Poucos personagens históricos têm produzido, ao longo dos séculos, tanta controvérsia quanto o reformador genebrino João Calvino. Seus adversários históricos o descreveram com os adjetivos e substantivos mais implacáveis encontrados nos dicionários — autoritário, dogmático, disciplinador rigoroso, destituído de senso de humor, avesso às artes de forma geral e à música em particular, entre tantos outros termos pejorativos possíveis. E o pior é que, mesmo aqueles que reconhecem suas muitas qualidades e qualificações acadêmicas, e até se denominam calvinistas, silenciam em uma concordância velada — e diria até acovardada — diante dessa intensa campanha difamatória sobre sua personalidade e suas múltiplas obras teológicas e pastorais, construída ao longo dos séculos.
Todavia,
quando nos permitimos conhecê-lo despido dessa "capa
desqualificatória" que lhe impuseram, descobrimos, surpreendentemente, um
homem temente a Deus, que viveu intensamente para a glória Dele e a serviço da
Igreja de Cristo, seus dois maiores tesouros neste mundo. Uma pessoa que
cultivou uma infinidade de amizades, algumas por toda a vida, que amou e foi
intensamente amado. Um homem que lutou todos os seus dias contra diversas
enfermidades físicas e emocionais, que perdeu filho e esposa em decorrência
dessas enfermidades. Mas, acima de tudo, uma pessoa humilde, que não acumulou
fortuna na terra, mas investiu todos os seus dias na eternidade.
Uma
das fontes de sua riqueza, que revela por completo este reformador de Genebra,
são as mais de três mil correspondências que ele manteve ao longo de sua vida.
Sem internet e sem WhatsApp (imagine só!), munido apenas de uma pena, tinteiro
e papel, ele se correspondeu com milhares de pessoas — desde imperadores, reis
e rainhas, até pastores, comunidades cristãs, leigos, homens e mulheres, jovens
e idosos, sem distinção. Algumas dessas correspondências equivalem a
verdadeiros tratados teológicos, enquanto outras são simples e tocantes cartas
pastorais — cheias de conforto, encorajamento e apoio nos momentos mais
críticos vividos pelos seus destinatários.
Ao
ler essas milhares de correspondências, torna-se impossível sustentar a visão
de que João Calvino era um líder egocêntrico e destituído de sentimentos.
Nelas, ele chora com os que choram e se alegra com os que se alegram. Ele
demonstra total solidariedade com todas as nuances da vida de seus amigos,
embora seja implacável com os inimigos do Evangelho, da Igreja e de seu Senhor
e Salvador Jesus Cristo. São esses últimos que, até os dias de hoje, continuam
a denegrir sua imagem, esforçando-se persistentemente para atribuir-lhe os
terríveis atributos pejorativos mencionados.
Mas
tais críticos têm falhado miseravelmente. Hoje, em pleno século XXI, na chamada
pós-modernidade, presenciamos o ressurgimento da figura desse Reformador do
século XVI e a revitalização de sua obra máxima de teologia — As Institutas.
Também há uma redescoberta de seus múltiplos comentários dos livros que compõem
a Bíblia e uma reafirmação de seu sistema de governo eclesiástico, denominado
Presbiterianismo. Nunca antes se falou e escreveu tanto sobre João Calvino.
Suas Institutas da Religião Cristã (magnum opus), que capturam a
essência de uma compreensão sistemática reformada das Escrituras, continuam
sendo reimpressas em centenas de idiomas. Da mesma forma, a fecunda atualidade
de seus preciosos comentários bíblicos é redescoberta, pois eles expõem, com
fidelidade exegética e hermenêutica, sem perder a força pujante de um coração
pastoral, zeloso pelas vidas preciosas que compõem a Igreja de Cristo.
Ninguém
que zela pela verdade deveria tratar da vida de Calvino sem antes ler suas
correspondências. Embora seja impossível ler todas as milhares delas, pelo
menos algumas das inúmeras seleções impressas em inglês deveriam ser
consideradas (não encontrei edições em espanhol e muito menos em português, já
que as editoras evangélicas não as consideram “vendáveis”).
