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quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Protestantismo: Verdadeiro Cristianismo (Johann Arndt)



É possível conciliar o mais alto grau de conhecimento teológico, com a mais profunda piedade? É possível, ainda que muito raro, pois uma grande maioria as vê como rivais. Muitos na medida em que sobem na escada do conhecimento teológico tem a tendência natural (soberba humana) de minimizar as manifestações emocionais decorrentes de uma vida piedosa. Por sua vez na mesma proporção em que outros descem as escadas da piedade, tendem a minimizar o conhecimento teológico mais elevado. Mas como todas as regras têm suas exceções, neste caso uma grande exceção foi Johann Arndt (1555-1621), que como podemos contemplar na diminuta galeria dos teólogos piedosos ou piedosos teólogos soube conciliar de forma equilibrada e sensata um conhecimento teológico do mais alto grau, com uma vida cristã da mais profunda piedade.
            Os dias de Johann Arndt são muito semelhantes aos nossos dias atuais. Naquele momento a igreja alemã pós reforma protestante havia sistematizado sua teologia. A sistematização teológica em si não é um problema, todavia, como acontece consequentemente, o conhecimento teológico paulatinamente começa a se desconectar de uma prática cristã vivencial, que comumente denominamos de vida cristã piedosa. Como todos os dogmas teológicos já estão elaborados, definidos e corroborados pelo ensino bíblico, há um relaxamento natural de maneira que as práticas religiosas tornam-se comuns e rotineiras.
            Na medida em que o tempo vai passando esta acomodação vai se transformando em um relaxamento e displicência para com a devocional e prática individual da vida cristã. O conhecimento teológico vai assumindo o controle na mesma proporção em que a vida devocional vai sendo minimizada e colocada no rodapé da vida religiosa.
            Poucos são aqueles que conseguem perceber este movimento dicotomista, pois é um processo tão lento que se torna quase que imperceptível, a não ser quando a ruptura torna-se cristalizada em uma ortodoxia fria e inexorável. Johann Arndt, juntamente com alguns poucos contemporâneos, conseguiram perceber esta desconexão entre uma teologia correta e uma prática cristã coerente e vivificante; entre uma pregação teológica, exegética, hermenêutica e homileticamente correta e uma vida cristã que expressasse com a mesma intensidade todo esse conhecimento ortodoxo.
            Os compêndios teológicos e as elaborações das Confissões de Fé são necessários e precisam ser cuidadosamente elaborados, para que o ensino bíblico não se perca em meio ao mar de ideias e conceitos opostos e contraditórios aos princípios bíblicos. Todavia, igualmente fundamental e manter viva a prática devocional que aqueça o coração e a alma e disponha o crente a vivenciar intensamente suas convicções cristãs no meio da sociedade, de maneira que outras vidas possam ser tocadas e transformadas.
            Uma teologia e ortodoxia que mantém o cristão preso em seus calabouços torna-se perigosa e anticristã. A genuína teologia e ortodoxia têm que ser libertadora – têm que convulsionar o cristão a viver suas verdades cristãs nas entranhas da sociedade, para que se possa em contato direto, assim como o sal, impedir sua deterioração e consequente podridão.  A teologia e ortodoxia sadia e abençoadora é aquela que produz contrações uterinas cada vez mais fortes, até que o cristão seja expulso para fora da segurança de suas instituições e zonas de conforto e tomem contato direto com a sociedade – de maneira que sua luz possa brilhar em meio às tensas trevas. Uma teologia e ortodoxia coerentemente é aquela que prepara o crente para manter seu estandarte erguido e tremulante em meio a este mundo tenebroso, mesmo que isso lhe custe tudo (família, bens, prazer - hino Lutero).
