Ao começarmos a pesquisar sobre a vida
destas mulheres descobrimos um manancial de fé, amor, força e desprendimento
que não apenas nos encantam, mas acima de tudo nos desafiam. Se para os homens
do medievo aderir ao movimento da Reforma era um desafio e exigia o máximo de
cada um, para as mulheres os desafios eram ainda maiores e mais custosos – elas
(como ainda hoje) tinham que equilibrar sua própria vida, de seu marido e seus
filhos. Elas podiam, assim como apostolo Paulo, declararem que pesava sobre
elas essa tremenda responsabilidade de levar o Evangelho puro a todos os
ouvidos entupidos por toda sorte de desvios doutrinários e heresias idolatras.
O meu convite é que você possa, assim
como eu, descobrir cada uma destas mulheres e não apenas aprender com elas, mas
se deixar ser desafiado por elas em fé e coragem. Que possamos com elas
permanecermos firmes e inabaláveis em meios às maiores adversidades, bem como
sermos pacientes nas tribulações. Cada uma delas figura na Galeria da Fé
Reformada e parafraseando o escritor bíblico de Hebreus – o mundo não foi
digno delas.
Anna
Reinhard
Propositalmente retiro o sobrenome de
seu marido (Zwínglio) para que a nossa atenção possa ser centrada na figura
dela, pois ela possui valor intrínseco, pois sua vida e história fala por si
mesma.
Não há registro oficial da data de seu
nascimento, todavia os historiadores propõem o ano de 1484. Muito cedo um jovem
amigo, de origem nobre chamado John Meyer von Knonau se encantou por sua beleza
e personalidade, mas seu pai se opôs, então o rapaz tomou a decisão de fugirem
e se casarem secretamente. Porém, este ato de rebeldia lhe custou muito caro. Foi
deserdado, sendo que a herança do pai foi deixada para a madrasta.
O marido de Anna foi agora lançado aos seus
próprios recursos. Tentou a carreira política sendo eleito vereador em 1511,
mas os recursos eram escassos e a saída encontrada foi tornar-se alferes no
exército suíço, indo com eles para a Itália nas guerras contra a França. Depois
de várias campanhas ele retorna com a saúde bastante debilitada e morreu em
1517, deixando Anna viúva com dois filhos, uma menina e um menino. Ela havia
tido uma segunda filha, mas ela faleceu ainda bebê.
O filho Gerald Meyer será o instrumento da
providência divina para a jovem viúva. Era um menino que chamava a atenção e
certo dia, com três anos, sendo levado ao mercado seu avô paterno o viu e se
encantou pelo menino e depois de tomar conhecido que se tratava de seu próprio
neto, esquecendo a frustração com o filho assume os cuidados do neto. Aos nove anos o avô faleceu e ele continuou
sendo cuidado pela avó (madrasta do seu pai), de maneira que somente aos onze
anos, com o falecimento da avó-madrasta o menino retorna aos cuidados de Anna.
A providência divina em ação. Anna estava travando
sua luta para sustentar e educar seus filhos, embora estivesse limitada pelos
seus poucos recursos. Neste interim o reformador suíço Ulrico Zwínglio veio
para Zurique, sua pregação e sua personalidade atraia muitas pessoas, dentre as
quais estava Anna, pois sua residência ficava na área atendida por esta
paróquia.
No exercício de seu ofício paroquial Zwínglio
tinha que dar assistência às famílias, foi quando passou a ter contato com a
viúva e seus filhos. Logo percebe as necessidades da família, mas foi o agora
jovem Gerald que lhe chama mais atenção. O reformador percebe os talentos da
criança e oferece aulas particulares de grego e latim, que eram obrigatórios
para entrar em qualquer colégio ou academia na época. Desta forma ao chegar aos
onze anos o menino foi então enviado para estudar em Basileia, então um dos
mais importantes centros literários da Suíça, fazendo de Zwínglio um tutor não
oficial do rapaz. O menino se destacou tanto nos estudos acadêmicos que seu professor
escreve a Zwínglio que se tivesse outros com semelhante aptidão podia ser-lhe
enviados que os receberia como pai.
