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segunda-feira, 3 de julho de 2023

MULHERES DA REFORMA PROTESTANTE – Anna Reinhard


          Quando se fala de Reforma Protestante nossa mente é tomada por uma série de nomes masculinos, mas poucos são capazes de se lembrar de pelo menos alguns nomes de mulheres que participaram ativamente deste movimento reformador ocorrido no hoje longínquo século XVI, mas que ainda hoje no século XXI exerce forte influência em muitos países, incluindo o Brasil.

          Ao começarmos a pesquisar sobre a vida destas mulheres descobrimos um manancial de fé, amor, força e desprendimento que não apenas nos encantam, mas acima de tudo nos desafiam. Se para os homens do medievo aderir ao movimento da Reforma era um desafio e exigia o máximo de cada um, para as mulheres os desafios eram ainda maiores e mais custosos – elas (como ainda hoje) tinham que equilibrar sua própria vida, de seu marido e seus filhos. Elas podiam, assim como apostolo Paulo, declararem que pesava sobre elas essa tremenda responsabilidade de levar o Evangelho puro a todos os ouvidos entupidos por toda sorte de desvios doutrinários e heresias idolatras.

          O meu convite é que você possa, assim como eu, descobrir cada uma destas mulheres e não apenas aprender com elas, mas se deixar ser desafiado por elas em fé e coragem. Que possamos com elas permanecermos firmes e inabaláveis em meios às maiores adversidades, bem como sermos pacientes nas tribulações. Cada uma delas figura na Galeria da Fé Reformada e parafraseando o escritor bíblico de Hebreus – o mundo não foi digno delas.

Anna Reinhard

          Propositalmente retiro o sobrenome de seu marido (Zwínglio) para que a nossa atenção possa ser centrada na figura dela, pois ela possui valor intrínseco, pois sua vida e história fala por si mesma.

          Não há registro oficial da data de seu nascimento, todavia os historiadores propõem o ano de 1484. Muito cedo um jovem amigo, de origem nobre chamado John Meyer von Knonau se encantou por sua beleza e personalidade, mas seu pai se opôs, então o rapaz tomou a decisão de fugirem e se casarem secretamente. Porém, este ato de rebeldia lhe custou muito caro. Foi deserdado, sendo que a herança do pai foi deixada para a madrasta.

O marido de Anna foi agora lançado aos seus próprios recursos. Tentou a carreira política sendo eleito vereador em 1511, mas os recursos eram escassos e a saída encontrada foi tornar-se alferes no exército suíço, indo com eles para a Itália nas guerras contra a França. Depois de várias campanhas ele retorna com a saúde bastante debilitada e morreu em 1517, deixando Anna viúva com dois filhos, uma menina e um menino. Ela havia tido uma segunda filha, mas ela faleceu ainda bebê.

O filho Gerald Meyer será o instrumento da providência divina para a jovem viúva. Era um menino que chamava a atenção e certo dia, com três anos, sendo levado ao mercado seu avô paterno o viu e se encantou pelo menino e depois de tomar conhecido que se tratava de seu próprio neto, esquecendo a frustração com o filho assume os cuidados do neto.  Aos nove anos o avô faleceu e ele continuou sendo cuidado pela avó (madrasta do seu pai), de maneira que somente aos onze anos, com o falecimento da avó-madrasta o menino retorna aos cuidados de Anna.  

A providência divina em ação. Anna estava travando sua luta para sustentar e educar seus filhos, embora estivesse limitada pelos seus poucos recursos. Neste interim o reformador suíço Ulrico Zwínglio veio para Zurique, sua pregação e sua personalidade atraia muitas pessoas, dentre as quais estava Anna, pois sua residência ficava na área atendida por esta paróquia.

No exercício de seu ofício paroquial Zwínglio tinha que dar assistência às famílias, foi quando passou a ter contato com a viúva e seus filhos. Logo percebe as necessidades da família, mas foi o agora jovem Gerald que lhe chama mais atenção. O reformador percebe os talentos da criança e oferece aulas particulares de grego e latim, que eram obrigatórios para entrar em qualquer colégio ou academia na época. Desta forma ao chegar aos onze anos o menino foi então enviado para estudar em Basileia, então um dos mais importantes centros literários da Suíça, fazendo de Zwínglio um tutor não oficial do rapaz. O menino se destacou tanto nos estudos acadêmicos que seu professor escreve a Zwínglio que se tivesse outros com semelhante aptidão podia ser-lhe enviados que os receberia como pai.

