Poucos sãos as pessoas que tem a
oportunidade de escrever sua própria história. O velho diário, como a da menina
judia Anne Frank e o do missionário presbiteriano A. G. Simonton foi e ainda
continua sendo uma ferramenta preciosa para se registrar os acontecimentos marcantes
da vida, mas os brasileiros não incorporaram essa cultura e raríssimos entre
nós tem esse zelo literário. A nossa tradição histórica sempre foi a
transmissão oral, de maneira que ouvimos e repassamos o nosso conhecimento
histórico através dos “causos” que avós e pais nos relatam ao redor da mesa, a
televisão já tinha roubado grande parte dessa cultura e com a “inclusão
(invasão) digital” perdemos definitivamente essa extraordinária cultura oral e
caímos no silêncio da ignorância. Os brasileiros correm seriamente o risco de
se tornarem pessoas sem história.
A importância do livro de Enos Moura
(pai) como ele gosta de frisar, é uma dessas raras oportunidades de adquirirmos
conhecimento histórico através dos “causos” por ele compartilhado, graças a
Deus na forma escrita, ainda que passar horas conversando com ele seja algo
além de prazeroso bastante interessante e instrutivo para aqueles que são
apaixonados pela história de forma geral e em particular do protestantismo no
Brasil.
Enos é uma testemunha ocular viva de quase cem anos da
história protestante brasileira e por sua origem nordestina ele nos proporciona
uma rara oportunidade de tomarmos conhecimento de fatos e personagens do
protestantismo pioneiro, ou seja, na sua implantação e consolidação no país. O
seu amigo e historiador Alderi de Matos sintetiza na orelha a importância desse
livro: “É palpitante acompanhar a
caminhada de sua família por várias gerações, desde os bisavôs já distantes no
tempo, passando pelo avô e pelo pai pastores e por uma infinidade de outros
personagens que marcaram, e marcam ainda hoje, a sua peregrinação”.
Sublinhei a expressão “infinidade de outros personagens”
porque realmente expressa a riqueza do conteúdo deste Baú crônico-historiográfico.
Em cada uma de suas crônicas o autor vai abrindo o leque e nos apresentando os
mais diversos personagens que demarcaram a historiografia protestante
brasileira nos últimos oitenta anos. Ele teve contato pessoal desde
missionários pioneiros como o Rev. John Rockwell Smith até aqueles que ainda
hoje continuam influenciando a história do presbiterianismo brasileiro como o
Rev. Roberto Brasileiro, atual presidente do Supremo Concilio.
Enos é privilegiado, pois participou indireta e
diretamente dos grandes movimentos intestinos do presbiterianismo brasileiro.
Apesar de serem em forma de crônicas, curtas bem ao gosto popular brasileiro,
ele polvilha em cada uma delas informações precisas e vivenciais destes
movimentos. Não se omite em expressar suas opiniões e contestações dos fatos
por ele registradas, pois esse sempre foi seu jeito de vivenciar sua fé e
defender seus pontos de vistas, mas que torna a leitura dos textos instigante e
reflexivos.
Outro aspecto peculiar é o fato de que grande parte de
sua vida e, portanto dos textos aqui apresentados é pela ótica do leigo, visto
que sua ordenação, que merece um adendo à parte, ocorre apenas em 1980 aos 36
anos de idade, de maneira que trabalhando em diversas empresas, sendo que por
25 anos na EMPETUR (Empresa de Turismo de Pernambuco) e tendo a oportunidade de
viajar por diversos países adquiriu uma cosmovisão muito além de uma
eclesiologia feudal, o que lhe proporcionou a capacidade de interagir de forma
positiva com os mais diversos segmentos social-político-eclesiástico do período
histórico por ele aqui abordado.
Dentre todas as suas múltiplas atividades eclesiásticas ao
longo de sua vida, certamente sua atuação na e junto a juventude presbiteriana
é a mais marcante. Desde seus doze anos (1956) ele participa efetivamente da
caminhada da mocidade presbiteriana (União de Mocidade Presbiteriana-UMP).
Participou do apogeu do trabalho da juventude presbiteriana, sofreu
terrivelmente com o fechamento da Confederação Nacional pelo Supremo Concílio (maio
de 1960 – portanto, antecedendo o Golpe Militar no país) e pela qual gastou e
se deixou gastar pela reorganização da Nacional dos jovens presbiterianos que
somente veio a ocorrer em 1986 com a realização do “X Congresso Nacional da
Mocidade Presbiteriana”, ou seja, 26 anos depois. Durante esses anos e ainda hoje na maturidade
de seus mais de setenta anos, Enos continua interagindo com a Mocidade
Presbiteriana. Ele compartilha conosco nessas crônicas todos esses movimentos internos
da juventude presbiteriana e proporcionando uma oportunidade para refletirmos
sobre o que fomos e o quanto estamos longe de sermos aquilo que já fomos um dia.
