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sábado, 26 de abril de 2025

Calvino Pela Perspectiva de Sua Correspondência

Poucos personagens históricos têm produzido, ao longo dos séculos, tanta controvérsia quanto o reformador genebrino João Calvino. Seus adversários históricos o descreveram com os adjetivos e substantivos mais implacáveis encontrados nos dicionários — autoritário, dogmático, disciplinador rigoroso, destituído de senso de humor, avesso às artes de forma geral e à música em particular, entre tantos outros termos pejorativos possíveis. E o pior é que, mesmo aqueles que reconhecem suas muitas qualidades e qualificações acadêmicas, e até se denominam calvinistas, silenciam em uma concordância velada — e diria até acovardada — diante dessa intensa campanha difamatória sobre sua personalidade e suas múltiplas obras teológicas e pastorais, construída ao longo dos séculos.

Todavia, quando nos permitimos conhecê-lo despido dessa "capa desqualificatória" que lhe impuseram, descobrimos, surpreendentemente, um homem temente a Deus, que viveu intensamente para a glória Dele e a serviço da Igreja de Cristo, seus dois maiores tesouros neste mundo. Uma pessoa que cultivou uma infinidade de amizades, algumas por toda a vida, que amou e foi intensamente amado. Um homem que lutou todos os seus dias contra diversas enfermidades físicas e emocionais, que perdeu filho e esposa em decorrência dessas enfermidades. Mas, acima de tudo, uma pessoa humilde, que não acumulou fortuna na terra, mas investiu todos os seus dias na eternidade.

Uma das fontes de sua riqueza, que revela por completo este reformador de Genebra, são as mais de três mil correspondências que ele manteve ao longo de sua vida. Sem internet e sem WhatsApp (imagine só!), munido apenas de uma pena, tinteiro e papel, ele se correspondeu com milhares de pessoas — desde imperadores, reis e rainhas, até pastores, comunidades cristãs, leigos, homens e mulheres, jovens e idosos, sem distinção. Algumas dessas correspondências equivalem a verdadeiros tratados teológicos, enquanto outras são simples e tocantes cartas pastorais — cheias de conforto, encorajamento e apoio nos momentos mais críticos vividos pelos seus destinatários.

Ao ler essas milhares de correspondências, torna-se impossível sustentar a visão de que João Calvino era um líder egocêntrico e destituído de sentimentos. Nelas, ele chora com os que choram e se alegra com os que se alegram. Ele demonstra total solidariedade com todas as nuances da vida de seus amigos, embora seja implacável com os inimigos do Evangelho, da Igreja e de seu Senhor e Salvador Jesus Cristo. São esses últimos que, até os dias de hoje, continuam a denegrir sua imagem, esforçando-se persistentemente para atribuir-lhe os terríveis atributos pejorativos mencionados.

Mas tais críticos têm falhado miseravelmente. Hoje, em pleno século XXI, na chamada pós-modernidade, presenciamos o ressurgimento da figura desse Reformador do século XVI e a revitalização de sua obra máxima de teologia — As Institutas. Também há uma redescoberta de seus múltiplos comentários dos livros que compõem a Bíblia e uma reafirmação de seu sistema de governo eclesiástico, denominado Presbiterianismo. Nunca antes se falou e escreveu tanto sobre João Calvino. Suas Institutas da Religião Cristã (magnum opus), que capturam a essência de uma compreensão sistemática reformada das Escrituras, continuam sendo reimpressas em centenas de idiomas. Da mesma forma, a fecunda atualidade de seus preciosos comentários bíblicos é redescoberta, pois eles expõem, com fidelidade exegética e hermenêutica, sem perder a força pujante de um coração pastoral, zeloso pelas vidas preciosas que compõem a Igreja de Cristo.

Ninguém que zela pela verdade deveria tratar da vida de Calvino sem antes ler suas correspondências. Embora seja impossível ler todas as milhares delas, pelo menos algumas das inúmeras seleções impressas em inglês deveriam ser consideradas (não encontrei edições em espanhol e muito menos em português, já que as editoras evangélicas não as consideram “vendáveis”).