A relação do reformador com o filho de Anna manteve-se forte e quando o rapaz foi (1523) enviado de férias aos balneários em Baden, em vez de lhe dar o presente habitual, Zwínglio deu-lhe algo que era melhor. Escreveu um livro, intitulado "Como se deve educar e instruir a juventude nas boas maneiras e disciplina cristã” e dedicou-o a ele.[1] Esses detalhes são relevantes pois Gerald será o link entre sua mãe e o reformador.

Percalços e Entraves para o Casamento

Todo cenário estava preparado para que Zwínglio e Anna se casassem, todavia, naquele momento histórico de ruptura isso se constituiu em enorme problema, pois ainda um ranço muito forte de que ministro, mesmo que reformado, não deveria se casar. Enfrentando todas as oposições eles se casaram (1522), primeiramente em segredo, mas posteriormente assumiram publicamente (1524) apenas um ano antes do casamento de Martinho Lutero com a ex-freira Katharina von Bora, o que causou forte comoção, ainda que tenha repercutido mais em sua cidade natal do que propriamente em Zurique. Os romanistas e anabatistas (grupo radical dos reformados), chegaram a o injuriarem espalhando de que Zwínglio havia se casado interessado no dinheiro e na beleza dela. Ele se defendeu publicamente declarando que a renda da esposa alcançava pouco mais de 400 florins (1.053,44 reais) anuais.

Anna e suas Múltiplas Atividades

          Como tantas outras mulheres Anna não se acomodou com o simples papel de dona de casa. Ela tinha consciência de que olhos furtivos estariam sobre ela, até mais do que no marido. Sem que fosse pedido ou sugerido pelo marido, ela voluntariamente abriu mão de utilizar suas joias. Além de extremamente cuidadosa com as coisas da casa, filhos e marido, ela voltou-se para o campo da ação social trabalhando incansavelmente em favor dos desfalecidos e párias sociais, bem como dos enfermos dentro do campo pastoral de Zwínglio. Começou a ser chamada carinhosamente de a “Dorcas da Reforma”, referência à personagem descrita em no livro de Atos (Atos 9.36-43). Seu cuidado para com o esposo era ainda maior. Ela participava efetivamente de todos os momentos do reformador, fossem nas alegrias ou tristezas do ministério.

          Quando o esposo iniciou o trabalho precioso da tradução da Bíblia (1525), juntamente com outros reformadores de Zurique e que foi concluído depois de quatro anos (1529)[2] de árduo e exaustivo esforço (ele não tinha nenhum dos confortos mínimos de hoje, como por exemplo, luz elétrica).

          Anna era a primeira ouvinte dos textos traduzidos por Zwínglio pouco antes de irem dormir e era testemunha da satisfação de ouvir os evangelhos em sua própria língua suíça, na medida em que os textos eram produzidos. Quando saiu a primeira edição desta tradução completa ela recebeu de presente do esposo um exemplar. Imediatamente ela começa um projeto de financiar esta bíblia traduzida para cada família da igreja, pois o custo dos livros era muito grande no medievo.

          Ela está sempre atenta para a exaustão do esposo que muitas vezes se deixava absorver integralmente em suas múltiplas atividades pastorais. Era costume dele levantar-se muito cedo para aproveitar cada lampejo da claridade e acabava indo dormir muito tarde. Desta forma ela o fazia descansar um pouco mais.

Em suas relações interpessoais era bastante prudente evitando quaisquer conversas frívolas e se atentando para as conversas que edificavam. Anna tinha plena satisfação de conversas que podiam trazer novos subsídios para o seu entendimento bíblico e devocional. Amava ouvir as pregações de Zwínglio, mesmo antes de se casarem, trazendo novas percepções da pessoa e ensino de Cristo. Lembrando que ela cresceu em pleno romanismo em seu estágio mais deplorável - missas, peregrinações, relíquias, veneração de santos e a paisagem urbana dela era moldada pelo catolicismo (sete mosteiros e quatro igrejas).

          Por sua vez Zwínglio tinha o maior respeito pelo caráter e fé de Anna e em todas as oportunidades ele expressa esse reconhecimento. Em uma de suas poucas correspondências que foram preservadas ele se refere a Anna como uma amálgama entre Marta e Maria. Era a realidade dessa mulher, que soube como poucas equilibrar a família com uma vida cristã intensamente ativa.