            Diante de um quadro eclesiástico onde a ortodoxia se tornou estéril de uma prática vivificadora surge a proposta de Johann Arndt e alguns outros de resgatar as práticas devocionais cristãs, no fluxo de um movimento cristão holandês denominado de Precisionismo, que antecede e vai inspirar outros movimentos espirituais muito maiores e mais amplos em suas repercussões geográficas.  A sua obra que passaremos a abordar nesta série de artigos (Verdadeiro Cristianismo e/ou Quatro Livros do Verdadeiro Cristianismo) se constituiu em livro de cabeceira de milhares de cristãos na Alemanha e Holanda e em muitos outros países de fé cristã reformada e até mesmo em espaços católicos romanos. Seu livro influenciou centenas ou milhares de lideranças evangélicas extrapolando as fronteiras geográficas e temporais, sendo um dos motores propulsores do grande movimento interdenominacional[1] que ficou conhecido como Pietismo na Alemanha e Holanda e Puritanismo na Inglaterra e posteriormente na América do Norte e cujas ondas continuaram sendo emitidas e pôde ser sentida, sem a mesma originalidade e intensidade, na implantação do protestantismo no Brasil, através de suas vertentes presbiteriana, metodista e congregacional, mas pelo viés americano e não de suas fontes originais. O jovem missionário presbiteriano estadunidense A. G. Simonton, que transplantou o protestantismo presbiteriano para o nosso país, manteve por toda sua vida um diário (prática pietista) onde registra muitos de seus conflitos espirituais e revelam seu zelo por uma vida devocional pessoal intensa e continua. Até recentemente, década de setenta e meados de oitenta, os evangélicos brasileiros eram incentivados à pratica de uma devocional pessoal e diária (bem como os cultos domésticos). Tudo isso desapareceu na mesma proporção em que a pseuda teológica da prosperidade assumiu a prioridade na vida eclesiástica e pessoal da maioria dos evangélicos contemporâneos.
Quem foi Johann Arndt?
Ele nasceu em 27 de dezembro de 1555, na aldeia Anhalt Edderitz em Köthen, o filho de um pastor (Jakobus Arndt)[2] e cresceu em Ballenstedt / Anhalt (Alemanha) e faleceu em 1621 (aos 63 anos). Foi um dos maiores teólogos luterano alemão tendo estudado em várias universidades importantes (Helmstedt, Wittenberg, Basel e Strasbourg). Foi pastor em Ballenstedt, Bernburg, Badeborn, Quedlinburg e Brunswick.  Ele estava em Helmstadt em 1576; em Wittenberg em 1577 onde e quando eclode a controvérsia cripto-calvinista,[3] e na qual ele tomou o lado de Melanchthon[4] e dos cripto-calvinistas. Ele continuou seus estudos em Strassburg, sob a orientação do professor de hebraico, Johannes Pappus,[5] um zeloso luterano, e que exerceu grande influência sobre ele.
Em Basileia ele vai estudar teologia recebendo orientação docente de Simon Sulzer,[6] que tinha como grande desafio conciliar as igrejas das confissões Helvéticas e Wittenberg. Em 1581 Arndt retorna para Ballenstedt, mas logo foi chamado para assumir o pastorado em Badeborn em 1583. Depois de algum tempo suas tendências luteranas o expuseram a despertar a ira das autoridades, que eram da Igreja Reformada. Foi deposto de suas funções pastorais em 1590, mas encontrou acolhimento em Quedlinburg (1590), e depois foi transferido para a igreja de St. Martin em Brunswick, em 1599. A fama de Arndt se baseia em seus escritos. Estes eram principalmente de tipo místico e devocional, e foram inspirados por Bernardo,[7] J. Tauler[8] e Thomas Kempis.[9]
Seu livro, Verdadeiro Cristianismo (Wahres Christentum - 1606-1609),[10] foi traduzido para a maioria das línguas europeias, serviu de base para muitos livros de devoção, tanto católicos quanto protestantes.[11] Arndt trata sobre a união mística entre o crente e Cristo, e seu desejo é chamar a atenção para Cristo que habita em Seu povo, em contraponto a ênfase então majoritária e puramente forense da teologia da reforma. Arndt era um clérigo popular que falava a linguagem popular. Ele pregava a todos indistintamente e dizia que o inferno era para pobres e para ricos. Sua postura, pregação e ênfase na vida cristã devocional angariaram para Johann Arndt muitos adversários. Ele não pregava o que as pessoas “esclarecidas” desejavam ouvir. Esse conflito chegou ao auge onde seus sermões e sua conhecida obra "Verdadeiro Cristianismo" foram queimadas em fogueiras públicas (lembrando o velho filme da Inquisição Católica Romana).
