É possível conciliar o mais alto grau de conhecimento
teológico, com a mais profunda piedade? É possível, ainda que muito raro, pois uma
grande maioria as vê como rivais. Muitos na medida em que sobem na escada do
conhecimento teológico tem a tendência natural (soberba humana) de minimizar as
manifestações emocionais decorrentes de uma vida piedosa. Por sua vez na mesma
proporção em que outros descem as escadas da piedade, tendem a minimizar o
conhecimento teológico mais elevado. Mas como todas as regras têm suas
exceções, neste caso uma grande exceção foi Johann Arndt (1555-1621), que como
podemos contemplar na diminuta galeria dos teólogos piedosos ou piedosos
teólogos soube conciliar de forma equilibrada e sensata um conhecimento
teológico do mais alto grau, com uma vida cristã da mais profunda piedade.
Os dias de Johann Arndt são muito
semelhantes aos nossos dias atuais. Naquele momento a igreja alemã pós reforma
protestante havia sistematizado sua teologia. A sistematização teológica em si
não é um problema, todavia, como acontece consequentemente, o conhecimento
teológico paulatinamente começa a se desconectar de uma prática cristã
vivencial, que comumente denominamos de vida cristã piedosa. Como todos os
dogmas teológicos já estão elaborados, definidos e corroborados pelo ensino
bíblico, há um relaxamento natural de maneira que as práticas religiosas
tornam-se comuns e rotineiras.
Na medida em que o tempo vai
passando esta acomodação vai se transformando em um relaxamento e displicência
para com a devocional e prática individual da vida cristã. O conhecimento
teológico vai assumindo o controle na mesma proporção em que a vida devocional
vai sendo minimizada e colocada no rodapé da vida religiosa.
Poucos são aqueles que conseguem
perceber este movimento dicotomista, pois é um processo tão lento que se torna
quase que imperceptível, a não ser quando a ruptura torna-se cristalizada em
uma ortodoxia fria e inexorável. Johann Arndt, juntamente com alguns poucos
contemporâneos, conseguiram perceber esta desconexão entre uma teologia correta
e uma prática cristã coerente e vivificante; entre uma pregação teológica,
exegética, hermenêutica e homileticamente correta e uma vida cristã que
expressasse com a mesma intensidade todo esse conhecimento ortodoxo.
Os compêndios teológicos e as
elaborações das Confissões de Fé são necessários e precisam ser cuidadosamente
elaborados, para que o ensino bíblico não se perca em meio ao mar de ideias e
conceitos opostos e contraditórios aos princípios bíblicos. Todavia, igualmente
fundamental e manter viva a prática devocional que aqueça o coração e a alma e
disponha o crente a vivenciar intensamente suas convicções cristãs no meio da
sociedade, de maneira que outras vidas possam ser tocadas e transformadas.
Uma teologia e ortodoxia que mantém
o cristão preso em seus calabouços torna-se perigosa e anticristã. A genuína
teologia e ortodoxia têm que ser libertadora – têm que convulsionar o cristão a
viver suas verdades cristãs nas entranhas da sociedade, para que se possa em contato
direto, assim como o sal, impedir sua deterioração e consequente podridão. A teologia e ortodoxia sadia e abençoadora é
aquela que produz contrações uterinas cada vez mais fortes, até que o cristão
seja expulso para fora da segurança de suas instituições e zonas de conforto e
tomem contato direto com a sociedade – de maneira que sua luz possa brilhar em
meio às tensas trevas. Uma teologia e ortodoxia coerentemente é aquela que
prepara o crente para manter seu estandarte erguido e tremulante em meio a este
mundo tenebroso, mesmo que isso lhe custe tudo (família, bens, prazer - hino Lutero).
Diante de um quadro eclesiástico
onde a ortodoxia se tornou estéril de uma prática vivificadora surge a proposta
de Johann Arndt e alguns outros de resgatar as práticas devocionais cristãs, no
fluxo de um movimento cristão holandês denominado de Precisionismo, que antecede e vai inspirar
outros movimentos espirituais muito maiores e mais amplos em suas repercussões
geográficas. A sua obra que passaremos a
abordar nesta série de artigos (Verdadeiro
Cristianismo e/ou Quatro Livros do Verdadeiro Cristianismo) se
constituiu em livro de cabeceira de milhares de cristãos na Alemanha e Holanda
e em muitos outros países de fé cristã reformada e até mesmo em espaços católicos
romanos. Seu livro influenciou centenas ou milhares de lideranças evangélicas
extrapolando as fronteiras geográficas e temporais, sendo um dos motores
propulsores do grande movimento interdenominacional[1] que
ficou conhecido como Pietismo na Alemanha e Holanda e Puritanismo na Inglaterra
e posteriormente na América do Norte e cujas ondas continuaram sendo emitidas e
pôde ser sentida, sem a mesma originalidade e intensidade, na implantação do
protestantismo no Brasil, através de suas vertentes presbiteriana, metodista e
congregacional, mas pelo viés americano e não de suas fontes originais. O jovem
missionário presbiteriano estadunidense A. G. Simonton, que transplantou o
protestantismo presbiteriano para o nosso país, manteve por toda sua vida um
diário (prática pietista) onde registra muitos de seus conflitos espirituais e
revelam seu zelo por uma vida devocional pessoal intensa e continua. Até
recentemente, década de setenta e meados de oitenta, os evangélicos brasileiros
eram incentivados à pratica de uma devocional pessoal e diária (bem como os
cultos domésticos). Tudo isso desapareceu na mesma proporção em que a pseuda teológica
da prosperidade assumiu a prioridade na vida eclesiástica e pessoal da maioria
dos evangélicos contemporâneos.
