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terça-feira, 4 de abril de 2017

História Igreja Cristã: Divergências e Controvérsias Internas


“Por fora combates, temores por dentro”
Até aqui demos atenção mais precisamente aos grandes embates da Igreja Cristã com seus adversários externos, mais especificamente o Império Romano. Mas após Constantino esse não será mais o grande desafio do cristianismo.
Mas, como mencionado em artigos anteriores, desde o início o cristianismo teve que conviver internamente com pensamentos e interpretações divergentes. No livro de Atos e nas epístolas tanto as paulinas quanto as demais, revelam as dificuldades que os apóstolos e líderes das comunidades cristãs encontraram para manter o cerne da mensagem evangélica. Paulo em seu último documento conhecido, a Segunda Carta ao jovem Timóteo, solicita que ele preserve com todo zelo os ensinos recebidos, como padrão dos fiéis, e que transmita a outros com a mesma recomendação. Esse será um desafio permanente em toda História da Igreja Cristã, até os dias presente.
Na mesma proporção em que a igreja cristã se expandia acabava por incorporar pessoas que vinham das mais diversas religiões e contextos culturais. Ainda sem um conjunto teológico plenamente estabelecido (ortodoxia) abre-se espaço crescente para interpretações diferentes (heresias) para a pergunta fundamental: o que deve ser o cristianismo? Havia também movimentos religiosos, como os gnósticos, que se apropriavam de elementos teológicos cristãos e os incorporavam em seus ensinos. O historiador Justo L. Gonzalez coloca muito bem este desafio do cristianismo primitivo:
Onde deveria ser traçada a linha entre o verdadeiro Cristianismo e aquilo que era, de fato, uma outra religião com elementos cristãos? Na verdade, esta linha não poderia ser traçada a priori, pois aqueles que vieram a ser considerados hereges não trabalharam foram da comunidade cristã – tais pessoas se consideravam cristãos fiéis, que tentavam explicar o evangelho de uma forma que seus contemporâneos pudessem entendê-lo. Da mesma forma, aqueles que no futuro foram declarados ortodoxos não concordavam entre si em todas as questões: um observador contemporâneo teria grande dificuldade em distingui-los dos outros. Assim surgiu uma grande variedade de doutrinas, todas reivindicando ser o correto entendimento do Cristianismo; contudo muitas delas pareciam contradizer, ou ao menos deixar de lado, alguns dos dogmas fundamentais da fé cristã tradicional (2004, p. 119).
Abaixo citaremos os principais movimentos que surgiram dentro do cristianismo primitivo e que foram combatidos pelas lideranças do período.
Ebionitas: Eles também ficaram conhecidos como “cristãos judaicos”, e surgiram ainda nos dias apostólicos. O termo “ebionita” vem do hebraico (ebionim) e significa “pobre” e era pejorativamente relacionada aos cristãos, que naquele momento eram desprovidos de bens materiais em sua maioria. As origens deste movimento são obscuras e a primeira referência a eles por esse nome vem de Irineu. Duas hipóteses propõem suas origens: alguns consideram que os ebionitas são anteriores ao movimento de Jesus, tendo em João Batista um participante; outros porém propõem que são remanescentes de Qunrã e da igreja judeu-cristã que foram dispersos depois da queda de Jerusalém. Inicialmente conviviam com as comunidades cristãs, mas na virada do segundo século passaram a ser constituírem em comunidades próprias. Entre alguns escritos que possuem informações sobre esse grupo do primeiro século está o escrito “As Viagens de Pedro”. Eles aceitavam Jesus como sendo filho de Maria e José, portanto humano, mas quando de seu batismo no rio Jordão ele foi eleito/escolhido/feito Filho de Deus. Isso decorre do fato de que Jesus foi unido com o Cristo eterno, que segundo eles era superior aos anjos, porém não era Deus. Eram dualistas em suas definições teológicas, se circuncidavam e exaltavam a Lei de Moisés, porém não ofereciam sacrifícios e seus cultos eram celebrados no sábado e domingo. Eram extremamente ascetas, vegetarianos, valorizavam com ardor a virgindade (não se casar), mas defendiam o casamento como mais relevante do que a virgindade; dentre os apóstolos preferiam a Tiago, outros, optavam pela figura de Pedro e passaram a rejeitar os escritos de Paulo, classificando-o como um impostor; supervalorizaram o batismo, justificando que foi no momento do batismo que Jesus tornou-se o Cristo; e tinham a água como primeiro elemento criado de onde tudo foi posteriormente criado, de modo que, para eles a água passou a ter poderes miraculosos; uma subdivisão deles ficou conhecida como “nazarenos”. Esse movimento foi perdendo força gradativamente e praticamente desapareceu após as invasões islâmicas, somente ressurgindo o interesse por eles por causa dos estudos do judeu-cristianismo palestino do século I.