Ele publicou uma edição do pequeno livro Teologia Alemã, onde procura esclarecer e enfatizar sua proposta em um prefácio especial. Depois de Verdadeiro Cristianismo, sua obra mais conhecida é o “Jardim do Paraíso de todas as virtudes cristãs” (Paradiesgartlein aller christlichen Tugenden), que foi publicada em 1612. Vários de seus sermões são publicados na obra de R. Nesselmann. Arndt é chamado carinhosamente de “avô do pietismo” e Philipp Jakob Spener, pai do pietismo, repetidamente chamou a atenção para Arndt e seus escritos, e chegou a compará-lo com Platão.
Hoje Arndt é um grande desconhecido, todavia para aqueles que se disponha a pesquisar apenas um pouco mais descobrirá cada vez mais que Amdt é a figura mais influente do protestantismo luterano desde os dias da Reforma.
Um cristão, pelo menos por um dia,
deve se afastar de todas as coisas externas
e entrar no fundo do seu coração
(Do verdadeiro cristianismo)

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
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Referências Bibliográficas
ARNDT, Johann. True christianity – on sincere repentance, true Faith, the holy walk of the true christianDisponível em https://archive.org/stream/truechristianity34736gut/34736-pdf. Acesso em: 20/12/2015.
COSTA, Hermisten Maia Pereira da. Ortodoxia protestante – um desafio à teologia e à piedade. Fides Reformata 3/1 (1998). Disponível em: http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/revista/VOLUME_III__1998__1/ortodoxia....pdf. Acesso em: 17/11/2015.
_____________________________. Pietismo – um desafio à piedade e à teologia. Fides Reformata 4/1 (1999). Disponível em: http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/revista/VOLUME_IV__1999__1/Hermisten.pdf. Acesso em: 20/11/2015.
_____________________________. Raízes da teologia contemporânea. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
GONZALES, Justo. A era dos dogmas e das dúvidas. Tradução Carmella Malkomes. São Paulo: Edições Vida Nova, 1984.
_______________ (Editor). Dicionário ilustrado dos interpretes da fé. Tradução Reginaldo Gomes de Araújo. São André (SP): Editora Acadêmica Cristã Ltda., 2005.
LINDBERG, Carter. (Editor) The Pietist – an introduction to theology in the seventeenth and centuries.USA: Blackwell Publishing Ltd, 2005.
MATOS, Alderi Souza de. Fundamentos da teologia histórica. São Paulo: Mundo Cristão, 2008. (Coleção teologia brasileira).
MENDONÇA, Antônio Gouvêa de. O celeste porvir – a inserção do protestantismo no Brasil. São Paulo: Paulinas, 1984.
SILVA, Geoval Jacinto da. Educação teológica e pietismo – a influência na formação pastoral no Brasil 1930-1980. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, Editeo, 2010.
SCHULER, Arnaldo. Dicionário enciclopédico de teologia. Canoas: Ed. ULBRA, 2002.
STOEFFLER, F. Ernest. German pietismo during the eighteen century. Leiden: Department of Religion Temple University, 1973.
TILLICH, Paul. Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX. Tradução: Jaci C. Maraschin – 2ª ed. São Paulo: ASTE, 1999.
WALKER, W. História da Igreja cristã, v. 2. São Paulo: ASTE, 1967.




[1] Termo utilizado para se referir algum tipo de movimento evangélico que não distingue denominação; que não é exclusivo de uma igreja – é o caso dos movimentos como o Precisionismo holandês, pietismo alemão e o puritanismo inglês – que permearam todas as denominações evangélicas da época.
[2] Seu pai era originalmente de Köthen e se mudou com sua família em 1558 de Edderitz para Ballenstedt para assumir o pastorado. Ele morreu em 1565.
