A
tradição legada pelos norte-americanos e
as igrejas luteranas
Não
é possível entender o acervo dos hinários, que seriam publicados para uso nas
igrejas protestantes brasileiras, muitos dos quais ainda recentemente em uso,
sem que se pesquisem o expansionismo missionário americano e a teologia que
estavam por trás deles. Para isso, tem-se que remontar às igrejas protestantes
da América do Norte do século XIX e seu empenho pela expansão missionária. Os americanos
criam que a vinda do Reino de Deus estava próxima, mas isso só ocorreria depois
que a sociedade fosse cristianizada, o que intensificou a colaboração
interdenominacional, principalmente entre os que possuíam a teologia legada do
movimento avivalista. Reuniram o desejo de alcançar todos os povos
"pagãos" ao movimento avivalista, que apelava à conversão imediata.
Isso levou à ideologia do "Destino Manifesto":
O
mesmo comissionamento outorgado aos judeus através de Abraão se transferia
agora para os americanos num messianismo nacional direcionado para a redenção
política, moral e religiosa do mundo. (...) Pelo menos no século XIX, o melhor
e mais eficiente condutor da ideologia do "Destino Manifesto" foi a
religião americana, ou melhor dizendo, o protestantismo americano com a sua
vasta empresa educacional e religiosa, que preparou e abriu caminho para o seu
expansionismo político e econômico.
Instaurou-se
no protestantismo americano, como consequência de controvérsias teológicas, uma
forte tendência conservadora, fechada a mudanças, quer fossem sociais, quer
eclesiásticas. Esse conservadorismo caracterizou-se pela ênfase na autoridade,
por formulações teológicas sistemáticas e objetivas (escolasticismo), pelo
pietismo e apocalipsismo, tendências que revelavam a teologia avivalista
associada ao sentimentalismo romântico da época. Essas tendências teológicas
iriam aparecer nos conteúdos dos hinários que seriam traduzidos e adaptados
para o Brasil e demais campos missionários dos americanos.
Em
razão dos fatos apontados, a grande maioria dos missionários protestantes
americanos que atuou no Brasil, na segunda metade do século XIX, acabou
implantando no país a Era Missionária. Uma das exceções foi o casal Robert e
Sarah Kalley, que veio fugido da perseguição religiosa na Ilha da Madeira, em
Portugal. Os protestantes brasileiros devem a esse casal a organização do
primeiro hinário protestante, que se chamou Salmos e Hinos. A primeira edição
desse hinário, sem música, continha 18 salmos e 32 hinos e foi publicada em
1861, no Rio de Janeiro:
Como
é natural, e assim se verificou tanto no Catolicismo quanto no Evangelismo em
nossa Pátria, a maior parte das peças sacras de início entoadas nos serviços
religiosos foram aquelas pertencentes ao repertório internacional.
Traduziram-nas para o português o Dr. Roberto [sic] Reid Kalley e D. Sara [sic]
Poulton Kalley, plantando, assim, os marcos iniciais da hinologia evangélica no
Brasil (...).
As
observações feitas pelo casal escocês acerca dos hinos da primeira edição revelam
suas preocupações com o canto no culto e denotam o caráter didático da
publicação. Entre outras "advertências", destacam-se: o cuidado na
escrita musical (na pauta superior vinham o soprano e o contralto, a primeira
voz com haste para cima e a segunda com haste para baixo; da mesma forma vinham
arranjadas as vozes masculinas, na pauta inferior), a instrução de não se
acrescentarem notas não grafadas em pauta, de haver solenidade e reverência no
canto, mas sem necessidade de pronunciar muito lentamente as palavras, e de se
dar mais atenção às palavras do que à música. Tudo isso resultaria em um
"perfeito louvor".