Quem foi Johann Arndt?
Ele nasceu em 27 de dezembro de 1555, na aldeia Anhalt
Edderitz em Köthen, o filho de um pastor (Jakobus Arndt)[2] e cresceu
em Ballenstedt / Anhalt (Alemanha) e faleceu em 1621 (aos 63 anos). Foi um dos
maiores teólogos luterano alemão tendo estudado em várias universidades
importantes (Helmstedt, Wittenberg, Basel e Strasbourg). Foi pastor em
Ballenstedt, Bernburg, Badeborn, Quedlinburg e Brunswick. Ele estava em Helmstadt em 1576; em Wittenberg
em 1577 onde e quando eclode a controvérsia cripto-calvinista,[3] e na
qual ele tomou o lado de Melanchthon[4] e
dos cripto-calvinistas. Ele continuou seus estudos em Strassburg, sob a
orientação do professor de hebraico, Johannes Pappus,[5] um
zeloso luterano, e que exerceu grande influência sobre ele.
Em Basileia ele vai estudar teologia recebendo orientação
docente de Simon Sulzer,[6]
que tinha como grande desafio conciliar as igrejas das confissões Helvéticas e
Wittenberg. Em 1581 Arndt retorna para Ballenstedt, mas logo foi chamado para
assumir o pastorado em Badeborn em 1583. Depois de algum tempo suas tendências
luteranas o expuseram a despertar a ira das autoridades, que eram da Igreja
Reformada. Foi deposto de suas funções pastorais em 1590, mas encontrou acolhimento
em Quedlinburg (1590), e depois foi transferido para a igreja de St. Martin em
Brunswick, em 1599. A fama de Arndt se baseia em seus escritos. Estes eram
principalmente de tipo místico e devocional, e foram inspirados por Bernardo,[7] J.
Tauler[8] e Thomas
Kempis.[9]
Seu livro, Verdadeiro
Cristianismo (Wahres Christentum - 1606-1609),[10]
foi traduzido para a maioria das línguas europeias, serviu de base para muitos
livros de devoção, tanto católicos quanto protestantes.[11]
Arndt trata sobre a união mística entre o crente e Cristo, e seu desejo é chamar
a atenção para Cristo que habita em Seu povo, em contraponto a ênfase então
majoritária e puramente forense da teologia da reforma. Arndt era um clérigo
popular que falava a linguagem popular. Ele pregava a todos indistintamente e
dizia que o inferno era para pobres e para ricos. Sua postura, pregação e
ênfase na vida cristã devocional angariaram para Johann Arndt muitos
adversários. Ele não pregava o que as pessoas “esclarecidas” desejavam ouvir.
Esse conflito chegou ao auge onde seus sermões e sua conhecida obra
"Verdadeiro Cristianismo" foram queimadas em fogueiras públicas
(lembrando o velho filme da Inquisição Católica Romana).
Ele publicou uma edição do pequeno livro Teologia Alemã, onde procura esclarecer
e enfatizar sua proposta em um prefácio especial. Depois de Verdadeiro
Cristianismo, sua obra mais conhecida é o “Jardim
do Paraíso de todas as virtudes cristãs” (Paradiesgartlein aller
christlichen Tugenden), que foi publicada em 1612. Vários de seus sermões são
publicados na obra de R. Nesselmann. Arndt é chamado carinhosamente de “avô do
pietismo” e Philipp Jakob Spener, pai do pietismo, repetidamente chamou a
atenção para Arndt e seus escritos, e chegou a compará-lo com Platão.
Hoje Arndt é um grande desconhecido, todavia para aqueles
que se disponha a pesquisar apenas um pouco mais descobrirá cada vez mais que
Amdt é a figura mais influente do protestantismo luterano desde os dias da
Reforma.