Na verdade, em diversos momentos, Calvino admitiu que, se pudesse escolher, seria um escritor e correspondente de “tempo integral”. Todavia, ele tinha plena consciência de que isso não lhe seria permitido devido às suas grandes responsabilidades pastorais e educacionais. Nada lhe proporcionava maior satisfação do que reservar tempo para se corresponder com as mais diversas pessoas, sobre os mais variados temas. Muitas vezes, precisava de vários dias para organizar e redigir suas cartas, dado seu permanente cuidado com a coerência e a fundamentação bíblica, características marcantes de sua personalidade.

Nenhum assunto era pequeno demais ou grande demais para não merecer sua atenção e tempo. Fosse uma crítica aos seus escritos, um desabafo de um amigo, dúvidas profundas ou até mesmo meras curiosidades especulativas, ele tinha o cuidado de responder com a mesma acuidade e seriedade.

Uma das máximas vivenciais de Calvino era que nada era pequeno ou grande demais; tudo estava entrelaçado com a vontade soberana de Deus, visando à edificação da Igreja por meio das vidas de cada crente. Parafraseando uma expressão popularizada (ainda que muitas vezes distorcida): cada crente importa, pois foi resgatado das trevas e transportado para o reino de Cristo.

Uma sugestiva seleção de suas correspondências é a organizada por Bonnet (2009), que oferece um vislumbre de seus múltiplos relacionamentos e preocupações com as mais diversas facetas da vida cotidiana das pessoas. Entre elas, encontramos desde sofrimentos até questões amorosas, como quando e com quem se casar. O cuidado que ele tinha por sua amada esposa, Idelette de Bure, é notável, e o sofrimento causado pela morte precoce dela feriu profundamente sua alma.

Essa seleção limitada ainda nos permite reconstruir mentalmente a ampla, contínua e crescente teia de amigos — mais chegados do que irmãos — que se entrelaçavam com sua vida pessoal, assim como a ponta do iceberg de seus críticos contumazes. Afinal, quem não tem inimigos é porque nunca teve amigos.

As leituras dessa ampla correspondência corrigem o grande equívoco, implantado na mente de muitos, de que Calvino era, em decorrência de sua formação acadêmica, muito mais um teórico político do que um teólogo e pastor. Tal concepção não encontra consistência alguma em suas correspondências (bem como em qualquer de suas outras obras). Trata-se de uma pseudo-difamação criada para afastar possíveis leitores de seus ensinos e de sua teologia. Sua única regra de fé e produção literária sempre foi, desde as primeiras linhas até as últimas, a infalível, insubstituível e inegociável Palavra de Deus. Isso, naturalmente, sempre fez o braseiro do inferno arder mais intensamente.

Mas, para aqueles que não se satisfazem em apenas “ouvir” falar de João Calvino e desejam conhecê-lo de fato e de verdade, a leitura de suas correspondências é imprescindível. Ouça Calvino abrindo o coração e a alma; sinta o pulsar de seu coração; estremeça diante de suas indignações contra todo erro que afronta o ensino eminentemente bíblico.

A leitura de seu extenso corpus de correspondências também nos permite inferir a progressão de maturação teológica e eclesiológica que ele desenvolveu ao longo de sua vida. A impressão que se tem dos “calvinistas” atuais (e não tão atuais) é a de que todo o seu arcabouço de conhecimento teológico já estava pronto, e ele apenas o acessou — como fazemos hoje com sistemas de Inteligência Artificial. No entanto, seu conhecimento começou como o de qualquer outro, sendo enriquecido ao longo de toda sua jornada. Suas Institutas são a prova concreta desse fato, pois, a cada reedição, eram acrescidas novas proposições que, embora não alterassem a essência de suas teses, acrescentavam novos subsídios e argumentos, fortalecendo ainda mais seus pressupostos teológicos bíblicos.

