Dietrich Bonhoeffer teólogo, pastor e ativista cujo
centenário se comemorou em 2006 (Nasceu a 1906 e Morreu em 1945) – é um dos
muitos personagens protestantes que foram soterrados pelos escombros do
protestantismo brasileiro após os desvarios e abalos sísmicos que fizeram
tremer as estruturas eclesiásticas evangélicas nacionais pós 64.
Esse extraordinário líder
protestante alemão teve a ousadia e fé suficiente para enfrentar Hitler e toda
sua ideologia alucinógena que atraiu e pactuou com as instituições cristãs
alemãs. Bonhoeffer de fato foi uma voz que clamou no deserto de um cristianismo
amalgamado com um sistema completamente ímpio e anticristo, que veio a produzir
uma das maiores carnificinas da história humana de todos os tempos.
Enquanto a igreja cristã alemã se
calou acovardada e visando apenas e tão somente a autopreservação de suas
instituições eclesiásticas, Dietrich Bonhoeffer abriu mão de si mesmo em prol
de uma mensagem evangélica comprometida unicamente com os princípios estabelecidos
nas Escrituras. O preço de tal atitude não poderia ser outro – foi preso e morto
pelo Nazismo no campo de prisioneiros de Flossenbürg (Alemanha) no dia09 de
abril de 1945. Mas certamente pode ser colocado na “Galeria da Fé” da História
Cristã, pois jamais se contaminou ativa ou passivamente com os manjares e vinho de um
governo tirânico e corrupto, cujas ações ceifaram milhões de vidas e
traumatizaram outros bilhões ao longo dos séculos posteriores. A vida e o
martírio de Dietrich Bonhoeffer se tornou um modelo de postura cristã que não compactua com o mal, mas que
persistentemente visa o bem maior das pessoas e da sociedade no exercício de um
cristianismo vivo e atuante como um pouco de fermento que leveda toda a massa,
como Jesus ensinou. De um Evangelho da graça encarnada e não um pseudo-evangelho
eclesiástico-materialista-hedonista.
Na década de cinquenta e metade da
década de sessenta pela primeira e única vez em seus mais de cento e cinquenta
anos de presença no país, os protestantes se fizeram sentir agentes da nossa história.
Uma geração de jovens das mais diversas denominações evangélicas se fizeram
presentes nas mais diversas esferas sociais do Brasil. Como pequenas doses de
fermento estavam presentes no meio dos movimentos estudantis, dos operários,
dos sem-terra; adentraram nas favelas e cortiços que se haviam multiplicado ao
redor dos grandes centros urbanos industrializados. Inflamados por um Evangelho
da graça encarnado foram ao encontro das necessidades dos desvalidos, dos
abandonados, dos que nada tinham.
Eles não se satisfaziam mais com a “equidistância”
que por décadas manteve os evangélicos enclausurados em seus mosteiros e feudos
eclesiásticos. Imbuídos de uma mensagem cristã evangélica bíblica eles optaram por
coloca-la em prática.
Diante de um quadro de miséria produzida por empresários
gananciosos e governantes e políticos corruptos (qualquer semelhança com hoje
não é mera consciência) que impregnava o ar social de um repugnante fedor de
podridão e morte, esta geração de jovens evangélicos ousou desejar que as
pessoas e toda Sociedade brasileira pudessem através da sua mensagem evangélica
e das suas vidas “sentirem o doce e maravilhoso perfume de Cristo”
que proporcionaria a todos os brasileiros uma esperança concreta de vida em
abundância – de uma cidadania com dignidade.
Uma das fontes que fazia pulsar fortemente o coração e a
alma dessa geração foi a vida e as obras de Dietrich
Bonhoeffer que começava a serem traduzidas para o Brasil e estava sendo
colocadas nas mãos dos jovens estudantes secundaristas, universitários e
seminaristas. Para essa geração era impossível tomar conhecimento do que havia
acontecido na Alemanha de Hitler e do posicionamento evangélico de Dietrich
Bonhoeffer e permanecerem em suas fortificadas e confortáveis instituições eclesiásticas.
Mas esse movimento que tem nas “Conferências
do Nordeste” seu apogeu foi completamente dizimado pelos poderes eclesiásticos
evangélicos indistintos, e tudo quanto essa geração ousou fazer foi apagado das
páginas da historiografia oficial. Todas as lideranças, professores, pastores
entre centenas de outras foram literalmente cassadas e lançadas para fora das suas
respectivas esferas eclesiásticas sem qualquer caridade. A juventude com seu
entusiasmo contagiante foram imediatamente calados, a União de Mocidades da
Igreja Presbiteriana do Brasil, uma das mais organizadas e contestadoras da
alienação eclesiástica protestante, foi oficialmente extinta por seu órgão
máximo o Supremo Concílio da igreja. Dentre os motivos apontados estava a
politização excessiva de algumas lideranças da mocidade, que teriam
desrespeitado a liderança eclesiástica (SILVA, 1996)[1].
