Tendo como objetivo resgatar um pouco da história do
protestantismo na América Latina, estamos utilizando o relatório preparado pelo
Rev. Erasmo Braga da Conferência
do Panamá, que como vimos no artigo anterior se constitui em
importante marco histórico das atividades missionárias protestantes nos países
latinos americanos.
Ele inicia seu Relatório com uma análise, na ótica
protestante, do Continente
Latino Americano. Inicialmente ele destaca os aspectos distintivos
do Continente Anglo Americano e Latino
Americano, que dentro de suas perspectivas perpassa pela questão
religiosa que se constitui em uma matriz do diferencial entre os dois
extremos do Continente Americano.
Após definir dois termos importantes: latinos,
como sendo aqueles países que foram colonizados pelos espanhóis e portugueses
cuja matriz religiosa foi o catolicismo romano; e os saxões
que se constituem os países cujas colonizações tiveram uma matriz religiosa
advindas de países que endossaram a Reforma protestante.
Segundo Braga essas duas matrizes religiosas distintas e
contrapostas se constituía no maior empecilho para que houvesse uma maior
conciliação entre os dois extremos do Continente. A tendência dos governos
latinos, influenciados pela religião católica desejosa de manter seu monopólio
eclesiástico, era contemplar nos missionários protestantes, mormente advindos
da América do Norte, como agentes “de
penetração da influencia commercial, social e política dos Estados Unidos”.
Desta forma, conclui ele, o fato de muitos destes países terem feito suas transições
de independências ainda recentemente e os sentimentos nacionalistas ascendentes
destes processos, acabavam por inibir muito do esforço e das atividades
missionárias protestantes em toda região latino-americana. Havia varias
propagandas que enxergavam nas atividades missionárias protestantes apenas um
pretexto ou subterfugio para que América do Norte implantasse na América Latina
seu “o leit-motiv civilizador”, em
português mais popular, o que os norte-americanos queriam com seu esforço
missionário protestante era tão somente as fontes de matérias primas e os
mercados consumidores latinos.[1]
Em sua análise sobre as diferenças entre América do Norte
e América Latina, Braga inicialmente nomeia dois aspectos
fundamentais, que ele chama de idiosycrasias: “as condições relativas em que se achavam o norte e o sul do continente
na epocha do descobrimento, e em segundo logar—o typo de indivíduos que se
vieram estabelecer nas duas zonas, desta parte do universo”.
Enquanto no Norte a colonização se deu por povos que aspiravam
aos ideais de liberdade e desenvolvimento, na região Latina os colonizadores
apenas desejavam explorar seus recursos naturais. Enquanto no Norte a
colonização foi efetuada por famílias que desejavam se estabelecerem e se
constituíram em base para uma nova nação, nos países Latinos foram deixados os
piores representantes das sociedades colonizadoras, bem como aqueles que
desejavam apenas se enriquecerem, o mais rápido possível, para retornarem aos
seus países de origem.
Ele destaca também o fato de que no Norte prevaleceu o
sistema democrático e o espírito de liberdade de expressão e de culto tão cara
aos colonizadores “self-government”; enquanto no lado Latino prevaleceu o
espírito absolutista e déspota de governar, sustentado pela organização
unitária, hierárquica e dogmática do catolicismo romano.
Por questão de espaço, ficaremos nessa primeira parte da
análise das diferenças entre os dois lados do Continente Americano, proposta
por Braga, conforme abaixo transcrito. Evidentemente que sua análise representa
uma perspectiva do protestantismo latino-americano que pouca representatividade
tem nas estatísticas de seus respectivos países. O próprio Congresso do Panamá
foi um esforço enorme para fortalecer e expandir os esforços e presença do
trabalho missionário protestante que pouco antes estava arrefecido nesta área
do globo terrestre. As juntas de missões europeias estavam migrando rapidamente
para a África, Índia e China, de maneira que os protestantes estadunidenses
tornaram-se fundamentais na continuidade dos esforços missionários protestantes
na América Latina. De maneira que se esses últimos tivessem tomado a mesma
direção dos europeus, todos os esforços protestantes de mais de cinquenta anos
atuando dentro dos diversos países latinos teriam sido frustrados e certamente
países como o Brasil teriam uma configuração religiosa totalmente diferente da
atual. É dentro desta perspectiva até certo ponto apocalíptica, para o
protestantismo latino/brasileiro, que precisamos ler o relatório da Conferência
e do próprio Braga.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Reflexão Bíblica
http://reflexaobiblica.spaceblog.com.br/
CONSPECTO RELIGIOSO DO
CONTINENTE AMERICANO[2]
Dentre todas as differenças
que separam os elementos anglo-americanos dos latino-americanos neste
continente, avultam as concepções religiosas diversas que se accentuam no
Catholicismo Romano dos povos ibero-americanos e o Protestantismo. Este, com
sua expansão missionária que irradia dos Estados Unidos e, em pequena
proporção, de vários pontos da Europa em direcção á America, ha mais de meio
século tem permeiado as populações da America Latina.