A relação do reformador com o filho de Anna
manteve-se forte e quando o rapaz foi (1523) enviado de férias aos balneários
em Baden, em vez de lhe dar o presente habitual, Zwínglio deu-lhe algo que era
melhor. Escreveu um livro, intitulado "Como se deve educar e instruir a juventude
nas boas maneiras e disciplina cristã” e dedicou-o a ele.[1] Esses detalhes são
relevantes pois Gerald será o link entre sua mãe e o reformador.
Percalços
e Entraves para o Casamento
Todo cenário estava preparado para que Zwínglio
e Anna se casassem, todavia, naquele momento histórico de ruptura isso se
constituiu em enorme problema, pois ainda um ranço muito forte de que ministro,
mesmo que reformado, não deveria se casar. Enfrentando todas as oposições eles
se casaram (1522), primeiramente em segredo, mas posteriormente assumiram publicamente
(1524) apenas um ano antes do casamento de Martinho Lutero com a ex-freira
Katharina von Bora, o que causou forte comoção, ainda que tenha repercutido
mais em sua cidade natal do que propriamente em Zurique. Os romanistas e
anabatistas (grupo radical dos reformados), chegaram a o injuriarem espalhando
de que Zwínglio havia se casado interessado no dinheiro e na beleza dela. Ele
se defendeu publicamente declarando que a renda da esposa alcançava pouco mais
de 400 florins (1.053,44 reais) anuais.
Anna
e suas Múltiplas Atividades
Como tantas outras mulheres Anna não
se acomodou com o simples papel de dona de casa. Ela tinha consciência de que
olhos furtivos estariam sobre ela, até mais do que no marido. Sem que fosse
pedido ou sugerido pelo marido, ela voluntariamente abriu mão de utilizar suas
joias. Além de extremamente cuidadosa com as coisas da casa, filhos e marido,
ela voltou-se para o campo da ação social trabalhando incansavelmente em favor
dos desfalecidos e párias sociais, bem como dos enfermos dentro do campo
pastoral de Zwínglio. Começou a ser chamada carinhosamente de a “Dorcas da
Reforma”, referência à personagem descrita em no livro de Atos (Atos 9.36-43). Seu
cuidado para com o esposo era ainda maior. Ela participava efetivamente de
todos os momentos do reformador, fossem nas alegrias ou tristezas do
ministério.
Quando o esposo iniciou o trabalho
precioso da tradução da Bíblia (1525), juntamente com outros reformadores de
Zurique e que foi concluído depois de quatro anos (1529)[2] de árduo e exaustivo
esforço (ele não tinha nenhum dos confortos mínimos de hoje, como por exemplo,
luz elétrica).
Anna era a primeira ouvinte dos textos
traduzidos por Zwínglio pouco antes de irem dormir e era testemunha da
satisfação de ouvir os evangelhos em sua própria língua suíça, na medida em que
os textos eram produzidos. Quando saiu a primeira edição desta tradução
completa ela recebeu de presente do esposo um exemplar. Imediatamente ela
começa um projeto de financiar esta bíblia traduzida para cada família da
igreja, pois o custo dos livros era muito grande no medievo.
Ela está sempre atenta para a exaustão
do esposo que muitas vezes se deixava absorver integralmente em suas múltiplas atividades
pastorais. Era costume dele levantar-se muito cedo para aproveitar cada lampejo
da claridade e acabava indo dormir muito tarde. Desta forma ela o fazia
descansar um pouco mais.
Em suas relações interpessoais era bastante
prudente evitando quaisquer conversas frívolas e se atentando para as conversas
que edificavam. Anna tinha plena satisfação de conversas que podiam trazer
novos subsídios para o seu entendimento bíblico e devocional. Amava ouvir as
pregações de Zwínglio, mesmo antes de se casarem, trazendo novas percepções da
pessoa e ensino de Cristo. Lembrando que ela cresceu em pleno romanismo em seu
estágio mais deplorável - missas, peregrinações, relíquias, veneração de santos
e a paisagem urbana dela era moldada pelo catolicismo (sete mosteiros e quatro
igrejas).
