O reformador de Genebra foi um dos mais relevantes e
profícuo escritor e exegeta da Reforma Protestante desenvolvida no século XVI.
Sua obra magna “Institutas da Religião Cristã” tornou-se livro texto para
reformadores em toda a Europa e muito além, incluindo o Novo Mundo – no Brasil
temos inúmeras denominações evangélicas que tem nas obras de Calvino o
embasamento de suas teologias.
Quais foram as fontes onde Calvino saciou sua sede de
conhecimento teológico exegético? Como filho do movimento humanista de sua
época ele aprendeu a valorizar as fontes primárias, não apenas das Escrituras
do Primeiro e Segundo Testamento, mas também teve acesso aos mais variados
escritos produzidos nos séculos anteriores a ele. Essa literatura abundante
escritas em grego e latim foi produzida pelos chamados “Pais da Igreja”, ou
seja, aquela geração pós-apostólica que teve sobre seus ombros a
responsabilidade de continuar a expansão e orientação do movimento cristão.
Calvino
manteve-se particularmente interessado nos primeiros cinco séculos da História
da Igreja, pois entendia que neste período a Igreja ainda se manteve dentro da
influência bíblico-exegética. Seu argumento era de que no período da chamada
Igreja Primitiva encontrava-se a ressonância para as propostas dos reformadores
de seus dias. Mas como Lutero, ele rejeitou o período patrístico como
normativo, pois tinha plena consciência dos equívocos involuntários ou até
mesmo voluntários de muitos dos escritores antigos. Sua regra de fé e prática
era tão somente as Escrituras e todas as demais formulações permaneciam ou eram
repudiadas quando confrontadas com os princípios emanados da fonte suprema – a
Palavra de Deus.
A questão crucial é: até onde Calvino foi influenciado
pela literatura produzida pelos Pais da Igreja? Aqui temos duas abordagens distintas: a
minimalista onde se busca constatar onde de fato há evidência consistente de
que Calvino foi influenciado por aquele teólogo patrístico e a maximalista, que
parte do pressuposto, sem qualquer evidência comprovatória, de que o reformador
genebrino usou indiscriminadamente da literatura patrística.
Deve-se levar em conta o fato inequívoco de que Calvino
tinha pleno conhecimento desta vasta literatura patrística e de que sofreu como
qualquer outro a influência destes teólogos na formulação de sua própria
elaboração teológica ou teríamos que admitir que os escritos de Calvino fossem
“inspirados” e teríamos que anexar suas literaturas ao cânon bíblico. A. M
Hunter faz uma observação interessante: “nenhum
[dos reformadores]... estudaram os Padres mais de perto do que ele ou
assimilaram mais completamente sua doutrina” (1950.
p.38). E o historiador Johannes van Oort resume: “Não há dúvida de que, de acordo com o princípio humanista de ad fontes,
o reformador do século XVI, João Calvino, leu amplamente nos Pais” (p. 697-98).
Mas o fato de que Calvino tivesse amplo acesso e até
mesmo fosse influenciado pelo pensamento patrístico não nos autoriza afirmar
que ele os endossou indiscriminadamente. Ele seguia fielmente a orientação
bíblica de que se deve conhecer tudo e reter apenas e tão somente aquilo que
edifica. Ainda que os Pais da Igreja tenham escrito muitas coisas úteis e
edificantes, eles também produziram muitas coisas nocivas à genuína exegese bíblica
e muitas deformações teológicas que vieram a contribuir negativamente para a
vida da Igreja Cristã. Na Idade Média a Igreja sofre as consequências desse uso
indiscriminado, mas em muitos casos muito bem pensado, dos ensinos espúrios
produzidos, nem sempre propositalmente, pelas gerações anteriores.
Calvino tinha plena consciência dessa realidade e sempre
utilizou um filtro no que concerne à utilização do material patrístico. Ele
jamais menosprezou o trabalho de seus antecessores, ao contrário, sempre
manifestou seu apreço pelo esforço deles em manter as estruturas teológicas da
Igreja.
O
estudioso Johnannes van Oort em seu abrangente trabalho sobre Calvino e os Pais
da Igreja, nomeia em ordem cronológica as referências que o reformador fez dos
escritores antigos. Ainda muito jovem, 22 anos, em seu primeiro escrito “Comentário
sobre a De Clementia, de Sêneca” (1532) ele faz referências a alguns autores
patrístico como Cipriano, Lactâncio, Jerônimo e Gregório Magno e ainda cedo o
seu preferido sempre foi Agostinho, que neste opúsculo humanista é o mais
referenciado, mas é preciso realçar que o jovem Calvino não tem pretensões
teológicas nesse momento.
Avançando
Oort destaca o prefácio de Calvino à tradução da Bíblia em francês por seu
primo Robert Olivétan, onde cita Jerônimo, Crisóstomo e Agostinho e o elogio de
Eusébio a Panfílio de Cesaréia, em sua argumentação sobre a relevância de se
colocar a Bíblia à disposição do povo como antídoto para os falsos ensinos e as
heresias. Aqui Calvino faz uso apologético-teológico dos ensinos provindos dos
referidos autores.
