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sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Fatos Marcantes da História do Cristianismo: Nero e o Incêndio de Roma (64 DC)



            A única literatura histórica contida no Segundo Testamento é a de Lucas-Atos, mas que narra os acontecimentos até a prisão definitiva de Paulo em Roma, onde ele por causa de sua cidadania romana está aguardando o julgamento por parte do Senado romano, único órgão jurídico pelo qual um cidadão romano podia ser julgado.
            A partir da conclusão da literatura Lucas-Atos não temos mais nenhuma informação histórica canônica da expansão do cristianismo no Império Romano e além de suas fronteiras. Qualquer pesquisa deve acessar informações produzidas por historiadores cristãos ou não cristãos, mas que não trazem em si o selo da inspiração ou inerrância das literaturas neotestamentárias.
            Todavia nada nos impede de assessorados por esses registros históricos diversos fazermos o exercício de reconstrução de uma História do Cristianismo. Evidente que a pluralidade de informações e muitas vezes sem possibilidade de verificação de suas fontes originais nos obriga a sermos muito cautelosos em nossas conclusões.
            A escolha de fatos que sejam fundamentais nesta trajetória histórica da igreja cristã é arbitraria na medida em que cada historiador tem suas prerrogativas e até mesmo seus pressupostos, o que em si não é necessariamente negativo ou prejudicial à nominação destes fatos. Alguns são recebidos com ampla aceitação e outros com aceitação restrita e alguns até mesmo contestados, o que torna esse exercício ainda mais enriquecedor e desafiante.
            O ponto de partida é sempre a cronologia dos eventos que foram construindo a História Cristã no mundo. Centenas de historiadores cristãos e outras centenas não cristãs se debruçaram exaustivamente sobre milhares de documentos na busca de uma cronologia fiel aos eventos maiores ou menores, relevantes e até mesmo triviais que perfazem o mosaico histórico do cristianismo desde suas origens no primeiro século até o presente momento. Todos esses exaustivos trabalhos de pesquisa elaborados facilitam a nossa vida no que tange nomearmos ou destacarmos aqueles eventos que de alguma forma contribuíram mais efetivamente para o avanço da igreja cristã. Como mencionei antes a escolha é sempre em última instância arbitraria, ainda que sempre se busque o máximo possível um consenso entre os historiadores e pesquisadores do cristianismo através dos séculos.
O Imperador Nero e o Incêndio da Cidade de Roma
            Os mais diversos historiadores convergem para este acontecimento como sendo responsável por um impulso expansionista do cristianismo no interior do Império Romano a partir da capital.
             Isto ocorre por duas razões concomitantes:
*      A primeira é que debaixo da acusação palaciana de serem os responsáveis diretos pelo terrível incêndio que devastou uma grande parte da cidade centenas ou até milhares de cristãos fogem da ira imperial e do populacho, pois um número sem conta de moradores perderam tudo que tinham construído a vida inteira, e procuram refúgios em outros centros urbanos próximos ou distantes, neste caso quanto mais distante mais seguro, de Roma. Estes cristãos e suas famílias na medida em que vão se estabelecendo em outras cidades e vilarejos proclamam sua mensagem evangélica multiplicando por toda área geográfica do Império suas comunidades cristãs.
