“Por fora combates, temores por dentro”
Até
aqui demos atenção mais precisamente aos grandes embates da Igreja Cristã com
seus adversários externos, mais
especificamente o Império Romano. Mas após Constantino esse não será mais o
grande desafio do cristianismo.
Mas,
como mencionado em artigos anteriores, desde o início o cristianismo teve que
conviver internamente com pensamentos e interpretações divergentes. No livro de
Atos e nas epístolas tanto as paulinas quanto as demais, revelam as
dificuldades que os apóstolos e líderes das comunidades cristãs encontraram
para manter o cerne da mensagem evangélica. Paulo em seu último documento
conhecido, a Segunda Carta ao jovem Timóteo, solicita que ele preserve com todo
zelo os ensinos recebidos, como padrão dos fiéis, e que transmita a outros com
a mesma recomendação. Esse será um desafio permanente em toda História da
Igreja Cristã, até os dias presente.
Na
mesma proporção em que a igreja cristã se expandia acabava por incorporar
pessoas que vinham das mais diversas religiões e contextos culturais. Ainda sem
um conjunto teológico plenamente estabelecido (ortodoxia) abre-se espaço
crescente para interpretações diferentes (heresias) para a pergunta fundamental:
o que deve ser o cristianismo? Havia
também movimentos religiosos, como os gnósticos, que se apropriavam de
elementos teológicos cristãos e os incorporavam em seus ensinos. O historiador
Justo L. Gonzalez coloca muito bem este desafio do cristianismo primitivo:
Onde
deveria ser traçada a linha entre o verdadeiro Cristianismo e aquilo que era,
de fato, uma outra religião com elementos cristãos? Na verdade, esta linha não
poderia ser traçada a priori, pois aqueles que vieram a ser considerados hereges
não trabalharam foram da comunidade cristã – tais pessoas se consideravam
cristãos fiéis, que tentavam explicar o evangelho de uma forma que seus
contemporâneos pudessem entendê-lo. Da mesma forma, aqueles que no futuro foram
declarados ortodoxos não concordavam entre si em todas as questões: um
observador contemporâneo teria grande dificuldade em distingui-los dos outros.
Assim surgiu uma grande variedade de doutrinas, todas reivindicando ser o
correto entendimento do Cristianismo; contudo muitas delas pareciam
contradizer, ou ao menos deixar de lado, alguns dos dogmas fundamentais da fé
cristã tradicional (2004, p. 119).
Abaixo
citaremos os principais movimentos que surgiram dentro do cristianismo
primitivo e que foram combatidos pelas lideranças do período.
Ebionitas: Eles também ficaram conhecidos como “cristãos judaicos”, e surgiram ainda nos
dias apostólicos. O termo “ebionita” vem do hebraico (ebionim) e significa “pobre” e
era pejorativamente relacionada aos cristãos, que naquele momento eram
desprovidos de bens materiais em sua maioria. As origens deste movimento são
obscuras e a primeira referência a eles por esse nome vem de Irineu. Duas hipóteses
propõem suas origens: alguns consideram que os ebionitas são anteriores ao
movimento de Jesus, tendo em João Batista um participante; outros porém propõem
que são remanescentes de Qunrã e da igreja judeu-cristã que foram dispersos
depois da queda de Jerusalém. Inicialmente conviviam com as comunidades
cristãs, mas na virada do segundo século passaram a ser constituírem em
comunidades próprias. Entre alguns escritos que possuem informações sobre esse
grupo do primeiro século está o escrito “As Viagens de Pedro”. Eles aceitavam Jesus como
sendo filho de Maria e José, portanto humano, mas quando de seu batismo no rio
Jordão ele foi eleito/escolhido/feito Filho de Deus. Isso decorre do fato de
que Jesus foi unido com o Cristo eterno, que segundo eles era superior aos
anjos, porém não era Deus. Eram dualistas em suas definições teológicas, se circuncidavam
e exaltavam a Lei de Moisés, porém não ofereciam sacrifícios e seus cultos eram
celebrados no sábado e domingo. Eram extremamente ascetas, vegetarianos, valorizavam
com ardor a virgindade (não se casar), mas defendiam o casamento como mais
relevante do que a virgindade; dentre os apóstolos preferiam a Tiago, outros,
optavam pela figura de Pedro e passaram a rejeitar os escritos de Paulo,
classificando-o como um impostor; supervalorizaram o batismo, justificando que
foi no momento do batismo que Jesus tornou-se o Cristo; e tinham a água como
primeiro elemento criado de onde tudo foi posteriormente criado, de modo que,
para eles a água passou a ter poderes miraculosos; uma subdivisão deles ficou
conhecida como “nazarenos”. Esse movimento foi perdendo força gradativamente e
praticamente desapareceu após as invasões islâmicas, somente ressurgindo o
interesse por eles por causa dos estudos do judeu-cristianismo palestino do
século I.