[3] Cripto-calvinismo é um termo pejorativo para se referir a um segmento de membros alemães da Igreja Luterana acusados de secretamente convencionarem a doutrina calvinista da Eucaristia nas décadas imediatamente após a morte de Martinho Lutero em 1546.
[4] Fhilipp Melanchthon (em português: Filipe Melâncton – 1497-1560) foi um reformador alemão e profícuo colaborador de Lutero, redigiu a “Confissão de Augsburgo” (1530) e converteu-se no principal líder do luteranismo após a morte de Lutero. Se esforçou ao extremo para conciliar as divergências eucarísticas entre os reformados, mas não alcançou sucesso.
[5] Chefe dos luteranos em Estrasburgo; 1568-1578 professor de língua hebraica a. História na Academia em Estrasburgo, 1570-78, Freiprediger em Estrasburgo, 1578-1610 Prof. Teologia na Academia e Pastor em Estrasburgo, 1582-1610 Presidente da Convenção da Igreja Luterana.
[6] Simon Sulzerus Bernensis (1508-1585) foi um teólogo, reformador e líder da Igreja de Basileia. Em 1536 faz sua preferência pela teologia de Lutero, que vem a conhecer em Wittenberg, em 1538, tendo a figura do reformador o impressionado muito. Ele se esforçou muito para conseguir a reconciliação entre as igrejas da Alemanha e da Suíça, embora mantivesse uma distância relativa entre as posições mantidas pelos seguidores de Zwingli e de Calvino.
[7] Bernard de Clairvaux (1090-1153) foi um abade francês e um importante líder na reforma do monaquismo beneditino que causou a formação da ordem cisterciense . Seus escritos influenciaram milhares de cristãos e movimentos posteriores.
[8] Johannes Tauler (1300 - 136), também conhecido como John Tauler, foi um sacerdote e místico alemão, nascido em Estrasburgo. Ele pertencia à ordem dominicana e era um pregador prolífico. Juntamente com seu amigo e contemporâneo Henry Suso, ele foi um dos triunviratos de pensadores pertencentes à escola Rhineland, também chamada de escola Rheno-Flamenga, da qual Meister Eckhart foi o fundador e proponente supremo. Ele não deixou nenhum livro escrito, porém seus sermões foram colecionados e editados se tornando extremamente populares e sendo considerados os mais nobres da língua alemã e eram intensamente práticos, tocando de todos os ângulos os problemas mais profundos da moral e da vida espiritual.
[9] Monge e escritor alemão, Tomás de Kempis nasceu em 1380, em Kempen, na Renânia do Norte (perto de Colónia), faleceu a 24 de julho de 1471, no Mosteiro de Santa Inês. Tomás de Kempis produziu cerca de quarenta obras que tranquilamente encontram ressonância na literatura devocional moderna. Destaca-se o seu livro mais célebre, Imitação de Cristo, composto por quatro volumes, no qual apela a uma vida seguida no exemplo de Cristo, valorizando a comunhão como forma de reforçar a fé.
[10] Após a morte de Arndt, um quinto e um sexto livro foram adicionados de seus escritos e cartas menores, de modo que o título agora se lê Seis Livros do Cristianismo Cristão. A cada edição ilustrações e orações foram agregadas que a extensão inicialmente pequena cresceu até o imponente tamanho de mil páginas e se tornou um livro da casa cristã, que ficava ao lado da Bíblia em suas estantes.
[11] Os primeiros emigrantes alemães para a América do Norte tinham o Verdadeiro Cristianismo em suas bagagens. Quando as cópias acabaram houve solicitações por uma nova condição. Com centenas de inscritos, Benjamin Franklin, originalmente um impressor, organizou uma nova edição na Filadélfia em 1751. O Cristianismo Verdadeiro de Arndt foi o primeiro trabalho impresso em alemão no novo mundo. Um tesouro bibliófilo é a tradução de Tantil do Verdadeiro Cristianismo na índia, escrita em folhas de palmeira.

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