*      A segunda razão é muito mais trágica e mortífera. Os cristãos, começando por suas respectivas lideranças – o caso de Paulo (e segundo a versão Católica Romana – Pedro)[1] são martirizados neste período do reinado de Nero. Mas centenas e provavelmente mais de um milhar de cristãos foram aleatoriamente presos e condenados às mortes mais cruéis e inimagináveis no Coliseu Romano (hoje suas ruinas são badalados pontos turísticos, e milhões de pessoas tiram suas selfs sem se importarem que ali milhares de pessoas tiveram suas vidas arrancadas violentamente). Evidente que o Coliseu era o ponto áureo desta carnificina cristã, mas tantos ou mais morreram nas mãos do populacho com sede de vingança pela perda de seus bens consumidos pelo incêndio. Mas na mesma proporção em que esses cristãos eram expostos à morte nas mãos dos mais cruéis gladiadores (na maioria escravos que matavam para sobreviverem) e dos animais ferozes famintos que os despedaçam para delírio das multidões – o testemunho da fé cristã centrada na esperança inaudita de uma vida eterna em Cristo Jesus – produziam um impacto violento na vida de muitos que assistiam ao “espetáculo”. Uma frase foi cunhada deste testemunho em face do martírio pelo historiador cristão do século II, Tertuliano: “O sangue dos mártires é a semente da igreja”. Em um período em que as pessoas se encontravam totalmente desesperançadas e tinham pavor da morte, assistir os cristãos morrerem cantando e exaltando seu Cristo Salvador – foi despertando nestas plateias um interesse crescente para descobrir a razão desta segurança e esperança diante da morte.
Retornando à questão histórica do grande incêndio, há muitas controversas quanto as reais origens da tragédia:[2]
*      A tese mais comum e sustentada por alguns documentos da época ou próximo do acontecimento é de que o imperador Nero desejava a muito tempo fazer uma profunda reforma urbanista na cidade de Roma, mas o Senado sempre barrava suas iniciativas alegando falta de recursos orçamentados ou simplesmente para contraria-lo (nada de novo debaixo do sol). Irritado com esta situação Nero, que nunca foi conhecido pela sua paciência, ordena secretamente que se inicie um incêndio na parte mais pobre da cidade (nas favelas atuais) cujas casas e comércios construídos com material facilmente inflamável acabaram tomando proporções descomunais e atingindo muitas outras partes da cidade.[3]
*      Uma tese que se contrapõe é de que de fato houve este grande incêndio, que não foi o primeiro e nem o último ocorrido na capital do Império, mas que não foi causado por qualquer ordem ou influência de Nero que não se encontrava na cidade neste momento e que pessoalmente se empenhou em minimizar os enormes prejuízos advindos desta tragédia, inclusive abrindo as portas do Palácio real para abrigar os despojados.[4]
Pelo histórico do imperador Nero em que abundam seus desvairos neuróticos e comportamento déspota, em que não aceitava se contrariado em suas vontades e caprichos a primeira tese é prevalecente, enquanto a segunda carece de muita boa vontade para ser ao menos parcialmente aceita.
Mas uma questão se impõe: por que os cristãos foram apontados ou acusados de serem os responsáveis pelo incêndio? Na medida do tempo foi se construindo uma imagem distorcida e folclórica a respeito dos cristãos e sua religião (cristianismo). O fato de que parte do culto (ceia) não eram públicas mas momentos privados reservados apenas aos cristãos batizados e que se repetiam as expressões utilizadas por Cristo – esse é o meu corpo (pão) tomai e comei, e este é o meu sangue (cálice) tomai e bebei – geraram toda sorte de ideias absurdas, tais como o de que os cristãos eram canibais ou demônios que comiam e bebiam carne e sangue e que sacrificavam criancinhas; o osculo da comunhão (beijo) era interpretado como orgias e assim por diante. Tais conclusões equivocadas tomaram proporções inimagináveis no subconsciente do populacho que os cristãos eram vistos como aberrações.[5]
Para reforçar esse ideário popular soma-se a literatura dos escritores romanos que destilavam todo seu fel contra os cristãos e sua religião. Vistos até então como mais uma seita do judaísmo, toda intolerância e repudio que se tinha em relação aos judeus, sempre envoltos com rebeliões na palestina, com sua religião messiânica e seus ritos restritivos, foi transferido para os cristãos.  Que eram referidos pelos escritores romanos como: os cristãos odeiam a raça humana; suas superstições eram execráveis; e que a cidade de Roma atrai toda sorte de pessoas temíveis e vergonhosas (todas essas expressões se encontram na obra de Tácito – Annals). Por trás das acidas e implacáveis criticas proferidas contra os cristãos está o grande receio dos pensadores romanos de que o cristianismo viesse contaminar a cultura (religião) romana. Esses mais do que outros segmentos da sociedade imperial se apercebiam da velocidade com que o numero de cristãos se multiplicavam na capital imperial e em outros importantes e estratégicos centros urbanos do Império (Éfeso, Tessalônica, e até na distante Galácia). Uma das táticas para impedir o avanço de pensamentos diferentes é depreciá-lo ao máximo.