Gnósticos: As origens do gnosticismo são anteriores ao
cristianismo, proliferando na Síria, Egito e na Ásia Menor, de maneira que suas
raízes provém do helenismo greco-romano. O apóstolo Paulo teve diversos embates
com gnósticos e o apóstolo João ao escrever sua Primeira Epístola, combate
sistematicamente os ensinos gnósticos sobre a divindade e encarnação de Jesus –
eles negavam a possibilidade de Deus se revestir em Carne (encarnação); outra
doutrina gnóstica era que o espírito (alma) é boa e toda matéria era má, de modo que se o
Deus (judeu/cristão) é o criador do Mundo material, cheio de imperfeições, logo
Ele é um deus imperfeito; influenciados pelos conceitos do budismo e zoroastrismo,
defendiam uma permanente luta entre o bem (espírito) e o mau (matéria/corpo);
para eles Deus é um espírito absoluto e portanto causador de todo o bem,
enquanto a matéria e totalmente maligna; os conflitos no Universo e no próprio
ser humano são decorrentes desta ação do Bem e do Mal; eles dividem a humanidade
em três grupos: hílicos, que são absolutamente incapazes de salvação; psíquicos,
que possuem uma alma e são capazes de salvação parcial; pneumáticos (ou
gnósticos) dotados de alma e capazes de salvação completa. Posteriormente eles
incluíram um Cristo – um dos aeões – que no momento do batismo incorporou em
Jesus, mas o deixou na hora da crucificação. Ensinavam também que todos os
espíritos ficaram livres da matéria e subiram para o pleroma onde viverão para
sempre. Negavam a eternidade do corpo, dos sofrimentos e da ressurreição, e
Filo (judeu), negou a veracidade do castigo futuro, do inferno e do diabo. Insistiam
na salvação mediante uma sabedoria “gnosis” que somente era adquirida pelo
conhecimento superior adquirido na filosofia, nos mistérios, em certas
doutrinas cristãs e nos elementos de magia. Alguns estudiosos falam de três
tipos de gnosticismo: mitológico, filosófico-religioso e mágico vulgar, mas é
preferível pensarmos em “sistemas gnósticos”, pelo fato de haver inúmeros
conceitos e interpretações de seus preceitos básicos. Por seu caráter eclético
logo cedo penetrou nas comunidades cristãs e por volta do século terceiro
muitos destes conceitos acabou de produzir um sincretismo do gnosticismo com o
cristianismo. Recentemente na América Latina tem surgido diversas “igrejas
gnósticas”.
Maniqueus: Religião dualista do Oriente. Seu formulador foi Mani,
natural da Mesopotâmia, que fez um amálgama do Budismo com o cristianismo com
uma pitada zoroastriana.
No início do terceiro século era anunciada como sendo o genuíno cristianismo e
através de seu fundador foi amplamente disseminada em toda Pérsia e
posteriormente por todo o Império Romano. Quando expulso da Pérsia percorre a
China e a Índia. Após a morte de Mani, seus discípulos foram implacavelmente
perseguidos pelo imperador Diocleciano no ano de 287. No quarto e quinto
séculos ressurgiram com força na Itália e norte da África, mas no século sexto
seu declínio organizacional foi total, permanecendo apenas a influência de seus
conceitos assimilados por outras expressões religiosas no século dezesseis.
