vaidade.
4. FALSAS ALEGAÇÕES DE QUE OS PAIS SE OPÕEM AO ENSINO
DA REFORMA
Além disso, injustamente, eles põem contra nós os Pais
(quero dizer os primeiros escritores da época mais excelente da Igreja), como
se neles tivessem os apoiadores de sua própria impiedade. Se a contenda fosse
determinada pela autoridade patrística, o troféu da vitória mudaria de lado.
Ora, esses pais escreveram muitas coisas sábias e excelentes. Todavia, em
alguns casos, o que comumente sucede aos homens recaiu também sobre eles. Pois
esses assim chamados filhos pios, com toda a sua agudeza de entendimento, juízo
e espírito, idolatram somente as falhas e os erros desses pais. As boas coisas que
esses pais escreveram não as fazem nem as notam, mas as entendem mal ou as
pervertem. Pode-se dizer que seu único cuidado é extrair esterco do ouro.
Então, com terrível reboliço, esmagam-nos como desprezadores e adversários dos
pais! Todavia, não desprezamos os pais; aliás, se esse fosse nosso presente
propósito, eu poderia, sem dificuldade alguma, demonstrar que a maior parte do
que estamos afirmando hoje está de acordo com o ensino deles.
Não obstante, somos tão versados em seus escritos que
sempre nos lembramos de que todas as coisas são nossas (1 Coríntios 3.21–22),
para nos servir, não para exercer domínio sobre nós (Lucas 22.24–25), e que
tudo pertence ao único Cristo (1 Coríntios 3.23), a quem devemos obediência em
todas as coisas, sem exceção (cf. Colossenses 3.20). Aquele que não observa
essa distinção nada terá por indubitável na religião; embora esses santos
varões fossem ignorantes de muitas coisas, frequentemente discordavam entre si
e, algumas vezes, até mesmo se contradiziam. Não é sem razão, dizem, que
Salomão nos acautela para que não ultrapassemos os limites antigos que nossos
pais puseram (Provérbios 22.28). Mas a mesma regra não se aplica às fronteiras
dos campos e à obediência da fé, que deve ser de tal modo distribuída que “se
esquece de seu povo e da casa de seu pai” (Salmos 45.10). Mas, caso se deleitem
tanto com alegorias, por que não aceitam por Pais os apóstolos (mais que
quaisquer outros), cujos limites e termos não é lícito remover (Provérbios
22.28)?
OS PAIS CONFIRMAM NOSSA DOUTRINA
Foi assim que Jerônimo interpretou esse versículo, e
eles têm escrito suas palavras em seus cânones. Mas, se nossos oponentes querem
preservar os limites impostos pelos pais, em conformidade com a compreensão que
tiveram deles, por que eles mesmos os transgridem tão espontaneamente que
sempre os adaptam? Um dos Pais foi quem disse que nosso Deus nem bebe nem come,
e por isso não necessita nem de pratos nem de cálices; o outro, que os ritos
sacros não demandam ouro, e que tais coisas não se compram com ouro, nem se
deleitam com ouro. E, assim, transgridem esse limite quando, em suas
cerimônias, deleitam-se tanto com ouro, prata, marfim, mármore, pedras
preciosas, e creem que Deus não é adorado corretamente, a menos que tudo esteja
envolto no excesso.
Pai também foi aquele que disse que, livremente, comia
carne quando os outros dela se abstinham, porquanto ele era cristão. Portanto,
transgridem os limites quando execram qualquer pessoa que deguste carne na
Quaresma. Um dos pais disse que o monge que não trabalha com as próprias mãos
deve ser considerado igual a um bandido; o segundo pai, que não é lícito aos
monges viverem dos bens alheios, mesmo quando seja assíduo em contemplação,
oração e estudo. Têm também transgredido esse limite quando põem os ventres
preguiçosos dos monges nesses guisados e prostíbulos para que sejam saciados
com a subsistência alheia.
