A única literatura histórica contida
no Segundo Testamento é a de Lucas-Atos, mas que narra os acontecimentos até a
prisão definitiva de Paulo em Roma, onde ele por causa de sua cidadania romana
está aguardando o julgamento por parte do Senado romano, único órgão jurídico
pelo qual um cidadão romano podia ser julgado.
A partir da conclusão da literatura
Lucas-Atos não temos mais nenhuma informação histórica canônica da expansão do
cristianismo no Império Romano e além de suas fronteiras. Qualquer pesquisa
deve acessar informações produzidas por historiadores cristãos ou não cristãos,
mas que não trazem em si o selo da inspiração ou inerrância das literaturas
neotestamentárias.
Todavia nada nos impede de assessorados
por esses registros históricos diversos fazermos o exercício de reconstrução de
uma História do Cristianismo. Evidente que a pluralidade de informações e
muitas vezes sem possibilidade de verificação de suas fontes originais nos obriga
a sermos muito cautelosos em nossas conclusões.
A escolha de fatos que sejam
fundamentais nesta trajetória histórica da igreja cristã é arbitraria na medida
em que cada historiador tem suas prerrogativas e até mesmo seus pressupostos, o
que em si não é necessariamente negativo ou prejudicial à nominação destes
fatos. Alguns são recebidos com ampla aceitação e outros com aceitação restrita
e alguns até mesmo contestados, o que torna esse exercício ainda mais
enriquecedor e desafiante.
O ponto de partida é sempre a
cronologia dos eventos que foram construindo a História Cristã no mundo.
Centenas de historiadores cristãos e outras centenas não cristãs se debruçaram
exaustivamente sobre milhares de documentos na busca de uma cronologia fiel aos
eventos maiores ou menores, relevantes e até mesmo triviais que perfazem o mosaico
histórico do cristianismo desde suas origens no primeiro século até o presente
momento. Todos esses exaustivos trabalhos de pesquisa elaborados facilitam a
nossa vida no que tange nomearmos ou destacarmos aqueles eventos que de alguma
forma contribuíram mais efetivamente para o avanço da igreja cristã. Como
mencionei antes a escolha é sempre em última instância arbitraria, ainda que
sempre se busque o máximo possível um consenso entre os historiadores e
pesquisadores do cristianismo através dos séculos.
O Imperador Nero e o Incêndio da Cidade
de Roma
Os mais diversos historiadores
convergem para este acontecimento como sendo responsável por um impulso
expansionista do cristianismo no interior do Império Romano a partir da capital.
Isto ocorre por duas razões concomitantes:


Retornando à questão histórica do grande incêndio, há muitas
controversas quanto as reais origens da tragédia:[2]


Pelo histórico do imperador Nero em que abundam seus
desvairos neuróticos e comportamento déspota, em que não aceitava se
contrariado em suas vontades e caprichos a primeira tese é prevalecente,
enquanto a segunda carece de muita boa vontade para ser ao menos parcialmente
aceita.
Mas uma questão se impõe: por que os
cristãos foram apontados ou acusados de serem os responsáveis pelo incêndio? Na
medida do tempo foi se construindo uma imagem distorcida e folclórica a
respeito dos cristãos e sua religião (cristianismo). O fato de que parte do
culto (ceia) não eram públicas mas momentos privados reservados apenas aos
cristãos batizados e que se repetiam as expressões utilizadas por Cristo – esse
é o meu corpo (pão) tomai e comei, e este é o meu sangue (cálice) tomai e bebei
– geraram toda sorte de ideias absurdas, tais como o de que os cristãos eram
canibais ou demônios que comiam e bebiam carne e sangue e que sacrificavam
criancinhas; o osculo da comunhão (beijo) era interpretado como orgias e assim
por diante. Tais conclusões equivocadas tomaram proporções inimagináveis no subconsciente
do populacho que os cristãos eram vistos como aberrações.[5]
Para reforçar esse ideário popular soma-se a literatura
dos escritores romanos que destilavam todo seu fel contra os cristãos e sua
religião. Vistos até então como mais uma seita do judaísmo, toda intolerância e
repudio que se tinha em relação aos judeus, sempre envoltos com rebeliões na
palestina, com sua religião messiânica e seus ritos restritivos, foi
transferido para os cristãos. Que eram referidos
pelos escritores romanos como: os cristãos odeiam a raça humana; suas
superstições eram execráveis; e que a cidade de Roma atrai toda sorte de
pessoas temíveis e vergonhosas (todas essas expressões se encontram na obra de
Tácito – Annals). Por trás das acidas e implacáveis criticas proferidas contra
os cristãos está o grande receio dos pensadores romanos de que o cristianismo
viesse contaminar a cultura (religião) romana. Esses mais do que outros
segmentos da sociedade imperial se apercebiam da velocidade com que o numero de
cristãos se multiplicavam na capital imperial e em outros importantes e
estratégicos centros urbanos do Império (Éfeso, Tessalônica, e até na distante
Galácia). Uma das táticas para impedir o avanço de pensamentos diferentes é
depreciá-lo ao máximo.
Dentro da esfera do pensamento popular tinha outro
aspecto que provocava a indignação contra os cristãos. Naqueles dias todas as
pessoas, famílias e negociantes tinham que fazer oferendas aos deuses – fossem quais
fossem e principalmente ao Imperador. Mas os cristãos preferiam morrer a
sacrificar aos deuses, declarando que se prostrariam somente diante do seu
Cristo – Senhor e Salvador. Como tudo que acontecia na vida cotidiana estava
ligada diretamente a ação ou ira dos deuses, todas e qualquer catástrofe natural
era lançada na conta do divino. O incêndio que destruí e matou tantas pessoas e
famílias foram catalogadas na escala máxima das catástrofes – e quem eram os
culpados pela ira dos deuses sobre a cidade romana? Quem não oferecia sacrifícios
aos deuses para acalma-los? Uma resposta eclodiu – os cristãos. O imperador Nero apenas alimentou
e se utilizou desta interpretação popular e lançou a culpa pela destruição e
morte na conta dos cristãos.