Por sua vez Zwínglio tinha o maior
respeito pelo caráter e fé de Anna e em todas as oportunidades ele expressa
esse reconhecimento. Em uma de suas poucas correspondências que foram preservadas
ele se refere a Anna como uma amálgama entre Marta e Maria. Era a realidade
dessa mulher, que soube como poucas equilibrar a família com uma vida cristã intensamente
ativa.
Pela relevância que Zwínglio alcançava, sua
residência estava sempre recebendo toda sorte de pessoas, dos amigos, aos irmãos
da fé, bem como os refugiados que estavam sendo perseguidos e mortos pelas
autoridades à serviço do romanismo.
Na ausência do marido era Anna que assumia o
papel de anfitriã e conduzia as conversas e discussões sobre os temas
cotidianos. Há várias referências de ilustres personagens históricos daqueles
dias que ratificam o testemunho do caráter e do discernimento que Anna possuía a
respeito das temáticas bíblicas, políticas e sociais.
Nem tudo eram flores, pois viviam em dias tremendamente
difíceis. Zwínglio e demais expoentes da Reforma viviam em permanente risco de
morte e Anna sabia muito bem disso. Cuidava em tempo integral da segurança do
esposo, sempre atenta aos rumores e sempre precavida em relação à segurança dele.
Sabia que o marido não deveria sair sozinho à
noite, pois poderia ser raptado e levado para algum cantão católico, assim como
acontecera com John Huss que foi preso, julgado e condenado, por isso ela sempre
arrumava alguém para viajar junto com ele. Tinha que ficar atento ao que ele comia
pois havia o risco constante de ser envenenado. Sempre vigilante, Anna, mantinha
sempre pessoas que poderiam socorrê-lo em uma emergência. Mesmo na cidade, não
o deixava ir ou retornar de suas atividades pastorais sozinho, principalmente
depois de escurecer.
Ela era a fiel guardiã e graças a essas ações muitas
tentativas contra a vida de Zwínglio, embora próximas do cumprimento, foram
frustradas. Em 28 de agosto de 1525, a casa deles foi apedrejada por dois
cidadãos à noite, por exemplo, um susto sem efeitos colaterais maiores. Por
todo esse zelo Zwínglio chamava Anna de “esposa anjo”, reconhecendo
publicamente seu respeito e gratidão por ela.
Nuvens
Escuras se Formam
Apesar de toda tensão que Anna e Zwínglio
viviam dias mais difíceis estavam por chegar. No dia 09 de outubro de 1531 é
anunciado que o exército dos cantões católicos marcha contra a cidade de
Zurique. Imediatamente foram convocados os soldados da cidade para enfrentar os
inimigos. Zwínglio é convocado como Capelão desse exército. Anna revê um filme que havia assistido com o
primeiro esposo. Os soldados se reúnem na Praça da Cidade e ela ali se faz
presente juntamente com os filhos. As lágrimas ficam incontidas, principalmente
quando Zwínglio lhe fala: “Chegou a hora que nos separar”. Enquanto a
esposa lhe dá um abraço de despedida, mesmo tomada pelo medo ela ainda consegue
dizer-lhe: “Vamos nos ver novamente se o Senhor assim quiser”, e
pergunta-lhe: “O que você trará quando retornar?”. E ele reponde: “Bênção
após a noite escura”. Esse foi o último diálogo deles e as palavras do
marido a confortou para as notícias que chegariam, pois ela cria que a bênção
viria depois da noite escura da terra, tinha a forte convicção da luz bendita da
pátria celestial.