Em outras denominações protestantes, com menor radicalidade, os embates foram
semelhantes (ABUMANSSUR, 1991)[2].
Como exercício de reflexão a questão
é: por que Dietrich Bonhoeffer foi banido das
historiografias protestantes brasileiras? Por que esta figura pujante e
fervorosa foi lançada no ostracismo dos estudos acadêmicos protestantes
nacionais? Por que Dietrich Bonhoeffer tornou-se uma figura subversiva nas
entranhas do evangelicalismo brasileiro?
Uma resposta
simples é: porque Dietrich Bonhoeffer desnuda sem qualquer pudor
a complacência e comprometimento do evangecalismo[3]
nacional que nos momentos mais tensos e tenebrosos da história do país, sempre
optaram por uma “equidistância”, mas cujos movimentos pendulares sempre favoreceram
os poderosos e a manutenção de seus “status quo” e suas benesses. A velha e
amarrotada “equidistância” jamais pendeu para o povo e suas carências e para
perda de quaisquer benefícios ou prazeres.
Neste momento em que o Brasil vive a
sua maior e mais devastadora crise institucional, onde todos os Poderes
Republicanos estão debaixo de suspeição e quando os cidadãos brasileiros
sentem-se ameaçados e coagidos por toda sorte de violência física, moral e
emocional, nos falta, como faltou na Alemanha de Hitler, homens e mulheres que
se posicionem e tomem a postura bíblico-cristã de Dietrich Bonhoeffer. Que
tenham coragem e fé para abrirem mão de si mesmas em prol de uma mensagem
evangélica encarnada em palavras e ações dignas de Jesus Cristo. E parafraseando
o nosso hino da Independência, que precisa urgentemente se tornar nosso “hit”, “Brava
gente [evangélica] brasileira! Longe
vá... temor servil Ou ficar a pátria
livre Ou morrer pelo Brasil”.
Dietrich Bonhoeffer escreveu
diversas obras conforme pequena relação abaixo e que vale a pena serem lidos e
pensados. As reflexões que convulsionaram o coração e a alma de Bonhoeffer
permanecem atuais e deveriam convulsionar também a nossa vida cristã e nos
empurrar para fora da nossa zona de conforto, assim como as contrações expulsam
o bebê que sossegadamente vive e se nutre no útero de sua mãe. Se perguntarem
para o bebê se ele quer sair pra fora irá dizer: não, estou bem aqui! Mas para
que ele possa se desenvolver plenamente, sem matar a sua mãe, o organismo
produz contrações cada vez mais fortes, até que ele é expulso para fora. Que as
reflexões de Bonhoeffer possam se constituir em contrações cada vez mais fortes
até que saiamos do conforto eclesiástico e nos lancemos para a crua e terrível
realidade brasileira, pois somente assim alcançaremos a maturidade cristã e
seremos de fato e de verdade sal e luz desta Nação, sem causarmos a morte da
igreja evangélica brasileira.
De acordo com Luciana Soares Ramos
(2007, p. 69) em seu excelente trabalho sobre a presença e influência
bonhoefferiana na América Latina, quem introduziu o pensamento teológico do
pastor alemão no Brasil e posteriormente na América Latina foi o missionário
estadunidense Richard Shaull, então professor do Seminário Teológico
Presbiteriano em Campinas, que:
“começa a ensinas as obras de Bonhoeffer Preço do Discipulado (cujo titulo
original era Nachfolge, editado em 1937, e que significava, precisamente, o seguimento), Vida em Comunhão (fruto de um curso dado aos futuros pastores no
Seminário clandestino de Finkenwald da Igreja Confessante)” [itálico da autora].
Ela ainda cita Julio de Santa Ana: “Foi durante um de seus seminários no Sítio
das Figueiras, Brasil, em 1952, que Richard Shaull começou a falar da obra de
Bonhoeffer. Até esse momento apenas seu Nachfolge havia sido mencionado” (1976,
p. 189).
O missionário presbiteriano não apenas em suas
palestras, mas também em seus diversos livros faz numerosas referências aos
ensinos e reflexões teológicas de Bonhoeffer. A influência de Richard Shaull no
Movimento Estudantil Cristão (MEC), que havia iniciado nos anos 1940,
disseminou rapidamente as propostas do pastor alemão nas academias
evangélica-protestante. Mas como mencionado acima, tudo isso se desvaneceu e
foi soterrado pela demolição efetivada pelos mandatários eclesiásticos da
época.