A
segunda edição possuía a partitura e foi editada em Leipzig, na Alemanha, em
1868, contendo 76 hinos. Tanto D. Sarah quanto o Dr. Robert compuseram hinos
próprios, os quais adicionaram ao legado hinológico dos séculos XVIII e XIX. O
hinário foi publicado em sucessivas edições, sempre aumentado no seu acervo. Antônio
Mendonça viu nessa coletânea quatro características que definem uma ênfase teológica
alicerçada nos hinos de apoio à pregação conversionista: o individualismo
(hinos escritos na 1ª pessoa do singular), o voluntarismo (o apelo a uma
decisão), a pedagogia e o emocionalismo pietista. Ressalte-se o fato de que o
casal Kalley contribuiu decisivamente para o fortalecimento do canto sacro no
Brasil não somente através da hinologia, mas ainda através de uma classe de
música, a qual funcionou por muito tempo.
De
procedência norte-americana, o Rev. Ashbel G. Simonton realizou o primeiro
culto da Igreja Presbiteriana no Brasil em 19 de maio de 1861, igreja
organizada oficialmente no ano seguinte. O trabalho desse missionário foi
frutífero. Fundou, além da igreja, o primeiro jornal evangélico no Brasil e um
seminário teológico. Em 1867, sob as iniciais A.J.S.N., Antônio José dos Santos
Neves publicou a coleção Cânticos Sagrados, tendo colaborado com letra para 12
hinos. A fonte musical desses hinos encontrava-se nos autores da escola
romântica, com exceção de um hino de Haydn.
A
primeira missão metodista foi fundada no Brasil em 1836 e durou até 1841, sendo
seu primeiro missionário Justin Spaulding, que logo organizou uma Escola
Dominical e uma escola de ensino regular, mas o trabalho não teve continuidade.
Somente com a vinda do missionário Junius E. Newman, que chegou ao Brasil em
1867, foi fundada, quatro anos mais tarde, a primeira Igreja Metodista em
Saltinho, São Paulo. Escrevendo aos amigos metodistas do sul dos Estados
Unidos, a quem sugeria virem morar no Brasil, Junius Newman celebrava a liberdade
de culto e tecia comentários sobre a tradição hinódica que seria adotada:
A
liberdade religiosa aqui, na prática, é quase tão completa como nos Estados
Unidos e, legalmente, mais ou menos como na Inglaterra. (...) aqui acharão
"liberdade para adorar a Deus". (...) Aqui também erguerão firmemente
a bandeira do nosso cristianismo protestante e cantarão os doces cânticos de
Sião, como antes, na sua terra natal. E ainda que a linda mangueira, com seus
largos ramos e agradável sombra seja, temporariamente, sua única casa de
adoração, mesmo assim se reunirão para adorar a Deus, e os hinos de Watts e
Wesley serão cantados no Brasil, como em outras terras.
Os
metodistas contribuíram para a hinódia brasileira através de missionários como
Justus H. Nelson e Benjamin Nind, que cooperaram com a tradução dos versos em
inglês para o português. Juvêncio Mello, missionário junto aos índios ipurinãs,
no Amazonas, foi autor e adaptador de hinos para a língua desses índios, num
esforço de catequese.
Os
batistas dos Estados Unidos também enviaram um missionário ao Brasil em 1871,
mas somente com William B. Bagby e Zachery C. Taylor, fundadores da primeira
igreja Batista em solo nacional, na Bahia, em 1882, o trabalho permanente
prosperou. No início desse trabalho, o hinário usado era o Salmos e Hinos, até
que, em 1891, por iniciativa particular de Salomão Ginsburg, judeu russo
convertido ao cristianismo, surgiu o Cantor Cristão (CC), mas que só em 1924
apresentaria edição com música. Ginsburg colaborou com 70 hinos, entre traduções,
adaptações e obra própria.
Os
episcopais tentaram, na segunda metade do século XIX, fundar o seu trabalho em
solo brasileiro duas vezes, sendo todas as tentativas infelizes: a primeira em
1853, no Rio de Janeiro, por iniciativa de um americano que por lá residia, e
em 1861, com a vinda do pastor Richard Holden, que cooperou com o casal Kalley.
