Desde sua ascensão ao trono francês, Francisco
I estava envolto em grandes expectativas. Seu propósito maior foi sempre
alcançar a unidade do reino. Aqui temos os primeiros movimentos do que veria
ser denominado absolutismo monárquico, que vai se solidificar sob o reinado de
Luís XIV.
A vitória de Francisco I na Batalha de
Marignano (1515), onde as forças suíças foram drasticamente derrotadas, deu-lhe
a posse do Ducado de Milão, e o Papa de plantão Leão X foi forçado aceitar os
termos da Concordata de Bolonha,[1] pela qual Francisco foi
autorizado a exercer uma influência direta sobre a igreja francesa.
Em 1519, Francisco I tornou-se candidato ao
trono imperial do Sacro Império Romano-Germânico, entretanto os eleitores, optaram
pelo jovem rei da Espanha, que com o nome de Carlos V se tornou o arquirrival
natural do trono francês. Para rivalizar o poder espanhol o rei francês
apadrinha o movimento protestante alemão.
A partir daí, a Europa vira palco de disputa de
poder hegemônico entra Madri e Paris. Mas isso não pode ser feito sem os
efeitos colaterais: derramamento de sangue; multiplicação da miséria, e o lucro
exorbitante dos verdadeiros detentores do poder os banqueiros. As intermináveis
guerras subsequentes (1519 e 1558) sustenta os sanguessugas da diplomacia. A
posição da sé papal parecia um camaleão mudando e se adaptando a cada nuança de
mudança dos lados (não há nada de novo debaixo do sol). Inicialmente o rei francês
ganhou o apoio papal. O imperador, então, acuado tinha que agir com muita
prudência e não provocar um esvaziamento ainda maior de seus aliados, o que o
forçou a não reagir brutalmente contra os chamados reformadores alemães, que
haviam endossado as teses reformistas de Martinho Lutero.
Por sua vez quando Francisco sofreu a derrota
na Batalha de Pavia (1525)[2] e foi levado como
prisioneiro de guerra para Madri, os católicos predominantes na Sorbonne e no
Parlamento de Paris se aproveito do vácuo de poder real e acionaram medidas
radicais contra o jovem movimento protestante francês que será denominado de
movimento huguenote[3].
Em um esforço para não perder o apoio dos
príncipes alemães Francisco tenta atrair Philipp Melanchthon, companheiro de
Lutero e posterior sucessor na liderança da reforma alemã, para o seu lado, mas
tudo indicava que as intenções do rei eram o oposto: a perseguição contra os
reformados franceses era crescente e cada vez mais belicosa; paralelamente ele
mantinha intensa comunicação com os turcos. Mais do que suas palavras as suas
atitudes revelavam que a única preocupação dele era com a unidade política da
França nos moldes do romanismo.
Quando o Imperador Carlos V propõe um grande Concílio
Ecumênico para resolver as questões religiosas, Francisco de opõe
veementemente, pois temia a influência de Carlos. O Papa de plantão também não
se entusiasmou, restando ao Imperador tentar minimizar o problema através de sucessivos
colóquios religiosos, mas sem o peso das imposições de um Concílio, os efeitos
concretos eram nulos. No que tange as questões da religião na França, no
entanto, a política europeia ditava a agenda de Francisco.
O posicionamento de Francisco I quanto
ao movimento da Reforma tem que ser compreendido no contexto da Igreja francesa
ao final da Idade Média. Em 1438 um sínodo francês sob Carlos VII aprova a
Pragmática Sanção de Bourges, que dava poderes ao rei não apena para nomear
bispos, mas também lhe concedia a autoridade de cobrar impostos sobre as rendas
das igrejas. Estas leis vieram a fomentar o Conciliaríssimo[4] se opondo ao sistema prevalecente
onde o Papa era soberano nas nomeações.
Este movimento chamado de galicanismo (Gália
nome antigo da França) tornou a igreja francesa mais ou menos independente da
sé papal. Esse será o caminho tomado posteriormente por Henrique VIII de
Inglaterra e será também utilizado pelo Papa para manter a fidelidade dos
reinos de Portugal e Espanha.
Em 1516, após a vitória em Marignano, Francisco
I entra em Concordata com o Papa Leão X (Bolonha) de maneira que os direitos
dos reis da França e a independência da igreja francesa foram ratificados. Mas
o remendo ficou pior do que o rasgado. A igreja francesa entra no caminho da
decadência. Francisco I nomeia toda sorte de aliados, fazendo da igreja um
escancarado balcão de negócios lícitos e ilícitos, morais e imorais. Da mesma
forma que a igreja era um instrumento de poder papal, agora torna-se um
instrumento da realeza francesa.
A relação simbiótica entre a realeza e o
parlamento em concluo com a Universidade (Sorbonne)[5] criará um sistema
inquisitório implacável em relação ao movimento reformado francês, em nome de
uma defesa da ortodoxia religiosa católica. O movimento pendular de Francisco I
era sempre em relação aos seus ambiciosos projetos pessoais. As Teses de
Martinho Lutero foram rejeitadas explicitamente e 104 delas em particular. O
Parlamento com anuência do rei, em 15 de abril de 1521, publica um decreto de que
nenhum livro sobre as Escrituras ou a religião cristã poderia ser publicado sem
o consentimento da Faculdade.