Convém, de principio, frisar
que, no estudo dos problemas sociaes e religiosos do continente americano, deve
definir-se com clareza o que se entende por elemento latino e saxonio. Elemento
latino é o que se embebeu da tradição e da cultura latina trazida pelos
conquistadores da America; saxonios são os habitantes da America cujo caracter
social foi moldado na tradição e cultura implantada no norte do continente
pelos colonisadores anglo-saxonios. A definição desses termos, lançada em
linhas restrictamente ethnicas não corresponderá á realidade. Na congerie de
povos aqui accumulados desde a occupação e conquista até que as correntes
immigratorias ultimamente come çaram larga e
profundamente a alterar a composição das populações americanas, a tradição, a
cultura, a religião dos conquistadores e colonisadores sobrepujaram todos os
outros elementos constitutivos de nosso typo social.
Assim é que na analyse das
componentes de nossa massa social, deve-se attender muito mais ao valor das
tendências intellectuaes, ao theor espiritual dos dois grandes elementos que formam
o grosso da população das Américas, que aos outros factores ethnicos.
E nenhuma nota é mais
freqüente nos escriptores que modernamente têm estudado os problemas sociaes do
continente americano que a da necessidade de um vinculo religioso que caldeie
os elementos vários da America Latina em um novo continente. Por isso, a
differença de concepções religiosas que separam os saxonios dos latinos
constitue, conforme a opinião mais vulgarisada nos povos latino-americanos, um
serio embaraço para a aproximação intima de saxonios e latinos na America.
Para mais aggravar a
importância desta discordância de cor religiosa, a rcacção contra a propaganda
evangélica nos paizes latino-americanos tem uniformemente appresentado os
missionários saxonios enviados da America do Norte para os paízes situados ao
sul do Rio Grande, como agentes de penetração da influencia commercial, social
e politica dos Estados Unidos. Assim, a conservação dos sentimentos
nacionalistas e a salvaguarda da independência politica na America Latina
affecta no espirito popular, mui freqüentemente, a forma de reacção contra a
religião que se suppõem ser a da maioria dos saxonios no continente colombiano.
É thema favorito dos publicistas que expõe com franqueza a sua inquietação
quanto ás conseqüências que trará para a America Latina o imperialismo que
julgam discernir nos anglo-americanos. Ainda recentemente Oliveira Lima
affirmou que "o pretexto humanitário, o leit-motiv civilisador de que os
Estados Unidos fazem consumo especial " ha-de acompanhar na conquista de
toda a America pelos saxonios " reali-sada como ha-de ser pelos seus
missionários, caixeiros viajantes da religião, e pelos seus commerciantes,
missionários do industrialismo."
A differença de concepções
religiosas nos dois elementos anglo- e latino-americano, correspondem ainda a
um certo numero de contrastes, que, embora tenham caracterisação própria, são,
todavia, no fundo modalidades resultantes da evolução religiosa e social sobre
directrizes diversas.
Ha, primeiramente, as idiosyncrasias
peculiares de cada um dos elementos mencionados, que servindo de padrão por que
os anglo-americanos e latino-americanos se aferem mutuamente resultam em que
cada um julga o outro abaixo do par. Taes idiosyncrasias resultam primariamente
de dois factores: as condições relativas em que se achavam o norte e o sul do
continente na epocha do descobrimento, e em segundo logar—o typo de indivíduos
que se vieram estabelecer nas duas zonas, desta parte do universo. No norte, a
população precolombiana era escassa e compunha-se de tribus nômades
semiselvagens, ao passo que, do México para o sul, os conquistadores
encontraram a terra densamente povoada e, especialmente na costa do Pacifico,
as sociedades estavam organisadas em uma esplendida communidade um tanto
barbara, mas cohesa, em caminho de uma civilisação peculiar. Os que
estabeleceram as colônias anglo-americanas foram os peregrinos do 11 May
Flower," homens austeros, que vinham buscar na America a liberdade
religiosa, fugindo á oppressão politica mas conservando-se leaes á mãe-patria.
