A música sempre foi um instrumento
pedagógico fundamental para propagar uma mensagem. Na bíblia cristã
encontraremos o Saltério composto por 150 salmos e nos quais encontramos o
caminho para um relacionamento saudável e positivo com Deus. Jesus e seus discípulos
cantavam estes salmos; o apóstolo Paulo exorta seus leitores efésios para que
cantem hinos e salmos e cânticos espirituais deixam clara a importância da
música na liturgia cristã primitiva; ao longo dos séculos os cristãos
continuaram compondo suas músicas expressando sua fé e princípios bíblicos. Na
Reforma Religiosa e/ou Protestante do século XVI a música se faz presente,
principalmente com Lutero que além de incentivar a produção musical ele próprio
compôs um dos mais belos hinos reformado - Castelo Forte - que até hoje é
cantado nas igrejas reformadas.
O protestantismo
demorou quase trezentos anos para ser implantado no Brasil. Somente no final
dos oitocentos começaram a chegar os primeiros missionários de profissão de fé
reformada, dentre os pioneiros estão o casal Robert Reid Kalley e Sarah Poulton
Kalley, ele além de pastor/missionário era médico e ela professora, missionaria,
poetisa e musicista. Eles tiveram o cuidado e o privilégio de editar o primeiro
hinário de música protestante no país denominado de “Salmos e Hinos”. A
Primeira edição foi impressa na Tipografia Universal de Laemmert, em 1861, no
Rio de Janeiro, continha apenas 50 Cânticos e foi usado pela primeira vez em 17
de novembro de 1861(seis anos depois da chegada deles ao Brasil) em um culto na
Igreja Evangélica, que posteriormente agregou o nome Fluminense. Este hinário
foi utilizado por praticamente todas as denominações evangélicas protestantes
que aqui aportaram, dentre as quais os congregacionais, presbiterianos e metodistas[1]. Hoje
com mais de cento e cinquenta anos, e com mais de 500 hinos é considerada uma
das mais belas coleções de hinos já produzida para o seguimento
cristão-protestante do Brasil.
Tanto os hinos dos
reformadores quanto o hinário protestante em pleno país “católico” são
subversivos, pois sua mensagem confronta o status quo da maioria. No final dos
anos cinquenta e inicio dos anos sessenta uma parte dos evangélicos
protestantes, composta por uma ampla maioria de jovens anseiam por mudanças
profundas em suas respectivas denominações. Um dos instrumentos para manifestar
seus anseios e criticas às situações por eles contestadas é a música. Surge um
forte movimento musicista evangélico, onde teólogos e músicos se unem em
composições que incorporam a musicalidade brasileira ao canto cristão e cujas
letras expõem criticas à letargia teológica e à passividade político-social do
evangelicalismo nacional. Evidente que toda ação gera uma reação, ainda mais
que esta vigente no país um governo militar endossado pela maioria das
lideranças denominacionais brasileira. Essa nova musicalidade evangelical fica
então entre a cruz e o fuzil.
É neste contexto que
surge a letra e a música do cântico “Que estou fazendo se sou cristão”, letra
de João Dias de Araújo e música de Décio Emerique Lauretti. A letra contém um
forte tom de desafio e apelo para que os evangélicos assumam seu papel de
agente do Reino de Deus, embalada por uma melodia com sonoridade e ritmo
tipicamente brasileiro, distinto dos hinos tradicionais, cujas melodias eram
europeias ou americanas e que eram entoados repetidamente por mais de um século
nas reuniões litúrgicas protestantes confortavelmente inseridas no tecido
social-politico-econômico brasileiro, assim como Ló havia se inserido comodamente na
sociedade de Sodoma e Gomorra.
Letra: João Dias de Araújo[2]
Esse evangélico
protestante nasceu em 1931 na cidade e Campinas (SP), pois seu pai cursava
teologia no Seminário Presbiteriano. Posteriormente, década de quarenta, o
jovem retornaria à cidade para igualmente cursar teologia visando exercer o
oficio de pastor na Igreja Presbiteriana do Brasil.