Foi um pai que qualificou de terrível abominação ver
uma imagem nas igrejas dos cristãos. Estão longe de permanecer dentro desses
limites quando não deixam sequer um canto isento de imagens. Outro pai
aconselhou que, depois de havermos exercido, em um sepultamento, o ofício de
humanidade para com os mortos, que os deixemos em paz. Rompem esses limites
quando fomentam perpétua solicitude para com os mortos. Foi um dos pais que
disse que o corpo real não estava no sacramento da Ceia, mas somente o mistério
do corpo, pois, assim, ele fala da palavra. Portanto, ultrapassam os limites
quando fazem dele (um corpo) real e substancial.
Houve dois pais: um decretou que os que se contentam
em participar de uma só espécie, porém se abstêm da outra, deveriam ser
inteiramente excluídos da participação na Santa Ceia de Cristo; o outro defende
veementemente que não se deve negar o sangue de seu Senhor ao povo cristão, o
qual, ao confessá-lo, é concitado a derramar seu próprio sangue. Eles têm
removido esses marcos quando ordenam, por uma lei inviolável, a própria coisa
que o primeiro pai puniu com excomunhão e o segundo reprovou mediante uma razão
válida.
Foi um pai que afirmou ser temerário quando,
ajuizando-se alguma matéria obscura, assuma-se um lado ou o outro sem um claro
e evidente testemunho da Escritura. Esqueceram esse limite quando estabeleceram
tantas constituições, cânones e decisões doutrinais, sem qualquer palavra de
Deus. Foi um pai que repreendeu Montanus por, entre outras heresias, ser o
primeiro a impor as leis de jejum. Também foram além desses limites quando
ordenaram jejuns mediante uma lei por demais rigorosa.
Foi um pai que negou que se proibisse o matrimônio aos
ministros da Igreja, declarando que alguém é casto quando coabita com sua
esposa. E outros pais concordaram com sua opinião. Ao imporem severamente o
celibato a seus sacerdotes, foram muito além desse limite. Foi um pai que
determinou que se ouça somente a Cristo, pois a Escritura afirma: “Ouvi-o”
(Mateus 17.5); e que não devemos preocupar -nos com o que outros antes de nós
disseram ou fizeram, mas somente com o que Cristo, que é o primeiro de todos,
ordenou. Quando põem a si mesmos e a outros ministros no lugar de Cristo, não
se obrigaram por esse limite, nem permitiram que outros o observassem.
Todos os pais, com um só coração, se aborreceram e com
uma só voz detestaram o fato de que a Santa Palavra de Deus fosse contaminada
pelas sutilezas dos sofistas e envolvida nas contendas dos dialéticos. Quando,
em toda a sua vida, nada fazem senão encobrir e obscurecer a simplicidade da
Escritura com contendas intermináveis e discursos sofisticados, porventura se
mantêm dentro desses limites? Por que, se os pais fossem trazidos de volta à
vida, e deparassem com tal arte de tagarelar, como essas pessoas chamam a
teologia especulativa, nada há em que menos acreditariam que tais pessoas
estivessem disputando sobre Deus! Meu discurso, porém, excederia o limite se eu
decidisse rever quão audaciosamente rejeitam o jugo dos pais, cujos filhos
obedientes desejam parecer. Aliás, meses e até mesmo anos não me seriam
suficientes! Não obstante, são de um descaramento tão covarde e depravado que
ousam repreender-nos por ultrapassarmos os antigos limites.
5. APELO AO “COSTUME” CONTRA A VERDADE
Mesmo em seu apelo ao “costume”, nada conseguem.