Suas principais doutrinas: dualismo absoluto; rejeitavam todo o AT e tudo no NT
que tinha referência ao judaísmo (fãs de Paulo); luz (divindade) e trevas
(corrupção); o ser humano é composto de alma (luz) e corpo (trevas); Cristo
veio para auxiliar o ser humano a vencer o mal dentro de si e libertar a luz.
Eram divididos entre perfeitos ou justos (iniciados nos mistérios
sagrados, separados da vida mundana, praticantes de uma dieta vegetariana e da
castidade) e ouvintes (que
procuravam viver uma vida moral com certas restrições), antes de sua conversão
ao cristianismo Agostinho foi um dos “ouvintes”. Caracterizavam-se pelo absoluto
asceticismo rejeitando o casamento; seus sacerdotes eram mediadores
entre Deus e as pessoas; eram organizados em igrejas independentes; guardavam o
domingo; culto simples; batismo com óleo, uma espécie de ceia, apenas com pão.
Por esta razão acabavam confundindo e sendo confundidos com as comunidades
cristãs da época. Foram gradualmente perseguidos no Império Bizantino e também
pela Igreja Romana. Mas infelizmente acabaram por influenciar em muitos conceitos
cristãos posteriores: espírito ascético e enobrecimento da castidade e do
celibato (Mosteiros e Conventos); introdução das cerimônias pomposas; a figura
do sacerdote como mediador entre o cristão/comunidade e Deus; introdução do conceito
de indulgências no cristianismo. Todos esses conceitos evoluíram e
transformaram a Igreja Cristã da Idade Média em uma aberração teológica.
Diversos movimentos dentro da igreja cristã esboçaram algum conceito do
maniqueísmo: Cátaros, Albigenses, Bogomilos e alguns setores dentro do
movimento Valdense.
Monarquianos: Chegando ao fim do segundo século introduzem-se nas
comunidades cristãs esses novos conceitos unipersonal de Deus, rejeitando o
conceito trinitário. O movimento se dividia em duas escolas principais – uma
liderada por Teodato e Paulo de Samosata (dinamistas) e outra vertente
liderada por Noeto de Esmirna, Práxeas, Sabélio e Berilo (modelistas).
Os dinamistas ensinavam que Jesus tornara-se o Cristo, pelo Pai, no momento do
batismo, mediante o poder (dynamis) do Espírito Santo; recusavam-se a dar a Jesus o
título de Deus e foram condenados em 195. Os modelistas ensinavam que Deus
aparecia em formas distintas, ora como Pai, ora como Filho e outras vezes como
Espírito; eles rejeitavam o Evangelho segundo João, afirmavam que sua cristologia
era contrária à dos evangelhos sinóticos. Teodato de Bizâncio (190) pragava em
Roma conceitos modelistas, mas a Igreja a rejeitou; Paulo de Samosata, bispo de
Antioquia foi excomungado por ensinar esses mesmos conceitos. Mas seu grande
expoente foi Sabélio (sabelianismo), que afirmava que o Filho e o Espírito
eram tão somente modos diferentes pelos quais Deus se manifestava. Esses
conceitos foram duramente combatidos por Tertuliano, Hipólito e Orígenes.
Essas
e outras formas de interpretar a fé cristã obrigou a igreja cristã estabelecer
com mais clareza seus dogmas teológicos no segundo e terceiro séculos. O
historiador Gonzales (2004, p. 152) sintetiza de forma clara a importância
deste período:
Os
pensamentos e as penas de muitos cristãos foram estimulados pelo desafio
proposto por aqueles que tentaram mostrar que outras versões do Cristianismo
eram mais razoáveis do que a versão tradicional, e assim muitos trabalhos
teológicos foram produzidos, cuja influência foi muito além da negação direta
da heresia.
Utilização livre desde
que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da
Religião.
Universidade
Presbiteriana Mackenzie
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Reflexão Bíblica
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