O que chama atenção aqui é que a partir deste ponto e
principalmente após o próximo evento (destruição de Jerusalém 70 DC) começa a
se fazer mais nitidamente uma distinção entre o ser um cristão e o ser um judeu
– cristianismo e judaísmo passam a terem existência diametralmente opostas e irreconciliáveis.
E na medida em que as comunidades cristãs se expandiam geograficamente por todo
o Império Romano, as Sinagogas judaicas foram ficando à sua sombra, perdendo
paulatinamente sua capacidade de atração sobre os desesperançados gentios (não
judeus), que vinham na mensagem cristã e nas comunidades cristãs uma esperança
e liberdade que não haviam encontrado nem mesmo no judaísmo.
Ainda que não imediatamente, mas em período posterior, os
cristãos literatos começaram a escrever suas apologias em defesa do
cristianismo, visando demonstrar junto as autoridades do Império que os
cristãos eram bons cidadãos do Estado e que honravam e obedeciam as leis vigentes,
desde que não exigissem negarem sua fé cristã. Essa literatura apologética
cristã vai ao longo do tempo conquistando seu espaço nas estantes das academias
e públicas contribuindo para uma continua mudança de mentalidade contraria aos
cristãos e seu cristianismo.
Com toda tranquilidade podemos aplicar as palavras ditas
por José, após se cumprirem o luto de seu pai Jacó/Israel, aos seus irmãos: “o mal que vocês intentaram contra mim, Deus transformou
em benção”.
Por todas e talvez outras razões menos expositivas os
cristãos se constituíam nos bodes expiatórios perfeitos para serem sacrificados
no altar da vaidade e arrogância déspota de Nero e tantos outros imperadores
romanos no transcorrer do tempo e ainda hoje em diversas partes do mundo que se
autodenominam pós-modernos.
Para concluir é preciso esclarecer que de fato essa foi a
primeira perseguição eminentemente governamental promovida pelo Império contra
os cristãos. Até então quem perseguia e denegria os cristãos e suas comunidades
cristãs eram os judeus – que viam e continuam vendo no cristianismo uma
distorção do judaísmo.[6] Todavia,
apesar de um numero expressivo de cristãos terem perecido pelas formas mais cruéis
que se possa pensar (até queimados vivos como tochas para iluminar o jardim de
Nero), esta horrível perseguição ficou restrita à geografia da capital
imperial, de maneira que os cristãos que conseguiram sair de Roma encontravam
relativa segurança em outras cidades e vilarejos do Império.
O
aspecto positivo, citado acima, é que o Evangelho e as comunidades cristãs se
multiplicavam em todo território imperial; o aspecto negativo é que “a impressão deixada por essa perseguição no
mundo romano foi forte e durável; de então em diante o nome de cristão foi
banido e ferreteado como coisa criminosa, digna de morte” (BIHLMEYER;
TUECHLE, 1989, p. 105) e que somente será plenamente desfeita nos dias de
Constantino.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências
Bibliográficas
BILHMEYER, Karl; TUECHLE,
Hermann. Storia della Chiesa: 1-l. Brescia: Morcelliana, 1989.
BROWN, Peter. A
ascensão do cristianismo no ocidente. Lisboa: Presença, 1999.
DANIEL-ROPS, Henri. A
Igreja dos Apóstolos e dos Mártires. Tradução Emérico da Gama. São
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Henri-Irenée. Nova História da Igreja Vol. I: dos Primórdios a São
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SUETÔNIO. Os doze
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Clark, 1887. pp. 19-79.
YANGUAS, Narciso
Santos. Cristianismo e
Imperio romano durante el siglo I. Madrid: Universidade de Ouviedo Servicio
Publicaciones, 1994
[1] O historiador cristão Eusébio
de Cesaréia (263-340 d.C.) afirma que durante esta perseguição Paulo foi
decapitado em Roma, e Pedro foi crucificado de cabeça para
baixo, pois pediu para si esse sofrimento.
[2] Ocorrido na noite de 18 de julho do
ano de 64 d.C., o Grande Incêndio de Roma foi uma das maiores e mais
enigmáticas tragédias de toda a Antiguidade. As devastadoras chamas duraram
seis dias e destruíram boa parte da maior cidade do império romano, ocasionando
um número incontável de mortos e feridos. Afetou 10 das 14 regiões da cidade e
destruiu 3 delas completamente.
[3] O historiador romano Tácito
Cornélio (54-120), que não nutria consideração pelos cristãos,
registra esse terrível martírio em seus "Anais", escrito no
tempo do imperador Trajano. Ele deixa claro que Nero usou os cristãos como
bodes expiatórios - Tácito é a única documentação romana que temos conectando
os cristãos ao grande incêndio de Roma no verão de 64.
[4] O clima seco, o forte calor da época,
a força do vento e a natureza dos altamente inflamáveis edifícios da cidade
criaram as condições ideias para o rápido alastramento do fogo.
[5] Todos os escritores cristãos
posteriores viam-se obrigados a desfazer esse boato, situação que será alterada
apenas com Constantino.
[6]
Diversos historiadores modernos tendem a admitir que os judeus, na sua permanente
hostilidade à nova seita, tenham denunciado os cristãos, até mesmo para livrar
a eles próprios de qualquer acusação, visto não serem populares entre as
autoridades públicas do Império.
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