Concluído
seu curso teológico e submetido aos procedimentos regimentais da IPB foi
ordenado pastoreando por sete anos a IPB de Itacira, no Presbitério de Campo
Formoso, no centro geográfico da Bahia, onde desenvolve um ministério pastoral
e docente de qualidade. Escritor profícuo torna-se articulista de diversas
publicações sendo que seu artigo sobre os Manuscritos encontrados na região do
Mar Morto foi o primeiro sobre esse tema a ser publicado em português por um
pastor nacional.
Recebeu
o convite do órgão maior da IPB, o Supremo Concílio, para assumir a cátedra de
professor de Teologia Sistemática e Ética Cristã no Seminário Presbiteriano do
Norte,[3]
localizado na cidade de Recife (PE),[4]
nos anos 50 e 60. Com o advento do Golpe Militar de 1964 foi classificado como
um teólogo revolucionário, sendo perseguido por seus próprios pares
presbiterianos e posteriormente exonerado de todas suas funções eclesiásticas na
IPB. Em seu livro “Inquisição Sem Fogueira”[5]
ele narra toda sua trajetória dentro da instituição Presbiteriana e os
acontecimentos anteriores e posteriores ao Golpe Militar no Brasil.
Em
1967, em pleno regime militar no Brasil, João Dias de Araujo, então com 36
anos, fazendo mestrado em Princeton, EEUU, foi desafiado pelo maestro João
Wilson Faustini a compor um hino que tratasse da realidade brasileira e desafiasse
os evangélicos a tomarem uma atitude bíblica diante da situação caótica do
país. Nasce então a letra do cântico “Que
estou fazendo?" conhecido mais pela primeira linha do poema "Que estou fazendo se sou cristão?”, que veio a ser inserido em diversos
cancioneiros denominacionais e gravado por diversos cantares evangélicos nacionais.[6]
A letra retrata o compromisso cristão contra a
injustiça e a opressão gerada pela desigualdade social. Como não poderia ser o
compositor sofreu muitas críticas por causa desta composição, tanto por
parte dos evangélicos como de outros segmentos sociais. Foi classificado como comunista,
de esquerda, e outros substantivos e adjetivos não declaráveis.
A letra abaixo citada na integra reflete com muita propriedade e de forma crítica a triste realidade social da
época, ao tratar da imensa população de pobres, ao enfocar uma salvação que
leva o indivíduo a ser parte do projeto divino que combate toda forma de
opressão e injustiça, trazia a lume os principais temas tão extraordinária e
apaixonadamente proclamada pelos profetas do Primeiro Testamento e certamente
seria cantado por Jesus e os cristãos do primeiro século, mas certamente, como foi
totalmente repudiado pela igreja institucionalizada e hedonista de ontem e de
hoje, que jamais permite sair de sua zona de conforto religioso-eclesiastico.
Música:
Décio Emerique Lauretti
Evangélico
presbiteriano nasceu aos 28 de novembro de 1950 em Casa Branca, uma pequena
cidade no interior de São Paulo, filho de Rogério Lauretti e Nilda Emerique
Lauretti. Entre seus parentes havia professores, pastores e escritores. A mãe
era organista da igreja presbiteriana, o pai, bancário, tocava violino e regia
o coral. A mãe lhe ensinou as primeiras notas ao piano, depois estudou com um
velho professor de Casa Branca.
A
família muda-se em 1962 para a capital paulista, nas proximidades da IPB da
Vila Mariana, na qual um tio era regente do coral. Aos treze anos entra para o
Coral Evangélico de São Paulo, ao quatorze começa a tocar os hinos nas reuniões
das quartas-feiras.[7]
Décio aos quinze anos tem suas primeiras aulas de órgão como o maestro
evangélico Samuel Kerr e também foi aluno de Ângelo Camin então organista do
Teatro Municipal de São Paulo.
Seu
‘primeiro e principal amor’ foi a música barroca, particularmente J.S. Bach. Mas
aos dezoitos anos é tomado pelo desejo de fazer música sacra com estilo e
sonoridade brasileira. Naqueles dias as musicas evangélicas eram todas
traduzidas do inglês.
Inicia
suas experiências musicais com os poemas de Gióia Jr. utilizando os ritmos de
samba, baião, cantigas bem brasileiras. Uma das maiores incentivadoras desta
iniciativa de se produzir musica evangélica à brasileira foi a missionária
presbiteriana Norah Buyers de indiscutível capacidade musical. De iniciativa
dela foi publicada a coletânea “Nova Canção”, pela Imprensa Metodista, com 13
composições de Décio Lauretti.