Vieram também aventureiros, mas em pequena minoria e não representavam a
orientação moral dos pioneiros da civilisação na America do Norte. Os que
trouxeram a cultura latina c suas tradições para a America vinham dos paizes da
Europa onde ardiam as fogueiras da Inquisição e o fanatismo religioso do typo
romano dominava—eram os sequazes de Pizarro, Cortez, Balboa e Pedro d'Avila,
eram militaristas aventureiros uns, nobres da mais orgulhosa estirpe outros,
que devastaram, saquearam e ensangüentaram as terras em que
". .
. Foram dilatando A Fé e o
Império. . . . " 1
[1 Camões—Lusiadas—Cl. est-
I].
Para o lado do Atlântico, a
primeira leva de colonos trazida por Thomé de Sousa (1549) comprehendia 400
degradados e 6 jesuítas, alem dos homens de armas e aventureiros que formaram a
primitiva população portugueza do Brazil. A conquista ainda mal acabada
attrahiu para a America Latina um exercito de burocratas, funccionarios de
governo, ordinariamente jovens de nobreza, que vinham buscar, apoiados por
parentes e padrinhos poderosos posições lucrativas e promoções, indivíduos que
Fedcrico Alfonso Pezet descreve como " gastadores sem vintém, que na
pátria nunca se tinham habituado ao trabalho . . . movidos da ambição de conseguir
elevados salários porque não tinham apprendido uma profissão nem como se ganha
a vida pela industria e pelo trabalho." 1
[1 F. A. Pezet—Contrast
(Pan-American Union) pag. 7].
Em segundo logar, os povos
que se originaram de fontes tão diversas, appresentam porisso mesmo feições
differentes—os anglo-americanos, antes que a corrente immigratoria alterasse as
suas condições primitivas eram um povo homogêneo, muito embora varias classes
sociaes e nacionalidades compuzessem a população das antigas colônias anglo-americanas.
Nas colônias latino-americanas outra é a natureza das populações que se
formaram depois da conquista. Os soldados e aventureiros que para aqui vieram,
não trouxeram suas mulheres e famiÜas, sinão muitos annos depois da conquista e
em conseqüência, desde o começo, as relações que mantinham com as mulheres do
paiz deram origem a uma raça de mestiços, acerescida á dos primitivos donos da
terra, e a que depois ainda se aggregou a grande somma de escravos negros,
importados da África, e que tão largo papel representam na formação ethnica,
nas tradições, e nas ideas religiosas, especialmente em pontos na costa do
Atlântico.
Em terceiro logar, nas
colônias anglo-americanas estabeleceu-se uma communidade em que o
individualismo resultante do livre exame, e os princípios do governo
democrático tão característico das congregações dos puritanos, tinham habituado
ao "self-government". Os conquistadores latinos da America vieram de
paizes onde o absolutismo e o militarismo os tinham habituado a dominar, mas
não os tinham ensinado a governar. E sobre isso a organisação unitária do
Romanismo, com a sua hierarchia, com seu dogmatismo, concorreu para tornar o
terreno da America Latina pouco propicio ao desenvolvimento sobre elle dos
ideaes democráticos que viçaram tanto no norte de continente. Do despotismo, os
povos ibero-americanos passaram abruptamente para um regime democrático para
que não estavam preparados.
E por ultimo, a cultura
latina implantou-se na America tropical, em taes condições climatericas que
essa se afigura a certos estudantes da America Latina, como Ross, ser uma das
causas principaes do atrazo sinão do retrocesso destes povos. O conquistador e
seus sequazes acharam ainda mais o ouro fatídico nas mãos dos indios, e com
elle se relacionam as grandes tragédias de nossa historia. O clima e a riqueza
fácil têm muito que ver com o estado moral da America Latina.
Assim pois, idiosyncrasias
diversas, a própria composição das populações que representam o espirito saxonio
e o latino na America, a sua evolução politica e social, em que a religião é
factor muito importante, e o ambiente entram em contribuição para contrastar os
dois typos cm que se divide a humanidade em nosso continente.
[Transcrito da obra de Erasmo Braga: Pan-americanismo:
aspecto religioso, cf. referência
bibliográfica]
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Reflexão Bíblica
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[1] Essa perspectiva se mantém até o presente, onde os
historiadores de cunho marxista realimentam continuamente o ideário de que
todas as mazelas dos países latinos, incluindo o Brasil, são decorrentes dos
interesses comerciais e mercadológicos norte-americanos. Todavia, não mencionam
que esses países, bem como o Brasil, permaneceram por trezentos anos escondidos
do mundo e condenado à toda sorte de malefícios decorrentes desta alienação,
pelos seus respectivos invasores, transvestidos de colonizadores. Bem como
amenizam o fato de que as grandes repúblicas latinas mantiveram as mesmas
atitudes em seus respectivos países, sustentando e sustentados pela religião
oficial católica romana.
[2]
Será mantido o texto em sua composição original.
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