Este espaço será utilizado para
compartilharmos um pouco do pensamento e experiência de Bonhoeffer registrado
nas páginas de seus livros. O primeiro será o “Discipulado” (em alemão “nachfolgen” = seguir após), escrito em 1937 um dos livros que impactaram a
vida de milhares de cristãos, tanto protestantes quanto católicos romanos, em
todo o mundo e que desafiou a juventude protestante brasileira na década de
cinquenta e sessenta.
Na
verdade o pastor germânico originalmente o intitulou de “O Preço do
Discipulado”, pois não pretendia oferecer um manual de discipulado, mas
buscar o amago de ser um discípulo de Jesus na vivência cotidiana, com todas as
suas lutas e desafios.
Ele inicia sua reflexão sobre uma questão central do Evangelho – a
graça. Em sua analise da realidade de como viviam a maioria dos
evangélicos de seus dias (e que em nada difere da maioria dos evangélicos
brasileiros), ele percebe o quanto a graça contida no Evangelho estava sendo
barateado e que ele denominava de “graça barata” onde o pecado não é
tratado como pecado, onde cada um pode fazer o que bem entender, onde tudo é
negociável; para contrapor a tudo isso ele conclama um retorno à “graça
preciosa” que para ele "é o tesouro oculto no campo, pelo qual o
ser humano vende feliz tudo que possui; é a pérola preciosa, pela qual o
mercador oferece todos a seus bens; é o domínio do reino de Cristo, pelo qual o
ser humano arranca o olho que o faz tropeçar; é o chamado de Jesus Cristo, pelo
qual o discípulo deixa suas redes para trás e o segue". Evidentemente
que esse retorno não se fará sem esforço, suor e lágrimas.
Seu ponto de partida é o material que o evangelista Mateus reuniu e que é
denominado de “Sermão do Monte” (Mt 5-7). E sua ênfase está na questão
da “justiça” com a qual o genuíno discípulo está plena e totalmente
comprometido. O chamado de Jesus para o discipulado implica em compromisso com
a justiça “dos pobres, dos tentados, dos famintos, dos mansos, dos
pacificadores, dos perseguidos por causa do chamado de Jesus”.
Evidentemente que suas colocações e afirmativas machucavam os ouvidos sensíveis
dos evangélicos descompromissados com a justiça do Reino; irritavam
crescentemente todos aqueles evangélicos tranquilamente arraigados em suas
zonas de conforto eclesiástico; e finalmente atraíram a ira de todos aqueles
que desejavam se utilizar do Evangelho para uso fruto pessoal.
Para Bonhoeffer não há meio termo: ou resgatamos a “graça preciosa” com sua “justiça”
ou fracassaremos vergonhosamente, como fracassaram os cristãos alemães. As
propostas de Bonhoeffer são provocativas, densas, exigentes, prementes, mas
indispensáveis para todos aqueles que desejam genuinamente ser um verdadeiro
discípulo de Jesus Cristo.
As colocações de Bonhoeffer são oásis no deserto deste evangelicalismo
tupiniquim amalgamado nas estruturas eclesiásticas; são balsamo para aqueles
que estão sendo afligidos pelos malefícios de uma graça barateada e
comercializada; são melodias celestiais para todos ouvidos que tem sido
ensurdecido com as mais desafinadas pregações mundanas proferidas dos púlpitos
e mídias evangélicas nacionais.
Quero convidar você a juntos redescobrirmos e praticarmos o genuíno discipulado
de Jesus, proposto por Dietrich Bonhoeffer ao preço da perda de sua comodidade,
liberdade e por fim de sua própria vida.
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes,
Ivan Pereira
Mestre
em Ciências da Religião.
Universidade
Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro
Blog
Reflexão
Bíblica
http://reflexaoipg.blogspot.com.br
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Ashbel Green Simonton e Seus Companheiros
O Brasil pelo Prisma
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[1] SILVA, H. A era do furacão: história
contemporânea da Igreja Presbiteriana do Brasil (1959-1966). Dissertação
(Mestrado em Ciências da Religião) ‒ Universidade Metodista de São Paulo, São
Bernardo do Campo (SP), 1996.
[2] ABUMANSSUR, E. A tribo ecumênica no Brasil nos anos de 60 e 70. Dissertação
(Mestrado em Ciências da Religião) - Pontíficia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, 1991.
[3] Evangelicalismo é uma concepção
originária de "evangélico", o Evangelicalismo é um movimento
teológico originário do Protestantismo, mas que não se limita a ele, que crê na
necessidade de o indivíduo passar por uma experiência de conversão
("nascer de novo", "aceitar Jesus") e que adota a Bíblia como
única base de fé e prática (MENDONÇA E VELASQUES, 1990). Utilizo esse termo
aqui para identificar principalmente as chamadas igrejas protestantes
históricas, que foram as primeiras a se transplantarem para o Brasil no final
dos oitocentos.
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