Constranger-nos a nos rendermos ao costume seria o mesmo que nos tratar com
extrema injustiça. Aliás, se os critérios humanos fossem corretos, seria
necessário buscar o costume de homens bons. Mas, com frequência, ocorre algo
muito diferente: o que se vê ser realizado pela maioria tem obtido a função de
costume; enquanto as atividades dos homens raramente têm sido tão bem reguladas
que as coisas superiores têm aprazido a maioria. Portanto, algumas vezes, os
vícios privados de muitos têm levado ao erro público, ou, melhor, a uma
concordância geral com os vícios, os quais esses bons homens querem agora
transformar em lei. Os que têm olhos podem perceber que não só um oceano de
males tem inundado a terra, como também muitas pragas danosas a têm invadido e
criado um caos. Daí, ou alguém se desespera por completo das atividades
humanas, ou se aferra a esses grandes males – ou, ao contrário, violentamente
os sufoca. E esse remédio é rejeitado por nenhuma outra razão salvo que temos
por tanto tempo nos acostumado a tais males. Mas, dando ao erro público um
lugar na sociedade dos homens, ainda no reino de Deus sua eterna verdade deve ser
ouvida exclusivamente e observada, uma verdade que não pode ser ditada pela
extensão de tempo, pelo costume há muito radicado ou pela conspiração dos
homens. Dessa maneira, Isaías, nos velhos tempos, instruiu os eleitos de Deus a
não “chamar conspiração tudo o que este povo chama conspiração”, ou seja, não
conspirar na conspiração do povo e em consenso com ela, “nem temer o que temem,
nem ter isso por temível”, mas, antes, “santificai o Senhor dos Exércitos; seja
ele vosso temor, seja ele vosso espanto” (Isaías 8.12–13).
Ora, pois, deixe que nossos adversários nos apresentem
tantos exemplos quantos queiram, desde as eras antigas até as atuais. Se
santificarmos o Senhor dos Exércitos, não viveremos grandemente atemorizados.
Mesmo que tantas eras tenham concordado com semelhante impiedade, o Senhor é
forte para dar livre curso à vingança, até a terceira e a quarta gerações
(Números 14.18; cf. Êxodo 20.4). Assim, ainda que o mundo inteiro conspire na
mesma perversidade, ele nos tem ensinado pela experiência qual é o fim dos que
pecam com a multidão. Ele fez isso quando destruiu toda a raça humana pelo
dilúvio, porém conservou Noé com sua pequena família; e Noé, com sua fé, a fé
de um só homem, condenou o mundo inteiro (Gênesis 7.1; Hebreus 11.7). Em suma, o
mau costume nada é senão um tipo de peste pública em que os homens perecem não
menos do que quando caem com a multidão.
6. ERROS SOBRE A NATUREZA DA IGREJA
Com seu argumento poderoso, eles não nos impressionam
de modo tão contundente que nos vemos forçados a admitir ou que a Igreja esteve
morta por algum tempo, ou que agora estamos em conflito com ela. Seguramente, a
Igreja de Cristo tem vivido e viverá enquanto Cristo reinar à destra de seu
Pai. Ela é sustentada por sua mão; armada com sua proteção; e fortalecida por
seu poder. Pois, certamente, ele concretizará o que uma vez prometeu: que ele
estaria presente com os seus até o fim do mundo (Mateus 28.20). Contra essa
Igreja, não temos agora nenhuma disputa. Porque, se alguém concorda com todo o
povo crente, cultuamos e adoramos a um só Deus e a Cristo, o Senhor (1
Coríntios 8.6), como ele sempre foi adorado por todos os homens piedosos. Mas
se extraviam, em grande medida, da verdade ao não reconhecerem a Igreja, a
menos que a vejam com seus próprios olhos e tentem mantê-la dentro dos limites
aos quais de modo algum ela pode estar confinada.
Nossa controvérsia gira em torno destas articulações:
primeiro, contendem que a forma da Igreja é sempre aparente e observável.
Segundo, eles põem essa forma na visão da Igreja romana e em sua hierarquia.
Nós, ao contrário, afirmamos que a Igreja pode existir sem qualquer aparência
visível, e que sua aparência não está contida nessa magnificência externa que
nesciamente admiram. Ao contrário, ela tem outra marca completamente diferente,
a saber, a pregação pura da Palavra de Deus e a legítima administração dos
sacramentos. Eles se enfurecem se a Igreja nem sempre pode ser apontada com o
dedo. Mas, entre o povo judeu, muitas vezes ela esteve de tal modo deformada
que não restou nenhuma semelhança dela! Que forma cremos nós ela exibiu quando
Elias se queixou de ter ficado sozinho (1 Reis 19.10, ou 14)? E como, depois da
vinda de Cristo, ela como que desapareceu sem qualquer forma? Com quanta
frequência ela, desde esse tempo, foi oprimida por guerras e heresias, de modo
que dela não se emitiu nenhum esplendor? Se tivessem vivido naquele tempo,
teriam crido que alguma Igreja ainda existisse? No entanto, Elias ouviu que
ainda restavam sete mil homens que não haviam dobrado seus joelhos diante de
Baal. E não devemos nutrir dúvidas de que Cristo sempre reinou sobre a terra
desde que ascendeu ao céu. Mas, se os crentes, então, buscassem alguma forma
visível, acaso não teriam perdido de vez todo o ânimo? Visto que somente o
Senhor “conhece os seus” (2 Timóteo 2.19), por isso deixemos com ele que
algumas vezes remova dos olhos dos homens a noção externa de sua Igreja.