Gnósticos: As origens do gnosticismo são anteriores ao cristianismo, proliferando na Síria, Egito e na Ásia Menor, de maneira que suas raízes provém do helenismo greco-romano. O apóstolo Paulo teve diversos embates com gnósticos e o apóstolo João ao escrever sua Primeira Epístola, combate sistematicamente os ensinos gnósticos sobre a divindade e encarnação de Jesus – eles negavam a possibilidade de Deus se revestir em Carne (encarnação); outra doutrina gnóstica era que o espírito (alma) é boa e toda matéria era má, de modo que se o Deus (judeu/cristão) é o criador do Mundo material, cheio de imperfeições, logo Ele é um deus imperfeito; influenciados pelos conceitos do budismo e zoroastrismo, defendiam uma permanente luta entre o bem (espírito) e o mau (matéria/corpo); para eles Deus é um espírito absoluto e portanto causador de todo o bem, enquanto a matéria e totalmente maligna; os conflitos no Universo e no próprio ser humano são decorrentes desta ação do Bem e do Mal; eles dividem a humanidade em três grupos: hílicos, que são absolutamente incapazes de salvação; psíquicos, que possuem uma alma e são capazes de salvação parcial; pneumáticos (ou gnósticos) dotados de alma e capazes de salvação completa. Posteriormente eles incluíram um Cristo – um dos aeões – que no momento do batismo incorporou em Jesus, mas o deixou na hora da crucificação. Ensinavam também que todos os espíritos ficaram livres da matéria e subiram para o pleroma onde viverão para sempre. Negavam a eternidade do corpo, dos sofrimentos e da ressurreição, e Filo (judeu), negou a veracidade do castigo futuro, do inferno e do diabo. Insistiam na salvação mediante uma sabedoria “gnosis” que somente era adquirida pelo conhecimento superior adquirido na filosofia, nos mistérios, em certas doutrinas cristãs e nos elementos de magia. Alguns estudiosos falam de três tipos de gnosticismo: mitológico, filosófico-religioso e mágico vulgar, mas é preferível pensarmos em “sistemas gnósticos”, pelo fato de haver inúmeros conceitos e interpretações de seus preceitos básicos. Por seu caráter eclético logo cedo penetrou nas comunidades cristãs e por volta do século terceiro muitos destes conceitos acabou de produzir um sincretismo do gnosticismo com o cristianismo. Recentemente na América Latina tem surgido diversas “igrejas gnósticas”.