Retornando rapidamente para casa com
os filhos, derrama-se diante do Senhor e ora as palavras de Jesus no Getsêmani:
"Pai, não a minha vontade, mas a Tua seja feita”. Resoluta, aguarda as
notícias advindas do campo de batalha. Chegam então as terríveis notícias, com a
notícia da morte do marido vieram relatos sobre as mortes de seu filho Gerald,
seu irmão, genros, seu
cunhado,
seu primo e muitos amigos que também caído. Ela foi dominada pela dor e chorou
amargamente com seus filhos (Grob 1883:192). A cidade foi tomada por sonoros
gritos de lamentação e lágrimas, mas seu choro sobressaia-se e sua dor
dilacerava seu coração.
A morte lhe cercou por todos os lados e então
lhe chegou os detalhes horrendos de que o corpo de Zwínglio fora esquartejado e
queimado e suas cinzas espalhadas por vários lugares – para que não ficasse
vestígio algum dele. Poucos experimentaram tamanha dor e sofrimento. Um profeta
experimentou tamanha dor e sofrimento, o profeta Jeremias: “Atendei, e vede,
se há dor como a minha dor, que veio sobre mim,” (Lamentações 1.12).
O
consolo reconfortante veio de todos os lugares, desde os moradores da cidade,
como das autoridades civis e religiosas. Muitos ministros reformados de outras
cidades, como Bucer da cidade de Strasbourg, lhes escreveram cartas que muito a
confortaram.
O jovem Henry Bullinger, o sucessor de seu
marido lhe disse: “Nada te faltará, querida mãe” e de fato ele passou a cuidar
dela e seus filhos, uma vez que Zwínglio quase nada havia deixado, pois tudo
investia na obra.
Assim como o apostolo João se responsabilizou
por Maria, Henry levou Anna com os filhos para sua casa, junto à sua família.
Assumiu plenamente os cuidados paternais para com as crianças, supervisionando
sua educação e quando o jovem Ulric alcançou idade foi enviado para Basileia custeado
por Henry.
Anna passou seus últimos anos vivendo
para os filhos Regula, Ana, Guilherme, e Huldrych, de Zwínglio. Ainda que com
menos intensidade continuou a atuar em seus esforços de atividades sociais
junto à igreja e aos necessitados. Sua filha mais velha Regula herdou a beleza
da mãe e a piedade dos pais. Casou-se com o jovem Rudolph Gualther, que se
tornou o chefe da igreja em Zurique. Durante a terrível perseguição contra os
reformados no reinado de Maria (a sanguinária) na Inglaterra, muitos refugiados
procuram asilo na Suíça e vários encontraram abrigo na residência deste casal,
entre tantos Grindal, que posteriormente foi constituído arcebispo de
Canterbury. Após a morte de Regula o esposo escreveu: “ela soube afastar a
tristeza e todo cuidado atormentador”, o que tão bem poderia ser dito de
sua mãe Anna. A saúde de Anna foi se debilitando, mas enquanto teve forças
jamais esmoreceu. Veio a falecer em 06 de dezembro de 1538.
O testemunho de Bullinger nos dá uma ideia do
que foi a vida de Anna Reinhard Zwínglio: “Não desejo um
final de vida mais feliz. Ela faleceu tranquilamente, como uma luz suave, e foi
para casa de seu Senhor, adorando e recomendando a todos nós a Deus”. Sua
morte foi como sua vida - doce, tranquila, linda. A cena mais marcante de sua
vida, e a mais dolorosa foi as mortes do marido e filho.
Utilização livre desde
que citando a fonteGuedes, Ivan PereiraMestre em Ciências da
Religiãome.ivanguedes@gmail.comOutro
BlogReflexão Bíblicahttp://reflexaobiblica.spaceblog.com.br/
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Rute Salviano. Uma voz feminina na reforma. A contribuição de Margarida de
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[1] Esta se constitui em uma das primeiras,
senão a primeira, obra no âmbito educacional, produzida por um reformador. A
qual irei disponibilizar, em breve, no blog com a transcrição da dedicatória. Este
trabalho foi selecionado por estudiosos como sendo culturalmente importante e
faz parte da base de conhecimento da civilização como a conhecemos.
[2] Lembrando que o igualmente esforço
extraordinário de Lutero em traduzir a Bíblia para a língua alemã, foi lançada
somente em 1534.
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