Confesso que essa é uma terrível visitação de Deus à terra. Mas, se a impiedade
dos homens merece tal coisa, por que nos empenharíamos em fazer oposição à
justiça divina? Foi assim que o Senhor, outrora, puniu a ingratidão dos homens.
Pois, visto que se recusaram a obedecer à sua verdade e extinguiram sua luz,
ele permitiu que seus cegos sentidos fossem, respectivamente, iludidos e
mergulhados em trevas profundas, de modo a não restar nenhuma forma da
verdadeira Igreja. Entretanto, ele preservou seus próprios filhos, ainda que
dispersos e ocultos em meio a esses erros e a essas trevas. E isso não causa
surpresa, pois ele sabia como preservá-los na confusão de Babilônia e nas
chamas da fornalha ardente (Daniel 3).
OS BISPOS FORMAM A IGREJA?
Agora salientarei quão perigoso é seu desejo de ter as
formas da Igreja julgadas por alguma sorte de pompa inútil. Esboçarei isso, em vez
de explicar extensamente, para que não prolongue meu discurso
interminavelmente. O papa romano, dizem, que ocupa a sé apostólica, bem como os
demais bispos, representam a Igreja e devem ser tidos como a Igreja; portanto,
eles não podem errar. Por que pensam assim? Porque, respondem, eles são os
pastores da Igreja e foram consagrados pelo Senhor. Acaso Arão e os demais
líderes do povo de Israel não foram também pastores? No entanto, Arão e seus
filhos, ainda que designados sacerdotes, erraram quando fabricaram o bezerro
(Êxodo 32.4). Por que, segundo esse raciocínio, aqueles quatrocentos profetas
que enganaram Acabe (1 Reis 18.18) também não representavam a Igreja? E a
Igreja estava do lado de Miqueias, um homem sozinho e desprezível, mas que
falava a verdade. Porventura os profetas que se insurgiram contra Jeremias,
vangloriando-se de que “a lei não podia perecer do sacerdote, nem o conselho do
sábio, nem a palavra do profeta” (1 Jeremias 18.18; cf. 4.9), acaso não
portavam o nome e a forma da Igreja? Porventura essa mesma pompa não foi
exibida naquele concílio em que os sacerdotes, escribas e fariseus se reuniram
para deliberar acerca da execução de Cristo (João 11.47ss.)? Ora, pois, vamos e
nos apegamos a essa máscara externa, fazendo cismáticos Cristo e todos os
profetas do Deus vivente; de modo inverso, os ministros de Satanás, os órgãos
do Espírito Santo!
O CONCÍLIO DE BASILEIA [1431–1437]
Mas, se falam sinceramente, então que me respondam de
boa-fé: em que região ou entre que povo se pensa que a Igreja residiu depois
que Eugenio, por decreto do Concílio de Basileia, foi despojado do pontificado
e substituído por Amadeus? Mesmo que se explodissem, não poderiam negar que o
concílio era legítimo quanto aos arranjos externos, e foi convocado não só por
um papa, mas por dois. Eugenio foi ali condenado por cisma, rebelião e
obstinação, com todo o grupo de cardeais e bispos que tramaram a dissolução do
concílio com ele. Não obstante, subsequentemente sustentado pelo favor dos
príncipes, ele recuperou, ileso, seu ofício papal. Aquela eleição de Amadeus,
devidamente solenizada pela autoridade de um concílio geral e santo,
dissolveu-se como fumaça, exceto pelo fato de que o supracitado Amadeus foi
apaziguado por um chapéu de cardeal, como um cão que ladra por um pedaço de
osso. Desses rebeldes e obstinados hereges, entraram para a história todos os
futuros papas, cardeais, bispos, abades e sacerdotes.
