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terça-feira, 3 de março de 2020

Calvino e Sua Relação com os Pais da Igreja



            O reformador de Genebra foi um dos mais relevantes e profícuo escritor e exegeta da Reforma Protestante desenvolvida no século XVI. Sua obra magna “Institutas da Religião Cristã” tornou-se livro texto para reformadores em toda a Europa e muito além, incluindo o Novo Mundo – no Brasil temos inúmeras denominações evangélicas que tem nas obras de Calvino o embasamento de suas teologias.
            Quais foram as fontes onde Calvino saciou sua sede de conhecimento teológico exegético? Como filho do movimento humanista de sua época ele aprendeu a valorizar as fontes primárias, não apenas das Escrituras do Primeiro e Segundo Testamento, mas também teve acesso aos mais variados escritos produzidos nos séculos anteriores a ele. Essa literatura abundante escritas em grego e latim foi produzida pelos chamados “Pais da Igreja”, ou seja, aquela geração pós-apostólica que teve sobre seus ombros a responsabilidade de continuar a expansão e orientação do movimento cristão.
Calvino manteve-se particularmente interessado nos primeiros cinco séculos da História da Igreja, pois entendia que neste período a Igreja ainda se manteve dentro da influência bíblico-exegética. Seu argumento era de que no período da chamada Igreja Primitiva encontrava-se a ressonância para as propostas dos reformadores de seus dias. Mas como Lutero, ele rejeitou o período patrístico como normativo, pois tinha plena consciência dos equívocos involuntários ou até mesmo voluntários de muitos dos escritores antigos. Sua regra de fé e prática era tão somente as Escrituras e todas as demais formulações permaneciam ou eram repudiadas quando confrontadas com os princípios emanados da fonte suprema – a Palavra de Deus.
            A questão crucial é: até onde Calvino foi influenciado pela literatura produzida pelos Pais da Igreja?  Aqui temos duas abordagens distintas: a minimalista onde se busca constatar onde de fato há evidência consistente de que Calvino foi influenciado por aquele teólogo patrístico e a maximalista, que parte do pressuposto, sem qualquer evidência comprovatória, de que o reformador genebrino usou indiscriminadamente da literatura patrística.
            Deve-se levar em conta o fato inequívoco de que Calvino tinha pleno conhecimento desta vasta literatura patrística e de que sofreu como qualquer outro a influência destes teólogos na formulação de sua própria elaboração teológica ou teríamos que admitir que os escritos de Calvino fossem “inspirados” e teríamos que anexar suas literaturas ao cânon bíblico. A. M Hunter faz uma observação interessante: “nenhum [dos reformadores]... estudaram os Padres mais de perto do que ele ou assimilaram mais completamente sua doutrina” (1950. p.38). E o historiador Johannes van Oort resume: “Não há dúvida de que, de acordo com o princípio humanista de ad fontes, o reformador do século XVI, João Calvino, leu amplamente nos Pais” (p. 697-98).
            Mas o fato de que Calvino tivesse amplo acesso e até mesmo fosse influenciado pelo pensamento patrístico não nos autoriza afirmar que ele os endossou indiscriminadamente. Ele seguia fielmente a orientação bíblica de que se deve conhecer tudo e reter apenas e tão somente aquilo que edifica. Ainda que os Pais da Igreja tenham escrito muitas coisas úteis e edificantes, eles também produziram muitas coisas nocivas à genuína exegese bíblica e muitas deformações teológicas que vieram a contribuir negativamente para a vida da Igreja Cristã. Na Idade Média a Igreja sofre as consequências desse uso indiscriminado, mas em muitos casos muito bem pensado, dos ensinos espúrios produzidos, nem sempre propositalmente, pelas gerações anteriores.
            Calvino tinha plena consciência dessa realidade e sempre utilizou um filtro no que concerne à utilização do material patrístico. Ele jamais menosprezou o trabalho de seus antecessores, ao contrário, sempre manifestou seu apreço pelo esforço deles em manter as estruturas teológicas da Igreja.
            O estudioso Johnannes van Oort em seu abrangente trabalho sobre Calvino e os Pais da Igreja, nomeia em ordem cronológica as referências que o reformador fez dos escritores antigos. Ainda muito jovem, 22 anos, em seu primeiro escrito “Comentário sobre a De Clementia, de Sêneca” (1532) ele faz referências a alguns autores patrístico como Cipriano, Lactâncio, Jerônimo e Gregório Magno e ainda cedo o seu preferido sempre foi Agostinho, que neste opúsculo humanista é o mais referenciado, mas é preciso realçar que o jovem Calvino não tem pretensões teológicas nesse momento.
            Avançando Oort destaca o prefácio de Calvino à tradução da Bíblia em francês por seu primo Robert Olivétan, onde cita Jerônimo, Crisóstomo e Agostinho e o elogio de Eusébio a Panfílio de Cesaréia, em sua argumentação sobre a relevância de se colocar a Bíblia à disposição do povo como antídoto para os falsos ensinos e as heresias. Aqui Calvino faz uso apologético-teológico dos ensinos provindos dos referidos autores.