Calvino, como qualquer outro, não nasceu um teólogo pronto. Suas cartas revelam claramente que seu desenvolvimento teológico ia além do ambiente acadêmico e se entrelaçava com sua prática vivencial e pastoral. À medida que sua correspondência se intensificava, ele aprendia a lidar com a pluralidade de opiniões divergentes, o que não lhe permitia acomodar-se nos louros alcançados. Pelo contrário, isso o impelia constantemente a buscar novos subsídios para as suas ênfases teológicas e para sua prática de ensino, seja no campo acadêmico ou pastoral.

Essas correspondências nos permitem discernir seus distintivos eclesiológicos de fé — uma definição cada vez mais clara de suas doutrinas — paralelamente ao seu desenvolvimento em termos de comunhão e espiritualidade.

Fragilidade Física e Emocional

Desde sua juventude, Calvino enfrentou toda sorte de pressões. A morte precoce de sua mãe, quando ele tinha aproximadamente seis anos; a rigidez educacional de seu pai, que desejava que ele seguisse a carreira de advogado e, posteriormente, a eclesiástica; sua conversão e envolvimento com o movimento da Reforma; sua fuga da perseguição na França; e a pressão de Guilherme Farel para que assumisse um papel efetivo no movimento reformista em Genebra marcaram profundamente sua trajetória. A partir desse ponto, ele viveu sob o peso da liderança reformada até seu último dia.

Além dos inimigos externos, o que mais o feriu foram as perseguições internas. Ele chegou a ser destituído do pastorado da igreja em Genebra, mas, posteriormente, a pedido e até contrariado, retomou seu ofício pastoral e acadêmico, que exerceu até o fim de sua vida. Complôs contra sua vida eram uma constante.

Suas enfermidades apenas se agravaram ao longo dos anos e, por diversas vezes, ele ficou entre a vida e a morte. Em suas correspondências, Calvino menciona essas provações físicas e emocionais, listando as enfermidades que o afligiram: artrite, gota, tuberculose, pleurisia, enxaquecas, hemorroidas, febre quartã, dispepsia, asma e crises renais agudas. Mesmo nesse contexto, ele demonstrava uma determinação impressionante. Muitas vezes, teve que pregar sentado ou ser carregado até a igreja, quando não conseguia andar.

Apesar de todas as adversidades, ele nunca deixou de dar prosseguimento ao seu trabalho, seja na correspondência, nos livros ou nas pregações e aulas na Academia de Genebra.

Em um dos momentos mais agudos de sua vida, após a morte de sua esposa Idelette de Bure, Calvino escreveu a dois de seus amigos mais preciosos, Pierre Viret e Guilherme Farel, dizendo que havia perdido a melhor parte de si mesmo. Vivenciando plenamente sua fragilidade emocional, Calvino encontrou força e apoio nos amigos próximos. Essa experiência reflete sua humanidade e sensibilidade, além de sua firme convicção na infalível providência de Deus.

Este artigo já ultrapassou, e muito, o espaço adequado para um blog. No entanto, desafio você, caro leitor, a explorar as referências abaixo e acessar essas preciosidades das correspondências de Calvino. Investir seu tempo nessas leituras certamente será recompensador.

 

Utilização livre desde que citando a fonte

Guedes, Ivan Pereira

Mestre em Ciências da Religião.

Universidade Presbiteriana Mackenzie

me.ivanguedes@gmail.com

Outro Blog

Reflexão Bíblica

http://reflexaoipg.blogspot.com.br/


 Referências Bibliográficas

AUGUSTIJN, C., Burger, C. & Van Stam, F.P., 2002, ‘Calvin in the light of the early letters’, in H.J. Selderhuis (ed.), Calvinus Praeceptor Ecclesiae: Papers of the International Congress on Calvin Research, pp. 139–157, Princeton, Droz, Geneva.