Pela relevância que Zwínglio alcançava, sua residência estava sempre recebendo toda sorte de pessoas, dos amigos, aos irmãos da fé, bem como os refugiados que estavam sendo perseguidos e mortos pelas autoridades à serviço do romanismo.

Na ausência do marido era Anna que assumia o papel de anfitriã e conduzia as conversas e discussões sobre os temas cotidianos. Há várias referências de ilustres personagens históricos daqueles dias que ratificam o testemunho do caráter e do discernimento que Anna possuía a respeito das temáticas bíblicas, políticas e sociais.

Nem tudo eram flores, pois viviam em dias tremendamente difíceis. Zwínglio e demais expoentes da Reforma viviam em permanente risco de morte e Anna sabia muito bem disso. Cuidava em tempo integral da segurança do esposo, sempre atenta aos rumores e sempre precavida em relação à segurança dele.

Sabia que o marido não deveria sair sozinho à noite, pois poderia ser raptado e levado para algum cantão católico, assim como acontecera com John Huss que foi preso, julgado e condenado, por isso ela sempre arrumava alguém para viajar junto com ele. Tinha que ficar atento ao que ele comia pois havia o risco constante de ser envenenado. Sempre vigilante, Anna, mantinha sempre pessoas que poderiam socorrê-lo em uma emergência. Mesmo na cidade, não o deixava ir ou retornar de suas atividades pastorais sozinho, principalmente depois de escurecer.

Ela era a fiel guardiã e graças a essas ações muitas tentativas contra a vida de Zwínglio, embora próximas do cumprimento, foram frustradas. Em 28 de agosto de 1525, a casa deles foi apedrejada por dois cidadãos à noite, por exemplo, um susto sem efeitos colaterais maiores. Por todo esse zelo Zwínglio chamava Anna de “esposa anjo”, reconhecendo publicamente seu respeito e gratidão por ela.

Nuvens Escuras se Formam

          Apesar de toda tensão que Anna e Zwínglio viviam dias mais difíceis estavam por chegar. No dia 09 de outubro de 1531 é anunciado que o exército dos cantões católicos marcha contra a cidade de Zurique. Imediatamente foram convocados os soldados da cidade para enfrentar os inimigos. Zwínglio é convocado como Capelão desse exército.  Anna revê um filme que havia assistido com o primeiro esposo. Os soldados se reúnem na Praça da Cidade e ela ali se faz presente juntamente com os filhos. As lágrimas ficam incontidas, principalmente quando Zwínglio lhe fala: “Chegou a hora que nos separar”. Enquanto a esposa lhe dá um abraço de despedida, mesmo tomada pelo medo ela ainda consegue dizer-lhe: “Vamos nos ver novamente se o Senhor assim quiser”, e pergunta-lhe: “O que você trará quando retornar?”. E ele reponde: “Bênção após a noite escura”. Esse foi o último diálogo deles e as palavras do marido a confortou para as notícias que chegariam, pois ela cria que a bênção viria depois da noite escura da terra, tinha a forte convicção da luz bendita da pátria celestial.

          Retornando rapidamente para casa com os filhos, derrama-se diante do Senhor e ora as palavras de Jesus no Getsêmani: "Pai, não a minha vontade, mas a Tua seja feita”. Resoluta, aguarda as notícias advindas do campo de batalha. Chegam então as terríveis notícias, com a notícia da morte do marido vieram relatos sobre as mortes de seu filho Gerald, seu irmão, genros, seu

cunhado, seu primo e muitos amigos que também caído. Ela foi dominada pela dor e chorou amargamente com seus filhos (Grob 1883:192). A cidade foi tomada por sonoros gritos de lamentação e lágrimas, mas seu choro sobressaia-se e sua dor dilacerava seu coração.

A morte lhe cercou por todos os lados e então lhe chegou os detalhes horrendos de que o corpo de Zwínglio fora esquartejado e queimado e suas cinzas espalhadas por vários lugares – para que não ficasse vestígio algum dele. Poucos experimentaram tamanha dor e sofrimento. Um profeta experimentou tamanha dor e sofrimento, o profeta Jeremias: “Atendei, e vede, se há dor como a minha dor, que veio sobre mim,” (Lamentações 1.12).