Na
verdade, em diversos momentos, Calvino admitiu que, se pudesse escolher, seria
um escritor e correspondente de “tempo integral”. Todavia, ele tinha plena
consciência de que isso não lhe seria permitido devido às suas grandes
responsabilidades pastorais e educacionais. Nada lhe proporcionava maior
satisfação do que reservar tempo para se corresponder com as mais diversas
pessoas, sobre os mais variados temas. Muitas vezes, precisava de vários dias
para organizar e redigir suas cartas, dado seu permanente cuidado com a
coerência e a fundamentação bíblica, características marcantes de sua
personalidade.
Nenhum
assunto era pequeno demais ou grande demais para não merecer sua atenção e
tempo. Fosse uma crítica aos seus escritos, um desabafo de um amigo, dúvidas
profundas ou até mesmo meras curiosidades especulativas, ele tinha o cuidado de
responder com a mesma acuidade e seriedade.
Uma
das máximas vivenciais de Calvino era que nada era pequeno ou grande demais;
tudo estava entrelaçado com a vontade soberana de Deus, visando à edificação da
Igreja por meio das vidas de cada crente. Parafraseando uma expressão
popularizada (ainda que muitas vezes distorcida): cada crente importa, pois foi
resgatado das trevas e transportado para o reino de Cristo.
Uma
sugestiva seleção de suas correspondências é a organizada por Bonnet (2009),
que oferece um vislumbre de seus múltiplos relacionamentos e preocupações com
as mais diversas facetas da vida cotidiana das pessoas. Entre elas, encontramos
desde sofrimentos até questões amorosas, como quando e com quem se casar. O
cuidado que ele tinha por sua amada esposa, Idelette de Bure, é notável, e o
sofrimento causado pela morte precoce dela feriu profundamente sua alma.
Essa
seleção limitada ainda nos permite reconstruir mentalmente a ampla, contínua e
crescente teia de amigos — mais chegados do que irmãos — que se entrelaçavam
com sua vida pessoal, assim como a ponta do iceberg de seus críticos
contumazes. Afinal, quem não tem inimigos é porque nunca teve amigos.
As
leituras dessa ampla correspondência corrigem o grande equívoco, implantado na
mente de muitos, de que Calvino era, em decorrência de sua formação acadêmica,
muito mais um teórico político do que um teólogo e pastor. Tal concepção não
encontra consistência alguma em suas correspondências (bem como em qualquer de
suas outras obras). Trata-se de uma pseudo-difamação criada para afastar
possíveis leitores de seus ensinos e de sua teologia. Sua única regra de fé e
produção literária sempre foi, desde as primeiras linhas até as últimas, a
infalível, insubstituível e inegociável Palavra de Deus. Isso, naturalmente,
sempre fez o braseiro do inferno arder mais intensamente.
Mas,
para aqueles que não se satisfazem em apenas “ouvir” falar de João Calvino e
desejam conhecê-lo de fato e de verdade, a leitura de suas correspondências é
imprescindível. Ouça Calvino abrindo o coração e a alma; sinta o pulsar de seu
coração; estremeça diante de suas indignações contra todo erro que afronta o
ensino eminentemente bíblico.
A
leitura de seu extenso corpus de correspondências também nos permite inferir a
progressão de maturação teológica e eclesiológica que ele desenvolveu ao longo
de sua vida. A impressão que se tem dos “calvinistas” atuais (e não tão atuais)
é a de que todo o seu arcabouço de conhecimento teológico já estava pronto, e
ele apenas o acessou — como fazemos hoje com sistemas de Inteligência
Artificial. No entanto, seu conhecimento começou como o de qualquer outro,
sendo enriquecido ao longo de toda sua jornada. Suas Institutas são a
prova concreta desse fato, pois, a cada reedição, eram acrescidas novas
proposições que, embora não alterassem a essência de suas teses, acrescentavam
novos subsídios e argumentos, fortalecendo ainda mais seus pressupostos
teológicos bíblicos.
Calvino,
como qualquer outro, não nasceu um teólogo pronto. Suas cartas revelam
claramente que seu desenvolvimento teológico ia além do ambiente acadêmico e se
entrelaçava com sua prática vivencial e pastoral. À medida que sua
correspondência se intensificava, ele aprendia a lidar com a pluralidade de
opiniões divergentes, o que não lhe permitia acomodar-se nos louros alcançados.
Pelo contrário, isso o impelia constantemente a buscar novos subsídios para as
suas ênfases teológicas e para sua prática de ensino, seja no campo acadêmico
ou pastoral.