BEVERIDGE, Henry; BONNET, Jules (Eds.). Selected works of John Calvin: tracts and letters. Grand Rapids, Mich.: Baker Book House, 1983.

BEZA, T. The life of John Calvin, transl. F. Sibson, Philadelphia. 1836. [primeira biografia de João Calvino].

CALVIN, John. Selected works of John Calvin: tracts and letters. Grand Rapids, Mich.: Baker Book House, 1983. Edited by Henry Beveridge and Jules Bonnet.

COTTRET, Bernard. Calvin, a biography. Grand Rapids, Michigan; Cambridge: William B. Eerdmans Publishing Company, 1995.

CALVIN OPERA - Ioannis Calvini opera quae supersunt omnia [todas as obras].

DANIEL-ROPS. Morte e Glória de João Calvino. Morte e Glória de João Calvino - Daniel-Rops

REYBURN, Hugh Y. John Calvin: his life, letters, and work. London: Hodder and Stoughton, 1914.

SCHALKWIJK, Frans Leonard. O Brasil na Correspondência de Calvino. Fides reform-.004-077 a 184.pdf [transcrição destas cartas].

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segunda-feira, 7 de abril de 2025

CALVINO em Cinco Minutos - O Que Devemos Conhecer de Deus

 


João Calvino figura, indiscutivelmente, entre os nomes mais mencionados e comentados da Reforma Protestante. Paradoxalmente, contudo, ele permanece amplamente desconhecido, pois é raro encontrar entre seus "fãs" quem tenha lido, ao menos, uma de suas obras.

Sua obra magna é As Institutas da Religião Cristã, a qual muitos que se identificam como "calvinistas" sequer leram um dos quatro volumes que compõem a obra. A biblioteca calviniana é vastíssima, composta por obras teológicas, comentários bíblicos que abrangem quase todos os livros da Bíblia, tratados sobre os mais diversos temas e suas primorosas correspondências, que ultrapassam a marca de mil cartas. Muitas dessas correspondências revelam-se, inclusive, verdadeiros tratados teológicos e acadêmicos sobre as mais variadas questões.

Os trechos apresentados nesta série serão retirados desta importante e sempre atual obra teológica de João Calvino. Por conta do espaço limitado, iremos explorar o conteúdo gradualmente, em partes menores, permitindo que os leitores compreendam melhor suas ideias e, quem sabe, sintam-se motivados a explorar a obra em sua íntegra.

Hoje, há uma variedade de traduções disponíveis em português, distribuídas por diferentes editoras, facilitando o acesso a essa obra monumental. A leitura desta obra é uma ferramenta inestimável para introduzir o leitor à tarefa de pensar bíblico-teologicamente sobre os princípios fundamentais de uma fé saudável e edificante.

O desafio que Calvino enfrentou, e com sucesso, foi formular a doutrina cristã de uma maneira que preservasse a fidelidade às suas origens, garantindo relevância para seu contexto histórico — algo que se mantém até os dias atuais.

Calvino produziu ao menos cinco edições de sua obra, nas quais revisa e amplia o conteúdo. As edições em latim[1] são datadas de: 1536, 1539, 1543, 1550 e 1559. Esta última, realizada poucos anos antes de seu falecimento, é considerada o Opus Magnum do reformador genebrino.

A Carta dedicatória de João Calvino ao rei Francisco I[2] (1494–1547) da França, é uma leitura muito importante. Nela, Calvino explica os motivos que o levaram a escrever As Institutas e defende os protestantes, chamados na França de huguenotes, das acusações injustas feitas pelos opositores, como os romanistas. Nesse texto, ele apresenta uma defesa detalhada e expõe suas ideias teológicas e razões.

Como mencionado no artigo, vou reunir pequenos trechos sequenciais para que, a cada publicação, você possa ler e entender as explicações de Calvino de maneira mais acessível. Essa iniciativa pode incentivar os leitores a conhecerem melhor suas argumentações e ensinamentos.

Vamos ouvir então mestre João Calvino.