Aqui deveriam deter-se e se conter. Pois de que lado
eles admitirão que se põe o nome de Igreja? Acaso negarão que o concílio foi
geral, ao qual nada faltou de majestade externa, foi solenemente convocado por
duas bulas, consagrado pelo presidente legado da sé romana e bem ordenado em
todos os aspectos, preservando a mesma dignidade até o fim? Acaso admitirão que
Eugenio e toda a sua companhia, por quem foram consagrados, eram cismáticos?
Portanto, ou que definam a forma da Igreja em outros termos, ou os considerarão
– por mais numerosos que sejam – como tendo sido, ciente e voluntariamente,
ordenados por hereges, sendo cismáticos. Mas, se isso nunca fosse descoberto
antes, que, sob esse eminente título “Igreja”, por tanto tempo tem tão
arrogantemente apregoado ao mundo, ainda que tenham sido pragas mortais na
Igreja, pode munir-nos com abundante prova de que a Igreja não está atrelada a
pompas externas. Não falo acerca de seus costumes e trágicos malfeitos, com os
quais enxameiam toda a sua vida, já que falam de si mesmos como os fariseus,
que devem ser ouvidos, porém não imitados (Mateus 23.3). Se você devotar um pouco
de seu lazer à leitura de nossas palavras, então, inequivocamente, reconhecerá
que essa mesmíssima doutrina por meio da qual reivindicam ser a Igreja, não
passa de um açougue mortal das almas, um tição, uma ruína e a destruição da
Igreja.
7. ALEGA-SE QUE O ENSINO DA REFORMA RESULTA EM TUMULTO
Por último, não agem com suficiente candura quando,
invejosamente, recordam quantos distúrbios, tumultos e contendas o ensino de
nossa doutrina tem arrastado consigo, e quais frutos ela produz entre muitos. A
culpa desses males tem sido injustamente lançada contra ela, quando isso
deveria ser imputado à malícia de Satanás. Temos aqui, por assim dizer, certa
característica da divina Palavra: ela nunca se manifesta enquanto Satanás
estiver em repouso e cochilando. Essa é a marca mais segura e mais digna para
distingui-la das doutrinas subjacentes, as quais prontamente se apresentam,
sendo recebidas por todos com ouvidos atentos, e ouvidas por um mundo que
aplaude. Assim, por alguns séculos, durante os quais tudo permaneceu submerso
em trevas profundas, os homens eram a diversão e a zombaria desse senhor do
mundo, e, não diferente de algum Sardanapalus, Satanás se manteve ocioso e em
sono profundo. Pois o que mais ele tinha a fazer senão zombar e se divertir, em
tranquila e pacífica posse de seu reino? Todavia, quando a luz brilha do alto,
em certa medida dissipando suas trevas, quando “o homem mais forte” passou a
perturbar e assaltar seu reino (cf. Lucas 11.22), então começou a abalar sua
costumeira modorra e a empunhar suas armas. De fato, em primeiro lugar, ele
incitou os homens à ação, para que, por esse meio, pudesse oprimir
violentamente a verdade nascente. E, quando isso não lhe trouxe qualquer
proveito, voltou-se aos estratagemas: incitou discordância e contendas
dogmáticas através de seus catabatistas e outros chacais monstruosos, a fim de
obscurecer e, por fim, extinguir a verdade. E agora ele persiste em sitiá-la
com ambos os engenhos. Com as mãos violentas dos homens, ele tenta arrancar
aquela verdadeira semente e busca (na medida em que estiver em seu poder)
sufocá-la com suas ervas daninhas, a fim de impedi-la de crescer e frutificar.