 O consolo reconfortante veio de todos os lugares, desde os moradores da cidade, como das autoridades civis e religiosas. Muitos ministros reformados de outras cidades, como Bucer da cidade de Strasbourg, lhes escreveram cartas que muito a confortaram.

O jovem Henry Bullinger, o sucessor de seu marido lhe disse: “Nada te faltará, querida mãe” e de fato ele passou a cuidar dela e seus filhos, uma vez que Zwínglio quase nada havia deixado, pois tudo investia na obra.

Assim como o apostolo João se responsabilizou por Maria, Henry levou Anna com os filhos para sua casa, junto à sua família. Assumiu plenamente os cuidados paternais para com as crianças, supervisionando sua educação e quando o jovem Ulric alcançou idade foi enviado para Basileia custeado por Henry.

          Anna passou seus últimos anos vivendo para os filhos Regula, Ana, Guilherme, e Huldrych, de Zwínglio. Ainda que com menos intensidade continuou a atuar em seus esforços de atividades sociais junto à igreja e aos necessitados. Sua filha mais velha Regula herdou a beleza da mãe e a piedade dos pais. Casou-se com o jovem Rudolph Gualther, que se tornou o chefe da igreja em Zurique. Durante a terrível perseguição contra os reformados no reinado de Maria (a sanguinária) na Inglaterra, muitos refugiados procuram asilo na Suíça e vários encontraram abrigo na residência deste casal, entre tantos Grindal, que posteriormente foi constituído arcebispo de Canterbury. Após a morte de Regula o esposo escreveu: “ela soube afastar a tristeza e todo cuidado atormentador”, o que tão bem poderia ser dito de sua mãe Anna. A saúde de Anna foi se debilitando, mas enquanto teve forças jamais esmoreceu. Veio a falecer em 06 de dezembro de 1538.

O testemunho de Bullinger nos dá uma ideia do que foi a vida de Anna Reinhard Zwínglio:Não desejo um final de vida mais feliz. Ela faleceu tranquilamente, como uma luz suave, e foi para casa de seu Senhor, adorando e recomendando a todos nós a Deus”. Sua morte foi como sua vida - doce, tranquila, linda. A cena mais marcante de sua vida, e a mais dolorosa foi as mortes do marido e filho.

 

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Reflexão Bíblica
http://reflexaobiblica.spaceblog.com.br/

 

 Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Rute Salviano. Uma voz feminina na reforma. A contribuição de Margarida de Navarra à Reforma Protestante. São Paulo: Hagnos, 2010.

BAITER, H. Ulrich Zwingli e Gerold Meyer von Knonau.

GOOD, James I. Womem fo the Reformed Church. Published by The Sunday-School Board of the Reformed Church in the United States. 1901. [First Edition].

RUBLACK, Ulinka (ed). The Oxford Handbook of the Protestant Reformations [O Manual de Oxford das Reformas Protestantes]. Oxford: Oxford U.P., 2017.

STJERNA, Kirsi. Women and the Reformation. John Wiley & Sons, 2011.

TEIXEIRA, José Luiz Sauer. A atuação das mulheres nas primeiras comunidades cristãs. Revista de Cultura Teológica, v. 18, n. 72 - OUT/DEZ 2010.

UBIETA, Carmen Bernabé (Ed.) Mujeres com autoridade em el cristianismo antiguo. Espanã: Asociación de Te´plogas Esanõlas (ATE) e Editorial Verbo Divino, 2007.

VANDOODWAAR, Rebecca. Reformation Women: Sixteenth-Century Figures who Shaped Christianity's Rebirth. Reformation Heritage Books, 2017.

WARNICKE, Retha M. Women of the English Renaissance and Reformation. ABC-CLIO, 1983.

WILSON, Derek. Mrs Luther and her sisters: Women in the Reformation. Lion Books, 2016.

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[1] Esta se constitui em uma das primeiras, senão a primeira, obra no âmbito educacional, produzida por um reformador. A qual irei disponibilizar, em breve, no blog com a transcrição da dedicatória. Este trabalho foi selecionado por estudiosos como sendo culturalmente importante e faz parte da base de conhecimento da civilização como a conhecemos.

[2] Lembrando que o igualmente esforço extraordinário de Lutero em traduzir a Bíblia para a língua alemã, foi lançada somente em 1534.

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