Observação: Para melhor aproveitamento dos artigos achei oportuno colocar algumas questões para reflexão no final de cada texto de Calvino.

LIVRO 1 – (18 capítulos)

O CONHECIMENTO DE DEUS E O CONHECIMENTO DE NÓS MESMOS SÃO COISAS CORRELATAS E SE INTER-RELACIONAM

1. O Conhecimento de nós mesmos nos conduz ao conhecimento de Deus

 

Quase toda a soma de nosso conhecimento, que de fato se deva julgar como verdadeiro e sólido conhecimento, consta de duas partes: o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos. Como, porém, se entrelaçam com muitos elos, não é fácil, entretanto, discernir qual deles precede ao outro, e ao outro origina.

 Em primeiro lugar, visto que ninguém pode sequer mirar a si próprio sem imediatamente volver o pensamento à contemplação de Deus, em quem vive e se move [At 17.28], por isso longe está de obscuro o fato de que os dotes com que somos prodigamente investidos de modo algum provêm de nós mesmos. Mais ainda, nem é nossa própria existência, na verdade, outra coisa senão subsistência no Deus único.

 Em segundo lugar, por estas mercês que do céu, gota a gota, sobre nós se destilam, somos conduzidos à fonte como por pequeninos regatos. Aliás, já de nossa própria carência melhor se evidencia aquela infinidade de recursos que residem em Deus. Particularmente, esta desventurada ruína em que nos lançou a defecção do primeiro homem nos compele a alçar os olhos para o alto, não apenas para que, jejunos e famintos, daí roguemos o que nos falte, mas ainda para que, despertados pelo temor, aprendamos a humildade.

Ora, como no homem se depara um como que mundo de todas as misérias, e

 desde que fomos despojados de nosso divino adereço, vergonhosa nudez põe a descoberto imensa massa de torpezas, do senso da própria infelicidade deve necessariamente cada um ser espicaçado para que chegue pelo menos a algum conhecimento de Deus.

 E assim na consciência de nossa ignorância, fatuidade, penúria, fraqueza, enfim, de nossa própria depravação e corrupção, reconhecemos que em nenhuma outra parte, senão no Senhor, se situam a verdadeira luz da sabedoria, a sólida virtude, a plena abundância de tudo que é bom, a pureza da justiça, e daí somos por nossos próprios males instigados à consideração das excelências de Deus. Nem podemos aspirar a ele com seriedade antes que tenhamos começado a descontentar-nos de nós mesmos. Pois quem dos homens há que em si prazerosamente não descanse, quem na verdade assim não descanse, por quanto tempo é a si mesmo desconhecido, isto é, por quanto tempo está contente com seus dotes e ignorante ou esquecido de sua miséria?

Consequentemente, pelo conhecimento de si mesmo cada um é não apenas aguilhoado a buscar a Deus, mas até como que conduzido pela mão a achá-lo.

 

João Calvino

Institutas da Religião Cristã

1559

 

Questões Para Reflexão

1.     Qual é a relação entre o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos?

2.     Por que a consciência de nossa própria fraqueza nos conduz à busca por Deus?

3.     O que nos impede de aspirar a Deus antes de nos descontentarmos conosco mesmos?

4.     Se todo verdadeiro conhecimento está ligado ao conhecimento de Deus, como devemos abordar o aprendizado e o crescimento pessoal?

 

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Calvino e a Importância da Música (1ª Parte)
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Referências Bibliográficas

CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã, edição clássica, em quatro volumes, tradução de Waldyr Carvalho Luz, com base na edição de 1559 em latim. São Paulo: Editora Cultura Cristã, Primeira Edição, 1984.

___________. As Institutas ou Instituição da Religião Cristã (da edição original francesa de 1541). Tradução e leitura de provas Odayr Olivetti; revisão e notas de estudo e pesquisa Herminsen Maia Pereira da Costa. 1ª edição. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002.