Mas tudo isso resulta ineficaz se atentarmos bem para o Senhor, nosso monitor,
que há muito tem exposto as vilezas de Satanás diante de nós, para que não nos
apanhe despercebidos; e nos armou com defesas bastante sólidas contra todos os
seus intentos. Além do mais, quão grande malícia é a de atribuir à própria
Palavra de Deus o ódio ou as sedições que os perversos e rebeldes incitam
contra ela, ou as seitas que os impostores incrementam, tanto em oposição a ela
como ao ensino dela! Todavia, esse não é um exemplo novo. A Elias, indagou-se
se porventura não era ele quem perturbava Israel (1 Reis 18.17). Para os judeus,
Cristo era sedicioso (Lucas 23.5; João 19.7ss.). A acusação de incitar o povo
recaiu contra os apóstolos (Atos 24.5ss.). O que mais estão fazendo os que nos
culpam hoje por todas as perturbações, tumultos e contendas que borbulham
contra nós? Elias nos ensinou como devemos responder a tais acusações: não
somos nós que difundimos erros por toda parte ou incitamos tumultos, mas
aqueles que contendem contra o poder de Deus (1 Reis 18.18). Mas, ainda que só
essa resposta seja suficiente para refrear sua temeridade, também, em
contrapartida, pode socorrer a estultícia de outros que, com frequência, se
deixam mover por tais escândalos e, assim perturbados, vacilar. Estes, pois,
para que não desmaiem com essa perturbação, nem retrocedam, devem entender que
as mesmas coisas que hoje nos ocorrem foram experimentadas pelos apóstolos em
seu tempo.
Houve homens iletrados e instáveis que, para sua
própria destruição, perverteram coisas que foram divinamente escritas por
Paulo, no dizer de Pedro (2 Pedro 3.16). Havia desprezadores de Deus que,
ouvindo que o pecado transbordara para que a graça superabundasse, prontamente
concluíram: “Permaneceremos no pecado, para que a graça transborde ainda mais”
(cf. Romanos 6.1). Ao ouvirem que os crentes já não estão mais debaixo da lei,
prontamente gracejaram: “Pecaremos porque já não estamos debaixo da lei, mas
debaixo da graça” (cf. Romanos 6.15). Houve pessoas que acusaram Paulo de ser
um fomentador do mal (Romanos 3.8). Muitos falsos apóstolos se introduziram nas
igrejas para destruí-las, as quais ele havia edificado (1 Coríntios 1.10–17; 2
Coríntios 11.3–15; Gálatas 1.6–11). “Alguns pregavam o evangelho movidos de
inveja e porfia (Filipenses 1.15), “não sinceramente”, até mesmo
maliciosamente, “pensando com isso aumentar o peso de suas cadeias” (Filipenses
1.17). Em outros lugares, o evangelho fez pouco progresso. “Todos buscavam seus
próprios interesses, não os de Jesus Cristo” (Filipenses 2.21). Outros
retornavam, “como cães, ao seu vômito, e, como porcos, a revolver-se na lama” (2
Pedro 2.22). Muitos degradavam a liberdade do Espírito à licenciosidade da
carne (2 Pedro 2.18– 19). Muitos irmãos se introduziam ardilosamente, expondo,
assim, os santos aos perigos (2 Coríntios 11.3-6). Entre esses mesmos irmãos,
explodiam várias contendas (Atos 6; 11; 15). Nesse caso, o que os apóstolos
deveriam fazer? Deveriam ter dissimulado por algum tempo, ou desistido
totalmente do evangelho, abandonando-o, porque viam que era sempre semente de
tantas disputas, fonte de tantos perigos, ocasião de tantos escândalos?
Todavia, nas tribulações desse gênero, foram sustentados pelo pensamento de que
Cristo é “rocha de escândalo e pedra de tropeço” (Romanos 9.33; cf. 1 Pedro
2.8; Isaías 8.14), “posto para a queda e o soerguimento de muitos... e por sinal
aos que se contradizem” (Lucas 2.34). Armados com essa certeza, ousadamente
avançaram em meio a todos os perigos de tumultos e escândalos. Convém que
também nós sejamos sustentados pela mesma consideração, conquanto Paulo
testifica em prol desta eterna qualidade do evangelho: que “ele é um aroma de
morte para a morte” (2 Coríntios 2.15) para aqueles que perecem; para aqueles
que já foram salvos, “ele é um aroma de vida para a vida” (2 Coríntios 2.16).