A questão de sua ordenação na IPB ocupa três crônicas e realça
a forma retrógada do pensamento presbiteriano no período pós-regime militar.
Ele havia concluído o curso teológico, iniciado no Seminário Teológico
Presbiteriano de Recife, mas concluído em São Paulo na Faculdade de Teologia da
Igreja Episcopal do Brasil em 1969. Foi encaminhado pelo Conselho da IPB
Ebenézer ao Presbitério Norte de São Paulo, que se reuniria em um sítio em Mogi
das Cruzes. No transcorrer da reunião conciliar um bilhete assinado por dois “conceituados”
pastores cujo teor era “Não ordenem esse
rapaz, ele é perigoso” e essa alcunha foi suficiente para impedir sua
ordenação na IPB. Em 1980, em um encontro com o Rev. Mozart Noronha então
moderador da Assembleia Geral da Igreja Cristã de Confissão Reformada, com sede
no Rio de janeiro, foi convidado por este para se apresentar como candidato e
ser ordenado por essa denominação protestante. Após cumprir todos os requisitos
eclesiásticos exigidos pelo Concílio sendo aprovado foi ordenado no sábado dia
23 de novembro de 1980, tendo a parênese pelo Rev. Jonas Neves Rezende, tendo o
templo da Igreja Cristã de Ipanema repleta como testemunha e tendo o Rev. Rubem
Alves participando da cerimônia colocando-lhe a Estola Sacerdotal. Pouco tempo
após foi recebido por transferência na IPB através do Presbitério de Pernambuco
e foi fazer parte do colegiado de pastores da IPB das Graças, após longos onze
anos entre a formação teológica e a ordenação.
Minhas duas últimas observações sobre esse “Baú” é que as
crônicas são concisas e em uma linguagem extremamente agradável tanto para
aqueles que não são da área de história, mas certamente preciosa e bastante útil
para todos aqueles que estudam a história do protestantismo brasileiro e
particularmente aos presbiterianos, que haverão de adquirir um vasto
conhecimento da intimidade dessa denominação do protestantismo histórico
nacional. Quem dera os pastores e membros da IPB lessem esse “Baú” e fizessem
um exercício de reflexão histórica aprendendo com seus erros e acertos para
virmos a ser uma igreja melhor e mais coerente com os princípios evangélicos
que teoricamente tanto zelamos (lembrando que os fariseus e escribas eram os zeladores
da Torá nos dias de Jesus).
Minha última nota e propositalmente deixei para o final
são as dezenas e provavelmente uma centena de fotos e imagens preciosas para
qualquer historiador ou curioso dos fatos concorridos no protestantismo brasileiro
ao longo de quase um século. De todas destaco apenas duas fotos que são
bastante representativos da relevância de todas as demais imagens contidas
nesse precioso “Baú do Enos”. A primeira esta na página 177 e trás o cinquentagenário
Rev. Harold Cook examinando com uma lupa se a secretária havia marcado
corretamente o seu voo de retorno, após participar do Supremo Concílio reunido
em Recife em julho de 1978. A segunda imagem é o momento de sua ordenação quando
o então excluído do rol de membros da IPB e exilado político Rev. Rubem Alves
lhe coloca a Estola Sacerdotal em 1980 (p. 193).
E para aqueles que desejam conhecer o desenvolvimento das
atividades da juventude presbiteriana, principalmente após a reativação da sua
Confederação Nacional, encontrará nesse “Baú” preciosas informações de quem não
apenas ouviu falar, mas por alguém que vivenciou e continua vivenciando
intensamente as atividades da juventude presbiteriana no Brasil.
MOURA, Enos. Do baú do Enos pai. 1ª ed. São Paulo: PoloBooks, 2018. 364p.
Bibliografia
do Autor
MOURA,
Enos. Do baú do Enos pai. 1ª ed. São
Paulo: PoloBooks, 2018. 364p.
____________.
Do amor por uma Tocha. Edição do autor, 2016.
SILVA,
Hélerson, MOURA, Enos e MORAES, Mônica. Eu
faço parte desta história. São Paulo: CEP, 2002. [Secretaria de Cultura –
Comissão de História da Mocidade – da Confederação Nacional da Mocidade da Igreja
Presbiteriana do Brasil].
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