Um cristão, pelo menos por um dia,
deve se afastar de todas as coisas externas
e entrar no fundo do seu coração
(Do verdadeiro cristianismo)
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
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Trabalho Desenvolvido por Ashbel Green Simonton e Seus Companheiros
Referências
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W. História da Igreja cristã, v. 2. São Paulo: ASTE, 1967.
[1] Termo utilizado para se referir algum
tipo de movimento evangélico que não distingue denominação; que não é exclusivo
de uma igreja – é o caso dos movimentos como o Precisionismo holandês, pietismo
alemão e o puritanismo inglês – que permearam todas as denominações evangélicas
da época.
[2] Seu pai era originalmente de Köthen e
se mudou com sua família em 1558 de Edderitz para Ballenstedt para assumir o
pastorado. Ele morreu em 1565.
[3] Cripto-calvinismo é um termo
pejorativo para se referir a um segmento de membros alemães da Igreja Luterana
acusados de secretamente convencionarem a doutrina calvinista da Eucaristia nas
décadas imediatamente após a morte de Martinho Lutero em 1546.
[4] Fhilipp Melanchthon (em português:
Filipe Melâncton – 1497-1560) foi um reformador alemão e profícuo colaborador
de Lutero, redigiu a “Confissão de Augsburgo” (1530) e converteu-se no
principal líder do luteranismo após a morte de Lutero. Se esforçou ao extremo
para conciliar as divergências eucarísticas entre os reformados, mas não
alcançou sucesso.
[5] Chefe dos luteranos em Estrasburgo;
1568-1578 professor de língua hebraica a. História na Academia em Estrasburgo,
1570-78, Freiprediger em Estrasburgo, 1578-1610 Prof. Teologia na Academia e
Pastor em Estrasburgo, 1582-1610 Presidente da Convenção da Igreja Luterana.
[6] Simon Sulzerus Bernensis (1508-1585)
foi um teólogo, reformador e líder da Igreja de Basileia. Em 1536 faz sua
preferência pela teologia de Lutero, que vem a conhecer em Wittenberg, em 1538,
tendo a figura do reformador o impressionado muito. Ele se esforçou muito para
conseguir a reconciliação entre as igrejas da Alemanha e da Suíça, embora
mantivesse uma distância relativa entre as posições mantidas pelos seguidores
de Zwingli e de Calvino.
[7] Bernard de Clairvaux (1090-1153) foi
um abade francês e um importante líder na reforma do monaquismo beneditino que
causou a formação da ordem cisterciense . Seus escritos influenciaram milhares
de cristãos e movimentos posteriores.
[8] Johannes Tauler (1300 - 136), também
conhecido como John Tauler, foi um sacerdote e místico alemão, nascido em
Estrasburgo. Ele pertencia à ordem dominicana e era um pregador prolífico. Juntamente
com seu amigo e contemporâneo Henry Suso, ele foi um dos triunviratos de
pensadores pertencentes à escola Rhineland, também chamada de escola
Rheno-Flamenga, da qual Meister Eckhart foi o fundador e proponente supremo.
Ele não deixou nenhum livro escrito, porém seus sermões foram colecionados e
editados se tornando extremamente populares e sendo considerados os mais nobres
da língua alemã e eram intensamente práticos, tocando de todos os ângulos os
problemas mais profundos da moral e da vida espiritual.
[9] Monge e escritor alemão, Tomás de
Kempis nasceu em 1380, em Kempen, na Renânia do Norte (perto de Colónia),
faleceu a 24 de julho de 1471, no Mosteiro de Santa Inês. Tomás de Kempis
produziu cerca de quarenta obras que tranquilamente encontram ressonância na
literatura devocional moderna. Destaca-se o seu livro mais célebre, Imitação de Cristo, composto por quatro
volumes, no qual apela a uma vida seguida no exemplo de Cristo, valorizando a
comunhão como forma de reforçar a fé.
[10] Após a morte de Arndt, um quinto e um
sexto livro foram adicionados de seus escritos e cartas menores, de modo que o
título agora se lê Seis Livros do Cristianismo Cristão. A cada edição
ilustrações e orações foram agregadas que a extensão inicialmente pequena
cresceu até o imponente tamanho de mil páginas e se tornou um livro da casa
cristã, que ficava ao lado da Bíblia em suas estantes.
[11] Os primeiros emigrantes alemães para
a América do Norte tinham o Verdadeiro Cristianismo em suas bagagens. Quando as
cópias acabaram houve solicitações por uma nova condição. Com centenas de inscritos,
Benjamin Franklin, originalmente um
impressor, organizou uma nova edição na Filadélfia em 1751. O Cristianismo
Verdadeiro de Arndt foi o primeiro trabalho impresso em alemão no novo mundo. Um
tesouro bibliófilo é a tradução de Tantil do Verdadeiro Cristianismo na índia,
escrita em folhas de palmeira.
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