Em junho de 1523, os doutores teológicos exigem
que as autoridades queimem em local público os escritos de Lutero (FARGE, 1985,
p. 125-165). Ao defender a doutrina pura, a Sorbonne tinha um ar de quase
infalibilidade. De 1520 a 1534, Noel Beda[6] atuou como líder da
faculdade teológica-anti-humanista e fortemente antagônico aos métodos
exegéticos desenvolvidos pelos reformadores protestantes, que tinham como
premissa inegociável o estudo do texto original das Escrituras. Ele lutou
arduamente contra aqueles que simpatizavam com Erasmo e Lutero. Uma de suas
vítimas foi Louís de Berquin, que em 1529 foi queimado na fogueira por suas
defesas contundentes das teses de Erasmo e dos Reformadores.
Mas enquanto Francisco I se esforçava por
atrair o apoio dos príncipes alemães, em 1535 o Parlamento Francês mandava para
a fogueira trinta e cinco “luteranos” no mês de janeiro. A ambiguidade do rei
era seu calcanhar de Aquiles.
Uma luz que brilha intensamente em
meio às trevas da arrogância e ganância das instâncias acima mencionadas, é a
figura da irmã de Francisco I, Margarida (1492-1549) que reinou em Navarra
(1527-49). Ela amava a cultura e apoiava os humanistas e acolheu muitos reformistas
que tinham que fugir da França mediante as atrocidades praticadas contra eles.
Além de ter providenciado abrigo aos apoiadores
de Lutero que estavam sendo presos, ela acolheu o próprio João Calvino quando
ele precisou fugir da França como refugiado e que depois foi para Genebra,
devido às perseguições impostas pela liderança da Igreja Católica. Todavia,
quando sua filha, Jeanne d'Albret torna-se uma líder huguenote (calvinista francês)
se criou um distanciamento entre mãe e filha.
A paixão de Francisco I pelo movimento
Renascentista sempre foi mais aparente do que real seu desejo de uma genuína
reforma religiosa dentro dos limites católico romano, mas acabou sendo um fator
motivador que levou ao menos dois expoentes da Reforma a tentarem influenciá-lo.
Ulrich Zwínglio dedicou seu “De vera et
falsa religione commentarius” (março de 1525)[7] ao rei francês, no esforço
de usar o humanismo como ponte para conduzir o monarca ao verdadeiro evangelho.
De modo semelhante João Calvino também tentou capitalizar
o apreço humanista-religiosa que ele viu em Francisco I e lhe escreve uma longa
carta que serviu como dedicatória “Epistoloa nunculatoria” ao rei de sua
obra magna as Institutas da Religião Cristã de 1536. Calvino aproveita para
defender os reformistas protestantes de várias falsas acusações, como por
exemplo, de serem revolucionários anarquistas.
Se de fato existia alguma sinceridade
no rei de que houvesse uma reforma eclesiástica ao menos na França, não passaram
de lampejos, pois sua história repleta de pequenos avanços e longos retrocessos
foi escrita com muito sangue de mártires huguenotes.
Utilização livre
desde que citando a fonteGuedes, Ivan PereiraMestre em Ciências
da Religião.Universidade
Presbiteriana Mackenzieme.ivanguedes@gmail.comOutro BlogReflexão Bíblica
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Referências
Bibliográficas
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Français), 1869, Vol. 18, No. 6 (1869), pp. 257-268. Published by: Librairie
Droz Stable URL: http://www.jstor.com/stable/24285378.
[1] Foi um tratado
assinado em 1516 entre o Rei da França Francisco I da França e o Papa Leão X.
Desta forma aumenta substancialmente o poder da coroa francesa sobre a igreja,
concedendo ao monarca francês o direito de indicar os bispos e outras
autoridades eclesiásticas, além de também poder usar as rendas dos bispados e
abadias vagos (galicanismo). Os portugueses haverão de fazer o mesmo em relação
ao Reino Português e no período da gestão política de Pombal foi utilizado em várias
situações envolvendo por exemplo a expulsão dos jesuítas e o princípio de
mudanças na política educacional brasileira, o que possibilitara uma forte
influência de viés protestante no Brasil a partir do final dos oitocentos, com
a chegada dos primeiros missionários estadunidenses e suas propostas
educacionais.
[2] A Batalha de Pavia, ocorrida na manhã
de 24 de fevereiro de 1525, foi um acontecimento decisivo para a chamada Guerra
Italiana de 1521-1526.
[3] Um termo alemão “Eidgenosse”, que
significa “companheiro de juramento”.
[4] A forma eclesiástica que considera que
o concílio ecumênico ou Universal como a autoridade maior da Igreja, limitando
os poderes supremos do papado.
[5] Esta Universidade que em período
anterior (desde século XIII) havia gozado de prestígio em toda a Europa, com
doutores como Aquino, Boaventura, Duns Scotus, Guilherme de Occam, d'Ailli e
Gerson, vinha entrando em decadência acadêmica desde o início do século XVI.
[6] Foi professor de teologia e reitor da
faculdade de teologia da Sorbonne. Fico conhecido principalmente por sua luta
feroz contra os pensadores humanistas da Renascença e posteriormente do
movimento da Reforma Protestante.
[7] “Comentário sobre a verdadeira e a
falsa religião”, onde rejeitava o caráter sacrificial da missa, a salvação
pelas obras, a intercessão dos santos, a obrigatoriedade dos votos monásticos,
a existência do purgatório.
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