Em sua
carta dirigida ao rei Francisco, quando da primeira edição das “Institutas”
(1536), Calvino faz uso dos patrístico como contra ponto às criticas produzidas
pelos eruditos católicos de que os ensinos dos protestantes era algo novo e que
eles desprezavam toda a herança bíblico-teológica dos Pais da Igreja. O teólogo
genebrino destaca que o testemunho dos antigos era favorável aos protestantes,
mas refutava sistematicamente as heresias romanas, por esta razão faz citações
de Acácio de Amida, Ambrósio, Serapião de Tmuis, Agostinho, Epifânio, Cipriano,
Apolônio. Ele explica esta sua posição:
Tínhamos que remover
a acusação de novidade que eles, de maneira insidiosa e injusta, trouxeram
contra nós; não era impróprio produzir passagens de escritores piedosos para
mostrar que a doutrina que agora entregamos não é outra senão a que era
recebida antigamente sem
controvérsia (Tracts and Treatises., II, p. 434, apud BUEHRER, 1967, p. 14).
Então Oort passa um pente
fino nas “Institutas” e destaca as muitas referências, de cunho apologético e
teológico que Calvino faz dos diversos patrísticos, de forma mais acentuada de
Agostinho, para enfatizar seus próprios argumentos. Por sua vez Leroy Nixon
quantifica as referências dos Pais na ultima edição das Institutas (1559) por
Calvino: “Agostinho 228 vezes, Gregório,
o Grande, 39 vezes, e Crisóstomo 27 vezes, juntamente com vários outros antigos”
(1963, p. 15, apud, BUEHRER, 1967, p. 11). Mas estas citações dos escritos
patrísticos, nas Institutas, são minimizadas quando as contrapõe em relação às
citações que Calvino faz das Escrituras na sua obra teológica magna: citou o
Antigo Testamento 2351 vezes e o Novo Testamento 3998 (McNEILL, 1959, p. 135, apud BUEHRER, 1967, p. 12).
Mas é importante reforçar
que o conhecimento e uso de Calvino da literatura patrística não foi no sentido
de copiar e colar o que aqueles estudiosos fizeram, mas de examinar e utilizar
desta vasta biblioteca tão somente aquilo que permanecia fiel ao pensamento
teológico-exegético defendido por ele e seus colegas reformadores. O fato de
Calvino ter citado inúmeras vezes Agostinho não significou que ele endossava
indiscriminadamente todo o pensamento agostiniano.
Seu senso crítico sempre
prevaleceu não somente quanto aos Pais da Igreja, mas de quaisquer outros
autores contemporâneos dele. Seu lema era de que todo o conhecimento dos
antigos ou contemporâneos era como servos e não senhores, pois o único Senhor é
Cristo, a quem se deve submeter em todas as coisas sem exceção.
Ele insistentemente advertia
seus ouvintes e leitores para que tomassem cuidado com interpretações
equivocadas dos pais, fossem não intencional ou proposital. A estima de Calvino
em relação a qualquer dos Pais em particular dependia da interpretação que este
fazia das Escrituras. Esse posicionamento não era novo, mas parece ter sido uma
prática comum, pois Wycliffe destacou nessa base Agostinho, Ambrósio, Jerônimo,
Gregório e Bernard (MALLARD, 1961,
p. 51-52, apud BUEHRER,
1967, p. 18).
Desta
forma, os dois extremos devem ser contestados: Calvino rejeitou todo vasto
conhecimento patrístico e Calvino endossou ou foi indiscriminadamente
influenciado pelos conceitos teológicos dos períodos anteriores. Tratando sobre
esta questão Irena Backus (1991,
p. 437) concluiu de forma sensata:
1. Calvino parece
maravilhosamente preciso em seu conhecimento e uso dos Padres, por um lado, mas
altamente seletivo por outro.
2. O uso dos pais por
Calvino é uma tentativa impressionante de relacionar o protestantismo do século
16 com a igreja dos primeiros séculos.
Anthony Lane, partindo do
fato que Calvino possuía uma formação jurídica, conclui que ele “cita os pais principalmente como testemunhas
da defesa, como autoridades às quais apelar. Por esse motivo, há muito mais
referências nos escritos de Calvino aos pais do que a figuras do final da Idade
Média ou do século XVI” (1999, p.3). Isto não significa que Calvino
deixasse de ler os patrísticos para edificação pessoal ou que fizesse citações
deles fora do contexto polemista.
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes,
Ivan Pereira
Mestre
em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro
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Historiologia
Protestante
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Calvino Singularidades: Pregando Até o Fim
Protestantismo: Os Quatro João (John) da Reforma
VERBETE – Pais Apostólicos
Referências
Bibliográficas
BUEHRER, Richard Lyle. John Calvin’s use of historical argument. The University of
Arizona, 1967.
CALVIN, Juan. Last
Admonition to Jachim W estphall, Tracts and Treatises., II, apud 434.
HUNTER, A. Mitchell. The
Teaching of Calvin. London: James Clarke & Co., 1950.
LANE, Anthony N. S. John
Calvin Student of Church Fathers. Edinburgh: A&C Black, 1999.
MALLARD, William. John Wyclif and the Tradition of Biblical
Authority. Church History, 30, 1961.
McNEILL, John T. The Significance of the Word of God for Calvin.
Church Historv 28 (June), 1959.
VAN OORT, Johnannes. John
Calvin and the Church Fathers. In: BACKUS, Irena (Ed.). The Reception of
the Church Fathers in the West: From the Carolingians to the Maurists. V. 1. Leiden,
New York: Koln, 1997.
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