Em
1971 produziu uma Cantata de Natal, com acompanhamento de órgão e percussão,
onde pela primeira vez se viu atabaque, triangulo, agogô acompanhando musicas
evangélicas nos templos. Na Páscoa de 1973 compõe uma Cantata cujas letras
tecem fortes criticas social no auge do Regime Militar.
Mas
será somente em 1974 que ele vai tomar contato com a letra produzida por João
Dias. Imediatamente se identifica com a composição e opta por uma sequencia barroca
harmônica utilizando um ritmo brasileiro, o baião. Ele mesmo narra como
aconteceu o contato e musicalidade do hino:
... os textos de Rubem Alves (ainda hoje um
amigo querido), os textos de John Robinson, Tillich, Bonhoefer e tantos outros
sedimentaram em mim uma visão menos conservadora do que a então vigente na
Igreja Presbiteriana do Brasil, tornando incômoda minha permanência na instituição.
Passamos a freqüentar igrejas mais pobres, ligadas ao Presbitério São Paulo, dissidente da IPB. Levávamos ‘nossa música’ para outros lugares para outras denominações. Atuávamos na ABU (Aliança Bíblica Universitária), onde fiz amizade com anglicanos, católicos, etc.
A música “Que estou fazendo” é produto da época da ditadura militar. Tomei conhecimento do poema do Rev. João Dias de Araújo e fiquei muito impressionado pela firmeza das suas palavras. Pregava um cristianismo engajado na luta contra as injustiças, distante da religião enclausurada nos templos, que busca a ‘salvação da alma’ e ignora o corpo, especialmente os corpos dos desfavorecidos. Decidi musicá-lo, optando por uma sequência harmônica barroca num ritmo brasileiro, o baião.
Passamos a freqüentar igrejas mais pobres, ligadas ao Presbitério São Paulo, dissidente da IPB. Levávamos ‘nossa música’ para outros lugares para outras denominações. Atuávamos na ABU (Aliança Bíblica Universitária), onde fiz amizade com anglicanos, católicos, etc.
A música “Que estou fazendo” é produto da época da ditadura militar. Tomei conhecimento do poema do Rev. João Dias de Araújo e fiquei muito impressionado pela firmeza das suas palavras. Pregava um cristianismo engajado na luta contra as injustiças, distante da religião enclausurada nos templos, que busca a ‘salvação da alma’ e ignora o corpo, especialmente os corpos dos desfavorecidos. Decidi musicá-lo, optando por uma sequência harmônica barroca num ritmo brasileiro, o baião.
Por
sugestão de seu primeiro Secretário Geral o Rev. Jaime Wright, quando da
fundação oficial da Igreja Presbiteriana Unida (IPU), uma ruptura da Igreja
Presbiteriana do Brasil, a letra do Rev. João Dias com a melodia de Décio
Lauretti tornou-se o hino oficial da
instituição, de maneira que a canção assumiu uma proporção nacional. Quando foi fundada a Igreja Presbiteriana Unida
(IPU), seu primeiro Secretário Geral foi o Rev. Jaime Wright. Por sugestão
dele, o poema do Rev. João Dias de Araújo com a
melodia de Décio Emerique Lauretti tornou-se
o hino oficial da instituição, o que foi determinante para a sua ampla difusão
no país.[8]
Atualmente
esta canção aparece em hinários de várias Igrejas evangélicas. Sua letra e
música continuam vivas e atuantes e certamente seria de grande valia se os
evangélicos brasileiros pudessem canta-la e vivencia-la. Certamente é disso que
o Brasil necessita urgentemente, de um evangelicalismo sintonizado com a
realidade do país e dispostos a encarnar o Evangelho vivo e vivificante de
Jesus Cristo.
Que estou
fazendo?
1. Que estou fazendo se sou
cristão?
Se Cristo deu-me o seu
perdão?
Há muitos pobres sem lar,
sem pão,
há muitas vidas sem
salvação.
Meu Cristo veio p'ra nos
remir:
o homem todo, sem dividir,
não só a alma do mal
salvar,
também o corpo ressuscitar.
2. Há
muita fome no meu país,
há tanta
gente que é infeliz,
há
criancinhas que vão morrer,
há tantos
velhos a padecer.