            Em sua carta dirigida ao rei Francisco, quando da primeira edição das “Institutas” (1536), Calvino faz uso dos patrístico como contra ponto às criticas produzidas pelos eruditos católicos de que os ensinos dos protestantes era algo novo e que eles desprezavam toda a herança bíblico-teológica dos Pais da Igreja. O teólogo genebrino destaca que o testemunho dos antigos era favorável aos protestantes, mas refutava sistematicamente as heresias romanas, por esta razão faz citações de Acácio de Amida, Ambrósio, Serapião de Tmuis, Agostinho, Epifânio, Cipriano, Apolônio. Ele explica esta sua posição:
Tínhamos que remover a acusação de novidade que eles, de maneira insidiosa e injusta, trouxeram contra nós; não era impróprio produzir passagens de escritores piedosos para mostrar que a doutrina que agora entregamos não é outra senão a que era recebida antigamente sem controvérsia (Tracts and Treatises., II, p. 434, apud BUEHRER, 1967, p. 14).
Então Oort passa um pente fino nas “Institutas” e destaca as muitas referências, de cunho apologético e teológico que Calvino faz dos diversos patrísticos, de forma mais acentuada de Agostinho, para enfatizar seus próprios argumentos. Por sua vez Leroy Nixon quantifica as referências dos Pais na ultima edição das Institutas (1559) por Calvino: “Agostinho 228 vezes, Gregório, o Grande, 39 vezes, e Crisóstomo 27 vezes, juntamente com vários outros antigos” (1963, p. 15, apud, BUEHRER, 1967, p. 11). Mas estas citações dos escritos patrísticos, nas Institutas, são minimizadas quando as contrapõe em relação às citações que Calvino faz das Escrituras na sua obra teológica magna: citou o Antigo Testamento 2351 vezes e o Novo Testamento 3998 (McNEILL, 1959, p. 135, apud BUEHRER, 1967, p. 12).
Mas é importante reforçar que o conhecimento e uso de Calvino da literatura patrística não foi no sentido de copiar e colar o que aqueles estudiosos fizeram, mas de examinar e utilizar desta vasta biblioteca tão somente aquilo que permanecia fiel ao pensamento teológico-exegético defendido por ele e seus colegas reformadores. O fato de Calvino ter citado inúmeras vezes Agostinho não significou que ele endossava indiscriminadamente todo o pensamento agostiniano.
Seu senso crítico sempre prevaleceu não somente quanto aos Pais da Igreja, mas de quaisquer outros autores contemporâneos dele. Seu lema era de que todo o conhecimento dos antigos ou contemporâneos era como servos e não senhores, pois o único Senhor é Cristo, a quem se deve submeter em todas as coisas sem exceção.
Ele insistentemente advertia seus ouvintes e leitores para que tomassem cuidado com interpretações equivocadas dos pais, fossem não intencional ou proposital. A estima de Calvino em relação a qualquer dos Pais em particular dependia da interpretação que este fazia das Escrituras. Esse posicionamento não era novo, mas parece ter sido uma prática comum, pois Wycliffe destacou nessa base Agostinho, Ambrósio, Jerônimo, Gregório e Bernard (MALLARD, 1961, p. 51-52, apud BUEHRER, 1967, p. 18).
            Desta forma, os dois extremos devem ser contestados: Calvino rejeitou todo vasto conhecimento patrístico e Calvino endossou ou foi indiscriminadamente influenciado pelos conceitos teológicos dos períodos anteriores. Tratando sobre esta questão Irena Backus (1991, p. 437) concluiu de forma sensata:
1. Calvino parece maravilhosamente preciso em seu conhecimento e uso dos Padres, por um lado, mas altamente seletivo por outro.
2. O uso dos pais por Calvino é uma tentativa impressionante de relacionar o protestantismo do século 16 com a igreja dos primeiros séculos.
Anthony Lane, partindo do fato que Calvino possuía uma formação jurídica, conclui que ele “cita os pais principalmente como testemunhas da defesa, como autoridades às quais apelar. Por esse motivo, há muito mais referências nos escritos de Calvino aos pais do que a figuras do final da Idade Média ou do século XVI” (1999, p.3). Isto não significa que Calvino deixasse de ler os patrísticos para edificação pessoal ou que fizesse citações deles fora do contexto polemista.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas
BUEHRER, Richard Lyle. John Calvin’s use of historical argument. The University of Arizona, 1967.
CALVIN, Juan. Last Admonition to Jachim W estphall, Tracts and Treatises., II, apud  434.
HUNTER, A. Mitchell. The Teaching of Calvin. London: James Clarke & Co., 1950.
LANE, Anthony N. S. John Calvin Student of Church Fathers. Edinburgh: A&C Black, 1999.
MALLARD, William. John Wyclif and the Tradition of Biblical Authority. Church History, 30, 1961.
McNEILL, John T. The Significance of the Word of God for Calvin. Church Historv 28 (June), 1959.
VAN OORT, Johnannes. John Calvin and the Church Fathers. In: BACKUS, Irena (Ed.). The Reception of the Church Fathers in the West: From the Carolingians to the Maurists. V. 1. Leiden, New York: Koln, 1997.

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