8. QUE O REI SE ACAUTELE DE AGIR SOB FALSAS ACUSAÇÕES:
OS INOCENTES AGUARDAM A DEFESA DIVINA
Eu, porém, volto a vos falar, ó mui generoso Rei. De
modo algum vos deixeis mover por aquelas vãs acusações com que nossos
adversários tentam inspirar-vos terror: de que, por esse novo evangelho (pois
assim o chamam), os homens se esforçam e só buscam oportunidade para sedições e
impunidade de todos os crimes. “Pois Deus não é o autor de divisão, e sim de
paz” (1 Coríntios 14.33); e o Filho de Deus não é “o ministro do pecado”
(Gálatas 2.17), porquanto ele veio “destruir as obras do diabo” (1 João 3.8).
E somos também injustamente acusados de uma espécie de
intenção que jamais se permita suscitar a mínima suspeita. Nós estamos, suponho
eu, envidando todos os esforços para a sublevação dos reinos – nós, de quem
jamais se ouviu sequer uma palavra sediciosa; nós que, quando vivemos sob vosso
(governo), sempre fomos reconhecidos como tranquilos e simples; nós, que não
cessamos de orar pela plena prosperidade vossa e de vosso reino, embora hoje
sejamos fugitivos da pátria! Presumo que somos caçados de um modo selvagem por
vícios libertinos! Ainda que, em nossas ações morais, muitas coisas sejam
dignas de censura, nada merece tão grande censura do que isso. E, pela bondade
de Deus, não temos haurido tão pouco proveito do evangelho que nossa vida não
seja para esses mentirosos um exemplo de castidade, generosidade, misericórdia,
continência, modéstia e de todas as demais virtudes.
É perfeitamente evidente que tememos e cultuamos a
Deus; pois que, com nossa vida e com nossa morte, desejamos que seu nome seja
santificado (cf. Filipenses 1.20) e nossos próprios adversários se veem
constrangidos a dar testemunho da inocência e da justiça política de alguns de
nossos homens, aos quais eles faziam morrer por aquilo que era digno de perpétua
memória. Mas, se algumas pessoas suscitam tumulto sob o pretexto do evangelho –
até aqui, nenhuma dessas pessoas tem sido encontrada em nosso ambiente –, se
alguns adornam a licença de seus próprios vícios como a liberdade da graça de
Deus – tenho conhecido muitos desse tipo –, há leis e penas legais pelas quais
devem ser severamente refreados segundo seus méritos. Que o evangelho de Deus
não seja blasfemado por causa da perversidade dos homens infames!
A perversa peçonha de nossos caluniadores tem sido, ó
nobilíssimo Rei, em seus muitos detalhes, tão suficientemente desmascarada que
não podeis inclinar um ouvido crédulo, além da medida, às suas calúnias. Temo,
inclusive, que tantos detalhes sejam incluídos, visto que este prefácio já
cresceu quase ao tamanho de toda a apologia. Nele, não tentei formular uma
defesa, mas meramente dispor vossa mente a dar ouvidos à apresentação objetiva
de nossa causa. Vossa mente está agora, de fato, desviada e alienada de nós,
inclusive inflamada. E eu acrescentaria: até mesmo contra nós. Mas confiamos
que possamos reconquistar vosso favor se, de um modo tranquilo, composto,
quando lerdes esta nossa confissão, a qual desejamos que sirva de defesa diante
de Vossa Majestade. Não obstante, suponhamos que os sussurros dos malevolentes
de tal modo tapem vossos ouvidos que os acusados não tenham chance de falar em
defesa própria, mas aquelas fúrias selvagens, enquanto concordardes com eles,
sempre rugirão contra nós com prisões, açoites, flagelações, mutilações e
fogueiras (cf. Hebreus 11.36-37). Então, seremos reduzidos ao extremo último
justamente como ovelhas destinadas ao matadouro (Isaías 53.7-8; Atos 8.33). Mas
isso só se dará se, “em nossa paciência, possuirmos nossas almas” (Lucas
21.19); e se esperarmos a forte mão do Senhor, a qual seguramente se
manifestará em seu devido tempo, mostrando-se armada para livrar os pobres de
sua aflição e também punir seus desprezadores.