O trabalho só foi implantado oficialmente com os missionários norte-americanos
James W. Morris e Lucien Lee Kinsolving, que, no dia 1º de junho de 1890, iniciaram
cultos em Porto Alegre. A Paróquia da Trindade, no centro da cidade, passou a
ser o centro da Igreja Episcopal a partir de 1898. Logo outras cidades do
interior gaúcho foram alcançadas pelos episcopais, como também a cidade do Rio
de Janeiro e os estados de Santa Catarina e São Paulo. A tradição musical dessa
igreja foi fomentada pelos coros, tanto em nível de paróquias quanto em
orfanatos, escolas e no Seminário Teológico, fundado em 1903 na cidade de Rio
Grande, mas transferido para Porto Alegre em 1920. Os episcopais valeram-se da
coleção Salmos e Hinos para retirar os hinos de seus cultos até que, em 1962,
foi publicado o ainda usado Hinário Episcopal.
Os
Irmãos Unidos ou Igreja Cristã, como também os evangélicos pentecostais da
Assembléia de Deus, todos tiveram seus missionários implantando o trabalho em
solo brasileiro no final do século XIX ou no início do XX. Os Irmãos Unidos
publicaram Cânticos Espirituais, e os evangélicos pentecostais publicaram o
Harpa Cristã, em 1922, só com a letra.
A Igreja
Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, diferentemente, não surgiu a partir
das missões norte-americanas, e sim dos luteranos provenientes da Alemanha e
seus descendentes, que formaram sínodos e, mais tarde, a IECLB. Sua hinódia é
bastante diferente. Em 1824 chegou a São Leopoldo, no RS, a segunda leva de
colonos alemães no Brasil, logo seguida por outras levas. O primeiro culto foi
realizado no local chamado Feitoria Velha, em alemão, no dia 6 de novembro de
1824. O primeiro templo foi construído em Campo Bom, mas foi na cidade de São
Leopoldo que a igreja estabeleceu o seu centro. Com forte tradição de apreço
pela música, herança indubitável de Martinho Lutero, as igrejas da IECLB
permaneceram promovendo o canto em seus círculos. As expressões musicais foram
marcadas pela variedade, com coros mistos, coros masculino e feminino. Os
cantos costumavam ser acompanhados por órgãos de tubos, harmônios ou conjuntos
instrumentais de metal, denominados de coro de trombones. Durante algum tempo
existiu a tradição do uso de sinos, quase todos fundidos na Alemanha. O HPD é o
hinário oficial denominacional e foi lançado em 1981.
A
Igreja Evangélica Luterana do Brasil chegou ao Brasil em 1900, por iniciativa
do Sínodo de Missouri, nos EUA, para atender uma população de famílias de
descendentes dos imigrantes alemães. Instalou a primeira comunidade em Pelotas,
tendo 17 famílias arroladas como membros. O trabalho foi estendido para as
regiões central e noroeste do estado do Rio Grande do Sul, atingindo também
Porto Alegre e o Vale do Sinos. Logo a seguir expandiu seu trabalho com a
fundação do Seminário Teológico, em 1903, e a publicação do jornal
Evangelisch-Lutherisches Kirchenblatt. Sua tradição musical fez com que
prestigiasse enormemente os coros. Como realizasse seus cultos em alemão,
durante as duas Guerras Mundiais a igreja se viu obrigada a realizá-los em
português. Seu primeiro livro oficial de cantos foi o Hinos e Orações, editado
em 1920, sendo que grande parte de seu acervo foi retirado do hinário Salmos e
Hinos. A esse seguiu-se o Hinário Luterano, publicado em 1938, com sucessivas
edições.
Denise Cordeiro de Souza Frederico
A Seleção de Cantos Para o Culto Cristão:
Critérios Obtidos a Partir da Tensão Entre
Tradição
e Contemporaneidade na Música Sacra Cristã
Ocidental.
Em cumprimento parcial das exigências do
Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Teologia
para obtenção do grau de Doutora
em Teologia
Escola Superior de Teologia São Leopoldo, RS,
Brasil1998.
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