Dentro da esfera do pensamento popular tinha outro aspecto que provocava a indignação contra os cristãos. Naqueles dias todas as pessoas, famílias e negociantes tinham que fazer oferendas aos deuses – fossem quais fossem e principalmente ao Imperador. Mas os cristãos preferiam morrer a sacrificar aos deuses, declarando que se prostrariam somente diante do seu Cristo – Senhor e Salvador. Como tudo que acontecia na vida cotidiana estava ligada diretamente a ação ou ira dos deuses, todas e qualquer catástrofe natural era lançada na conta do divino. O incêndio que destruí e matou tantas pessoas e famílias foram catalogadas na escala máxima das catástrofes – e quem eram os culpados pela ira dos deuses sobre a cidade romana? Quem não oferecia sacrifícios aos deuses para acalma-los? Uma resposta eclodiu – os cristãos. O imperador Nero apenas alimentou e se utilizou desta interpretação popular e lançou a culpa pela destruição e morte na conta dos cristãos.
O que chama atenção aqui é que a partir deste ponto e principalmente após o próximo evento (destruição de Jerusalém 70 DC) começa a se fazer mais nitidamente uma distinção entre o ser um cristão e o ser um judeu – cristianismo e judaísmo passam a terem existência diametralmente opostas e irreconciliáveis. E na medida em que as comunidades cristãs se expandiam geograficamente por todo o Império Romano, as Sinagogas judaicas foram ficando à sua sombra, perdendo paulatinamente sua capacidade de atração sobre os desesperançados gentios (não judeus), que vinham na mensagem cristã e nas comunidades cristãs uma esperança e liberdade que não haviam encontrado nem mesmo no judaísmo.
Ainda que não imediatamente, mas em período posterior, os cristãos literatos começaram a escrever suas apologias em defesa do cristianismo, visando demonstrar junto as autoridades do Império que os cristãos eram bons cidadãos do Estado e que honravam e obedeciam as leis vigentes, desde que não exigissem negarem sua fé cristã. Essa literatura apologética cristã vai ao longo do tempo conquistando seu espaço nas estantes das academias e públicas contribuindo para uma continua mudança de mentalidade contraria aos cristãos e seu cristianismo.
Com toda tranquilidade podemos aplicar as palavras ditas por José, após se cumprirem o luto de seu pai Jacó/Israel, aos seus irmãos: “o mal que vocês intentaram contra mim, Deus transformou em benção”.
Por todas e talvez outras razões menos expositivas os cristãos se constituíam nos bodes expiatórios perfeitos para serem sacrificados no altar da vaidade e arrogância déspota de Nero e tantos outros imperadores romanos no transcorrer do tempo e ainda hoje em diversas partes do mundo que se autodenominam pós-modernos.
Para concluir é preciso esclarecer que de fato essa foi a primeira perseguição eminentemente governamental promovida pelo Império contra os cristãos. Até então quem perseguia e denegria os cristãos e suas comunidades cristãs eram os judeus – que viam e continuam vendo no cristianismo uma distorção do judaísmo.[6] Todavia, apesar de um numero expressivo de cristãos terem perecido pelas formas mais cruéis que se possa pensar (até queimados vivos como tochas para iluminar o jardim de Nero), esta horrível perseguição ficou restrita à geografia da capital imperial, de maneira que os cristãos que conseguiram sair de Roma encontravam relativa segurança em outras cidades e vilarejos do Império.