Que o SENHOR, O REI DOS REIS, estabeleça vosso trono
em retidão (cf. Provérbios 25.5), e vosso domínio, com equidade, poderosíssimo
e eminentíssimo Rei.
De Basileia, 23 de agosto
do ano de 1535.
Referências Bibliográficas
CALVIN,
Jean. As
Institutas da Religião Cristã, edição
clássica, em quatro volumes, tradução de Waldyr Carvalho Luz, com base na
edição de 1559 em latim. São Paulo: Editora Cultura Cristã, Primeira Edição, 1984.
CALVIN, Jean. As
Institutas ou Instituição da Religião Cristã (da edição original francesa
de 1541). Tradução e leitura de provas Odayr Olivetti; revisão e notas de
estudo e pesquisa Herminsen Maia Pereira da Costa. 1ª edição. São Paulo:
Editora Cultura Cristã, 2002.
CALVIN,
Jean. As
Institutas da Religião Cristã, edição
clássica, em quatro volumes, tradução de Waldyr Carvalho Luz, com base na
edição de 1559 em latim. São Paulo: Editora Cultura Cristã, Segunda Edição,
revista, com linguagem atualizada e simplificada, 2004.
CALVIN, Jean. As
Institutas da Religião Cristã, edição especial, em quatro volumes, com
notas para estudo e pesquisa, tradução de Odayr Olivetti, com base na tradução
da edição de 1541 em francês. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2006.
CALVIN,
Jean. A Instituição da Religião Cristã,
em dois volumes, tradução de Carlos Eduardo de Oliveira [vol 1], Omayr J. de
Moraes Jr. e Elaine C. Sartorelli [vol 2], com base na edição de 1559 em latim.
São Paulo: Editora da UNESP, 2008
[vol 1] e 2009 [vol 2].
Calvino e Suas Institutas – Uma Leitura: Introdução
https://historiologiaprotestante.blogspot.com/2022/06/calvino-e-suas-institutas-uma-leitura.html?spref=tw
Calvino Singularidades: O Motivo Primário Para Escrever as Institutas
https://historiologiaprotestante.blogspot.com/2020/03/Calvino-singularidades-o-motivo.html?spref=tw
Calvino: Comentários Bíblicos em Ordem Cronológica
https://historiologiaprotestante.blogspot.com/2020/07/calvino-comentarios-biblicos-em-ordem.html?spref=tw
Calvino e a Importância da Música (1ª Parte)
https://historiologiaprotestante.blogspot.com/2020/05/Calvino-e-importancia-da-musica-1-parte.html?spref=tw
Calvino e Sua Relação com os Pais da Igreja
https://historiologiaprotestante.blogspot.com/2020/03/Calvino-e-sua-relacao-com-os-pais-da.html?spref=tw
Protestantismo: Os Quatro João (John) da Reforma
https://historiologiaprotestante.blogspot.com/2019/08/protestantismo-os-quatro-joao-john-da.html?spref=tw
[1]
Devo esse texto à tradução do eminente tradutor e inestimável Rev. Valter
Graciano Martins, que fez uma tradução em linguagem mais acessível aos leitores
brasileiros, com pequenos e quase imperceptíveis ajustes à luz de outro
eminente tradutor Dr. e Rev. Waldyr Carvalho Luz que rompeu os 400 anos de
silêncio desta inigualável obra de Calvino, ao verte-la para o vernáculo
português, possibilitando aos calvinistas reformados no Brasil o privilégio de
pela primeira vez lê-la. A diferença nas traduções é apenas de objetivos, o Dr.
Waldyr faz a tradução como trabalho acadêmico como tese de seu doutorado e o
Rev. Valter tem um objetivo mais pastoral. Todavia, ambas as traduções tem sua
relevância e estão inseridas nas referências bibliográficas, assim como outras
traduções.
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