Maniqueus: Religião dualista do Oriente. Seu formulador foi Mani, natural da Mesopotâmia, que fez um amálgama do Budismo com o cristianismo com uma pitada zoroastriana. No início do terceiro século era anunciada como sendo o genuíno cristianismo e através de seu fundador foi amplamente disseminada em toda Pérsia e posteriormente por todo o Império Romano. Quando expulso da Pérsia percorre a China e a Índia. Após a morte de Mani, seus discípulos foram implacavelmente perseguidos pelo imperador Diocleciano no ano de 287. No quarto e quinto séculos ressurgiram com força na Itália e norte da África, mas no século sexto seu declínio organizacional foi total, permanecendo apenas a influência de seus conceitos assimilados por outras expressões religiosas no século dezesseis. Suas principais doutrinas: dualismo absoluto; rejeitavam todo o AT e tudo no NT que tinha referência ao judaísmo (fãs de Paulo); luz (divindade) e trevas (corrupção); o ser humano é composto de alma (luz) e corpo (trevas); Cristo veio para auxiliar o ser humano a vencer o mal dentro de si e libertar a luz. Eram divididos entre perfeitos ou justos (iniciados nos mistérios sagrados, separados da vida mundana, praticantes de uma dieta vegetariana e da castidade) e ouvintes (que procuravam viver uma vida moral com certas restrições), antes de sua conversão ao cristianismo Agostinho foi um dos “ouvintes”. Caracterizavam-se pelo absoluto asceticismo rejeitando o casamento; seus sacerdotes eram mediadores entre Deus e as pessoas; eram organizados em igrejas independentes; guardavam o domingo; culto simples; batismo com óleo, uma espécie de ceia, apenas com pão. Por esta razão acabavam confundindo e sendo confundidos com as comunidades cristãs da época. Foram gradualmente perseguidos no Império Bizantino e também pela Igreja Romana. Mas infelizmente acabaram por influenciar em muitos conceitos cristãos posteriores: espírito ascético e enobrecimento da castidade e do celibato (Mosteiros e Conventos); introdução das cerimônias pomposas; a figura do sacerdote como mediador entre o cristão/comunidade e Deus; introdução do conceito de indulgências no cristianismo. Todos esses conceitos evoluíram e transformaram a Igreja Cristã da Idade Média em uma aberração teológica. Diversos movimentos dentro da igreja cristã esboçaram algum conceito do maniqueísmo: Cátaros, Albigenses, Bogomilos e alguns setores dentro do movimento Valdense.
Monarquianos: Chegando ao fim do segundo século introduzem-se nas comunidades cristãs esses novos conceitos unipersonal de Deus, rejeitando o conceito trinitário. O movimento se dividia em duas escolas principais – uma liderada por Teodato e Paulo de Samosata (dinamistas) e outra vertente liderada por Noeto de Esmirna, Práxeas, Sabélio e Berilo (modelistas). Os dinamistas ensinavam que Jesus tornara-se o Cristo, pelo Pai, no momento do batismo, mediante o poder (dynamis) do Espírito Santo; recusavam-se a dar a Jesus o título de Deus e foram condenados em 195. Os modelistas ensinavam que Deus aparecia em formas distintas, ora como Pai, ora como Filho e outras vezes como Espírito; eles rejeitavam o Evangelho segundo João, afirmavam que sua cristologia era contrária à dos evangelhos sinóticos. Teodato de Bizâncio (190) pragava em Roma conceitos modelistas, mas a Igreja a rejeitou; Paulo de Samosata, bispo de Antioquia foi excomungado por ensinar esses mesmos conceitos. Mas seu grande expoente foi Sabélio (sabelianismo), que afirmava que o Filho e o Espírito eram tão somente modos diferentes pelos quais Deus se manifestava. Esses conceitos foram duramente combatidos por Tertuliano, Hipólito e Orígenes.
Essas e outras formas de interpretar a fé cristã obrigou a igreja cristã estabelecer com mais clareza seus dogmas teológicos no segundo e terceiro séculos. O historiador Gonzales (2004, p. 152) sintetiza de forma clara a importância deste período:
Os pensamentos e as penas de muitos cristãos foram estimulados pelo desafio proposto por aqueles que tentaram mostrar que outras versões do Cristianismo eram mais razoáveis do que a versão tradicional, e assim muitos trabalhos teológicos foram produzidos, cuja influência foi muito além da negação direta da heresia.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Outro Blog
Reflexão Bíblica


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