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terça-feira, 24 de março de 2020

O Peregrino: Contexto Histórico Religioso – Puritanismo



            A vida e obra de John Bunyan esta inserida no contexto histórico da Inglaterra dos dias da rainha Elisabete I e sua complexa e extremamente conturbada questão religiosa. Ela havia herdado uma nação em convulsão religiosa e depois de muitos embates internos, e mortes, conseguiu impor um sistema híbrido entre calvinismo e catolicismo. Evidentemente que ela não agradou a nenhum dos dois lados da questão, mas ao menos pacificou o reino. Dentro deste quadro religioso surge um movimento denominado de puritanismo, pois eles procuravam por todos os meios impor uma reforma mais profunda e abrangente dentro da perspectiva da Reforma realizada por João Calvino em Genebra na Suíça.
              John Bunyan está associado ao movimento Puritano que frequentemente tem sido mal compreendido e até mesmo hostilizado e ridicularizado. Os Puritanos são na maioria das vezes retratados com seus chapéus e roupas negras e pessoas totalmente avessos aos prazeres da vida e a quaisquer outros temas que não fossem religiosos – seriam os beatos ou fanáticos religiosos da época. Mas o puritanismo nunca foi um movimento uniforme e rígido em seus conceitos. Esse movimento surge sem um personagem e data fundante. O movimento se desenvolve na esteira do espírito das reformas que estão sendo produzidas por toda Europa e principalmente através da ferramenta mais eficaz naquele momento – a literatura – da qual sem dúvida alguma a obra “The Pilgrim’s Progress” (O Progresso do Peregrino) escrito por Bunyan ajudou a moldar muitos dos conceitos do puritanismo inglês.
            Somente a partir da década de 1560 o puritanismo tornou-se reconhecidamente um movimento organizado. Se buscarmos seus antecedentes históricos haveremos de retroceder até o maior e mais frutífero movimento pré-reforma inglês liderado por John Wycliffe e seus Lollards que foram instruídos e depois enviados por todas as cidades e vilarejos ingleses no final dos séculos XIV e XV. Evidentemente que o movimento bebeu das águas que emanaram do manancial reformado genebrino conduzido por João Calvino, bem como nos demais movimentos reformistas produzidos a partir de Lutero na Alemanha.
O puritanismo inglês somente assumiu a forma de um movimento organizado na década de 1560, durante o reinado da rainha Elizabete I. Pragmaticamente torna-se um movimento político e teologicamente fundamenta-se na teologia calvinista: a depravação do homem, a soberania de Deus, a salvação pela fé em Cristo, a eleição de Deus de indivíduos para a salvação, a irresistibilidade da graça de Deus e a centralidade da Bíblia como única regra de fé e prática. O Propósito deles era uma reforma interna da igreja Anglicana, principalmente no que se relacionava com suas cerimônias ritualísticas (liturgia) e estrutura eclesiástica de episcopal para presbiteriano e/ou congregacional. No transcorrer do século XVII os diversos grupos puritanos vieram a se constituir em grupos conhecidos como separatistas ou não conformistas.
Ao contrário do sentido pejorativo em que os puritanos são vistos com frequência, a teologia puritana não foi uma camisa de força ou um estilo de vida monástico de negativismo, abstinência ou ascetismo. Apesar de que eles viveram uma prática de fé de intensidade poucas vezes vista em uma sociedade cristã, eles não se desconectaram dos aspectos positivos e prazerosos da vida cotidiana. Para eles as atividades e prazeres moralmente harmonizados com as Escrituras deviam ser praticados e incentivados, pois contribuíam para uma mente e um corpo sadio, mas repudiavam ardorosamente toda sorte de atividades libertinas e ilegais. Comer, beber, cantar e dançar fazem parte da narrativa de “The Pilgrim's Progress” e tais prazeres não contrariavam a Palavra de Deus. Todavia, mantiveram um apresso especial pelo domingo, que era separado (consagrado) para o exercício religioso - o dia deveria ser gasto em descanso e adoração. Nas palavras de Richard Baxter, um autor puritano, o domingo deveria ouvir a Palavra de Deus e assim aprender a fazer Sua vontade e para isso a pregação e o Culto era os pilares dos puritanos. Dentro desta conjuntura não havia dicotomia entre usufruir das coisas boas da vida e buscar uma vida de santidade e pureza. Para eles todas as esferas da vida deveriam ser permeadas por um cristianismo dinâmico. Para isso a autodisciplina precedida por um autoexame era extremamente importante, pois uma vida relaxada e desregrada não era condizente com a vontade de Deus estabelecida nas Escrituras. Para os Puritanos a vida tinha um propósito: Deus deu a cada indivíduo um chamado e os talentos ou dons para segui-lo e honra-lo (tudo para a glória de Deus). Eles não tinham uma visão fragmentada da vida: não havia sagrado e secular, apenas obediência e desobediência, e todas as vocações eram sagradas.
De igual modo os puritanos valorizavam as atividades intelectuais. Eles entendiam que o desenvolvimento da ciência no século XVII e suas teses, bem como as demais áreas do saber humano deveriam ser explorados e examinados. A própria natureza com sua beleza e plasticidade deveriam ser apreciada, em muitos dos seus sermões Bunyan se referia com entusiasmo às atividades da aranha, a organização de uma colmeia, à beleza do sol, da lua e das estrelas, ao canto dos pássaros, aos encantos de um jardim inglês bem cuidado. Para Bunyan negligenciar a beleza da criação era ignorar as manifestações do próprio Deus.
Apesar de ele viver o epicentro do movimento Puritano inglês e de ser comumente referido como sendo um puritano, ele nunca esteve engajado nas questões eminentemente eclesiásticas daqueles que desejavam a todo custo mudar o sistema da Igreja Anglicana ou a Igreja Estabelecida. Sua preferência pessoal recaia sobre forma simples de adoração, com ênfase na centralidade do Bíblia, em vez de forma litúrgica anglicana, mais ao estilo católico romano. Em vários de seus escritos, Bunyan faz duras críticas àqueles que gastavam precioso tempo da pregação em discussões intermináveis sobre picuinhas doutrinárias, do que proclamando a graça que pode levar indivíduos a Deus. As divisões e subdivisões do movimento puritano entre presbiterianos, congregacionais, metodistas, batistas entre outros, a ponto de não mais poderem ter comunhão uns com os outros, sempre foi motivo de tristeza para o coração de Bunyan.
Mas isso não significa que Bunyan não tinha disposição para polemizar com quem quer que fosse sobre questões que envolvessem as verdades do Evangelho. Sua polêmica com Edward Burrough um líder Quakers foi longa e dura; a questão estava no ensino deles de que a conversão era um ato interior da alma e independente de uma profissão de fé externa e de que além das Escrituras Deus continuava falando e revelando Sua vontade. Bunyan enfatizava que a única experiência pessoal válida era aquela abalizada e fundamenta no ensino das Escrituras. Em seu julgamento, a doutrina quaker da 'luz interior' carecia do caráter objetivo da revelação especial.
            As lutas políticas e religiosas de sua época foram acentuadas e amargas e muitos morreram, mas Bunyan jamais foi omisso ou permaneceu “equidistante” – seu posicionamento sempre foi a de Lutero e jamais a de Erasmus. Nunca temeu em tomar um posicionamento firme e contundente contra o mal e a injustiça. Ele jamais se escondeu atrás de púlpitos e sistemas eclesiásticos; ele não passava os dias distante dos interesses públicos e disputas ao seu redor, ao contrário, mergulhou neles e lutou e sofreu as consequências, inclusive passando longo período de doze anos preso, por causa de seus posicionamentos. Bunyan não apenas assistiu a história de seu país e seu povo, mas participou efetivamente dela.
            Mas como na história bíblica de José o aprisionamento prolongado de Bunyan se transformou em bênção para ele e milhões de leitores em todo o mundo e épocas. Enquanto livre suas energias foram canalizadas para suas múltiplas tarefas de pregador e polemista, de maneira que pouco tempo lhe sobrava para outro tipo de literatura. Mas dentro da providencia de Deus e moldado pelas circunstâncias adversas o seu aprisionamento lhe proporcionou a oportunidade de escrever sua maior obra literária, que tem sido colocada lado a lado de expoentes como John Milton o indiscutível poeta inglês e o dramaturgo William Shakespeare seus contemporâneos.


Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/

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Referências Bibliográficas
Brown, John. John Bunyan, His Life, Times and Works. Ed. Frank Mott Harrison. London: The Banner of Truth Trust, 1964.
BUNYAN, John. O peregrino: com notas de estudo e ilustrações. Trad. Hope Gordon Silva. São Paulo: Editora Fiel, 2005.
_____________. Grace abounding to the chief of sinners. Disponível em
<http://acacia.pair.com/Acacia.John.Bunyan/Sermons.Allegories/Grace.Abounding/Account.Ministry.html>. Acesso em abril de 2017.
 FOXE, John. O livro dos mártires. Traduzido por Almiro Pizetta. São Paulo: Mundo Cristão, 2003.
GREAVES, Robert L. John Bunyan. Grand Rapids: William B. Eerdmans Publishing Company, 1969.
HARRISON, G. B. John Bunyan, A Study in Personality. London: J.M. Dent and Sons, 1928
MARGUTTI, Vivian Bernardes. Peregrinos em busca: alegoria, utopia e distopia em Paul Auster, Nathaniel Hawthorne e John Bunyan. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2010. (Tese Doutorado em Letras: Estudos Literários, Orientador: Prof. Dr. Luis Alberto Ferreira Brandão Santos.
SANTOS, Tiago. A Peregrinação cristã: sofrimento e vida de John Bunyan. http://voltemosaoevangelho.com/blog/2014/03/a-peregrinacao-crista-sofrimento-e-vida-de-john-bunyan-tiago-santos/

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