Milhões
não sabem como escrever,
milhões
de olhos não sabem ler.
Nas
trevas vivem sem perceber
que são
escravos de outro ser.
3. Aos poderosos eu vou
pregar,
aos homens ricos vou
proclamar
que a injustiça é contra
Deus
e a vil miséria insulta os
céus.
Meu Cristo veio p'ra nos
remir:
o homem todo, sem dividir,
não só a alma do mal
salvar,
também o corpo ressuscitar.
link para áudio
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre
em Ciências da Religião.
Universidade
Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro
Blog
Reflexão Bíblica
http://reflexaoipg.blogspot.com.br/
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Presbiterianismo no Brasil
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contribuição na educação no Brasil
Referências Bibliográficas
Nos
artigos relacionados acima o leitor encontrara ampla bibliografia sobre o período
e temas mencionados no transcorrer do artigo.
[1] Posteriormente cada denominação foi,
a partir do “Salmos e Hinos”, elaborando seus próprios cancioneiros dentro de
suas respectivas vertentes teológicas.
[2] O Rev. João Dias de Araújo foi
teólogo, advogado e hinógrafo, um dos fundadores da Igreja Presbiteriana Unida
do Brasil, uma dissensão da Igreja Presbiteriana do Brasil na década de 1980. Foi
fiel colaborador de todos os organismos ecumênicos mundiais (CLAI e CMI). Exerceu
boa parte do seu tempo pastoral junto a Igreja Presbiteriana em Feira de
Santana, Bahia. Fez pós-graduação no Seminário Teológico de Princeton, nos
EE.UU. da América, e bacharelou-se em Direito, em Recife. Assumiu como diretor
do Colégio 2 de Julho, em Salvador, BA, talvez o educandário evangélico mais
conhecido no nordeste do País. Muito conhecido como conferencista e professor
de Bíblia, em 1982 foi responsável por um novo projeto de educação teológica
para leigos no Estado da Bahia. Publicou vários livros. Faleceu no dia 9 de
fevereiro de 2014.
[3] Naquele momento a IPB tem apenas dois
Seminários o de Recife (Norte) e o de Campinas (Sul). Um terceiro será
instalado nas comemorações do primeiro Centenário do Presbiterianismo no
Brasil, mas ironicamente o Seminário do Centenário não durará nem ao menos uma
década, pois será fechado pela direção da IPB.
[4] Não por acaso a quarta e infelizmente
a última das Consultas promovidas pelo Setor de Responsabilidade Social da Confederação
Evangélica do Brasil (CEB), nominada de Conferência
do Nordeste, foi realizada na cidade de Recife, que naquele momento era um
triste modelo de toda sorte de miséria e abandono das políticas públicas, que
se multiplicava em toda geografia brasileira. Foi realizada em 1962, portanto imediatamente após a
industrialização promovida por JK e às portas do golpe militar que ocorreria em
1964, e esta Conferência trazia um
tema explosivo naquele momento histórico, “Cristo
e o Processo Revolucionário Brasileiro”.
[5] Link para o livro em pdf - file:///C:/Users/Windows/Downloads/Inquisicao_sem_fogueiras.pdf
[6] Abaixo da letra completa do hino está
o link para uma das suas diversas gravações.
[7] Ele recorda: “Toquei numa igreja pela
primeira vez no jubileu de 50 anos de pastorado de meu avô materno Theodomiro
Emerique. Eu tinha seis anos de idade, minha mãe sentou-me ao seu colo no
harmônio da igreja e, com ela pedalando os foles, toquei um hino dos ‘Salmos e
Hinos’ que ela havia me ensinado.”
[8] Há poucos anos, a música foi incluída
na Campanha da Fraternidade da Igreja Católica Romana, sendo distribuída nas
igrejas em texto e gravada em CD.
Há uma incorreção histórica no texto. O Rev. Jaime Wright foi mesmo o primeiro Secretário Geral da IPU, porém, a proposta para esse fosse o hino da IPU foi feita pelo Rev. Márcio Moreira, pastor da II Igreja Presbiteriana de Belho Horizonte, na Assembleia da IPU realizada em 1985. E foram oficializadas as duas versões, a primeira, um negro "spiritual", com a melodia de João Wilson Faustini, e a segunda, com a melodia de Décio Lauretti.
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