O aspecto positivo, citado acima, é que o Evangelho e as comunidades cristãs se multiplicavam em todo território imperial; o aspecto negativo é que “a impressão deixada por essa perseguição no mundo romano foi forte e durável; de então em diante o nome de cristão foi banido e ferreteado como coisa criminosa, digna de morte” (BIHLMEYER; TUECHLE, 1989, p. 105) e que somente será plenamente desfeita nos dias de Constantino.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas
BILHMEYER, Karl; TUECHLE, Hermann. Storia della Chiesa: 1-l. Brescia: Morcelliana, 1989.
BROWN, Peter. A ascensão do cristianismo no ocidente. Lisboa: Presença, 1999.
DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires. Tradução Emérico da Gama. São Paulo: Quadrante, 1988.
DANIÉLOU, Jean. MARROU, Henri-Irenée. Nova História da Igreja Vol. I: dos Primórdios a São Gregório Magno. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1966.
EUSÉBIO DE CESAREIA. História Eclesiástica. Tr. Monjas Beneditinas do Mosteiro Maria Mãe de Cristo. São Paulo: Paulus, 2000.
RIBEIRO, Daniel Valle. Nero e o incêndio de Roma. Acessado em 05/10/2018  https://static1.squarespace.com/static/561937b1e4b0ae8c3b97a702/t/57274bb75559869e24624c7d/1462193082994/6_Ribeiro%2C+Daniel+Valle.pdf
SUETÔNIO. Os doze Césares. Tr. Gilson César Cardoso de Sousa. Guarulhos, SP: Germape, 2003.
TÁCITO. Anais. Rio de Janeiro: F.diouro, 1967 [Trad. de Leopoldo Pereira]. TERTULLIAN. Apologetic. Tr. Rev. S. Thelwall. In. SCHAFF, P. MENZIES, A. (Ed.) A select library of Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Tome I-3. Edinburgh: T&T Clark, 1887. pp. 19-79.
YANGUAS, Narciso Santos. Cristianismo e Imperio romano durante el siglo I. Madrid: Universidade de Ouviedo Servicio Publicaciones, 1994



[1] O historiador cristão Eusébio de Cesaréia (263-340 d.C.) afirma que durante esta perseguição Paulo foi decapitado em Roma, e Pedro foi crucificado de cabeça para baixo, pois pediu para si esse sofrimento.
[2] Ocorrido na noite de 18 de julho do ano de 64 d.C., o Grande Incêndio de Roma foi uma das maiores e mais enigmáticas tragédias de toda a Antiguidade. As devastadoras chamas duraram seis dias e destruíram boa parte da maior cidade do império romano, ocasionando um número incontável de mortos e feridos. Afetou 10 das 14 regiões da cidade e destruiu 3 delas completamente.
[3] O historiador romano Tácito Cornélio (54-120), que não nutria consideração pelos cristãos, registra esse terrível martírio em seus "Anais", escrito no tempo do imperador Trajano. Ele deixa claro que Nero usou os cristãos como bodes expiatórios - Tácito é a única documentação romana que temos conectando os cristãos ao grande incêndio de Roma no verão de 64.
[4] O clima seco, o forte calor da época, a força do vento e a natureza dos altamente inflamáveis edifícios da cidade criaram as condições ideias para o rápido alastramento do fogo.
[5] Todos os escritores cristãos posteriores viam-se obrigados a desfazer esse boato, situação que será alterada apenas com Constantino.
[6] Diversos historiadores modernos tendem a admitir que os judeus, na sua permanente hostilidade à nova seita, tenham denunciado os cristãos, até mesmo para livrar a eles próprios de qualquer acusação, visto não serem populares entre as autoridades públicas do Império.

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