Essas
correspondências nos permitem discernir seus distintivos eclesiológicos de fé —
uma definição cada vez mais clara de suas doutrinas — paralelamente ao seu
desenvolvimento em termos de comunhão e espiritualidade.
Fragilidade
Física e Emocional
Desde
sua juventude, Calvino enfrentou toda sorte de pressões. A morte precoce de sua
mãe, quando ele tinha aproximadamente seis anos; a rigidez educacional de seu
pai, que desejava que ele seguisse a carreira de advogado e, posteriormente, a
eclesiástica; sua conversão e envolvimento com o movimento da Reforma; sua fuga
da perseguição na França; e a pressão de Guilherme Farel para que assumisse um
papel efetivo no movimento reformista em Genebra marcaram profundamente sua
trajetória. A partir desse ponto, ele viveu sob o peso da liderança reformada
até seu último dia.
Além
dos inimigos externos, o que mais o feriu foram as perseguições internas. Ele
chegou a ser destituído do pastorado da igreja em Genebra, mas, posteriormente,
a pedido e até contrariado, retomou seu ofício pastoral e acadêmico, que
exerceu até o fim de sua vida. Complôs contra sua vida eram uma constante.
Suas
enfermidades apenas se agravaram ao longo dos anos e, por diversas vezes, ele
ficou entre a vida e a morte. Em suas correspondências, Calvino menciona essas
provações físicas e emocionais, listando as enfermidades que o afligiram:
artrite, gota, tuberculose, pleurisia, enxaquecas, hemorroidas, febre quartã,
dispepsia, asma e crises renais agudas. Mesmo nesse contexto, ele demonstrava
uma determinação impressionante. Muitas vezes, teve que pregar sentado ou ser
carregado até a igreja, quando não conseguia andar.
Apesar
de todas as adversidades, ele nunca deixou de dar prosseguimento ao seu
trabalho, seja na correspondência, nos livros ou nas pregações e aulas na
Academia de Genebra.
Em um dos momentos mais
agudos de sua vida, após a morte de sua esposa Idelette de Bure, Calvino
escreveu a dois de seus amigos mais preciosos, Pierre Viret e Guilherme Farel,
dizendo que havia perdido a melhor parte de si mesmo. Vivenciando plenamente sua
fragilidade emocional, Calvino encontrou força e apoio nos amigos próximos.
Essa experiência reflete sua humanidade e sensibilidade, além de sua firme
convicção na infalível providência de Deus.
Este artigo já ultrapassou,
e muito, o espaço adequado para um blog. No entanto, desafio você, caro leitor,
a explorar as referências abaixo e acessar essas preciosidades das
correspondências de Calvino. Investir seu tempo nessas leituras certamente será
recompensador.
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes,
Ivan Pereira
Mestre
em Ciências da Religião.
Universidade
Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro
Blog
Reflexão
Bíblica
http://reflexaoipg.blogspot.com.br/
Referências Bibliográficas
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C.,
Burger, C. & Van Stam, F.P., 2002, ‘Calvin in the light of the early letters’,
in H.J. Selderhuis (ed.), Calvinus Praeceptor Ecclesiae: Papers of the
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Geneva.
BEVERIDGE,
Henry; BONNET, Jules (Eds.). Selected works of John Calvin:
tracts and letters. Grand Rapids, Mich.: Baker Book House, 1983.
BEZA,
T.
The life of John Calvin, transl. F. Sibson, Philadelphia. 1836. [primeira
biografia de João Calvino].
CALVIN,
John. Selected works of John Calvin: tracts and letters.
Grand Rapids, Mich.: Baker Book House, 1983. Edited by Henry Beveridge and
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Bernard. Calvin, a biography. Grand Rapids, Michigan;
Cambridge: William B. Eerdmans Publishing Company, 1995.
CALVIN
OPERA - Ioannis
Calvini opera quae supersunt omnia [todas as obras].
DANIEL-ROPS.
Morte e Glória de João Calvino. Morte e
Glória de João Calvino - Daniel-Rops
REYBURN,
Hugh Y. John Calvin: his life, letters, and work. London:
Hodder and Stoughton, 1914.
SCHALKWIJK,
Frans Leonard. O Brasil na Correspondência de Calvino.
Fides
reform-.004-077 a 184.pdf [transcrição destas cartas].
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