___________. As Institutas ou Instituição da Religião Cristã, em dois volumes, tradução de Carlos Eduardo de Oliveira [vol 1], Omayr J. de Moraes Jr. e Elaine C. Sartorelli [vol 2], com base na edição de 1559 em latim. São Paulo: Editora da UNESP, 2008 [vol 1] e 2009 [vol 2].

CALVINO, João. O Livro dos Salmos. Tradução Valter Graciano Martins. São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 1.

D'AUBIGNÉ, J. H. Merle. The Reformation in Europe in the time of Calvin. Vol. VIII. Translated William L. R. Cates. New York: Robert Carter and Brothers, 1879.

FERREIRA, Wilson Castro. Calvino: vida, influência e teologia. Campinas, SP: Edição de Luz Para o Caminho, 1985.

HALL, David W. e LILLBACK, Peter A. (Eds.). A Theological Guide to Calvin's Institutes – essays and analysis. Phillipsburg, New Jersey, P & R Publishing, 2008. [PACKER, J. I, Prefácio, p. xiii].

WILEMAN, Willian. John Calvin: his life, his teaching, and his influence. London: Robert Banks and Son.



[1] O latim era a língua universal da academia e da teologia na Europa durante o século XVI, permitindo que sua obra alcançasse um público mais amplo, incluindo estudiosos, líderes religiosos e políticos de diferentes países. Ele também as traduziu para o francês, sua língua nativa, por duas razões: dar suporte aos huguenotes franceses e alcançar um público maior, especialmente entre os cristãos que não tinham acesso ao latim, a língua acadêmica daquela época [equivalente ao inglês hoje].

[2] Nos tempos de Calvino, Francisco I enfrentava tensões religiosas crescentes devido à disseminação do protestantismo na França. Embora inicialmente, por questões políticas, tenha mostrado certa tolerância, ele acabou adotando uma postura mais repressiva contra os huguenotes (protestantes franceses), especialmente após o chamado "Caso dos Cartazes" (1534), criticando a missa católica.


sexta-feira, 4 de abril de 2025

Bibliografia Reformada: Confissões Reformadas Harmonizadas[1]

 


As igrejas reformadas dos séculos XVI e XVII produziram várias tradições de confissões reformadas ortodoxas que diferenciavam a fé reformada tanto do catolicismo romano quanto de outros grupos de igrejas protestantes. As tradições mais conhecidas dessas confissões incluem a tradição suíça, representada pela Primeira e Segunda Confissões Helvéticas (1536; 1566) e pela Fórmula de Consenso Helvético (1675); a tradição escocesa-inglesa, representada pela Confissão Escocesa (1560), os Trinta e Nove Artigos (1563), a Confissão de Fé de Westminster (1646-1647) e os Catecismos Menor e Maior (1647) da Assembleia de Westminster; e a tradição holandesa-alemã, representada pelas Três Formas de Unidade: a Confissão Belga de Fé (1561), o Catecismo de Heidelberg (1563) e os Cânones de Dort (1618-1619).

Dessas confissões reformadas, as sete mais rigorosamente seguidas por várias denominações reformadas atualmente são as Três Formas de Unidade, a Segunda Confissão Helvética e a Confissão e os Catecismos de Westminster. Preparei esta harmonia dessas sete confissões a pedido de um grupo de editores de periódicos reformados. A harmonia aborda os temas com base nas traduções ou versões mais utilizadas em inglês dessas confissões. Foi realizada uma atualização mínima na ortografia e pontuação para garantir consistência. Os editores acreditam que essa harmonia facilitará o acesso ao conteúdo das grandes conferências reformadas e ajudará os cristãos reformados holandeses, húngaros, presbiterianos ingleses e outras tradições reformadas [Brasil] a desenvolver uma apreciação mais profunda pelas confissões uns dos outros.

A harmonia inclui uma bibliografia reformada anotada, projetada para auxiliar estudantes iniciantes e avançados da fé reformada. Estruturei as divisões temáticas e a bibliografia conforme os artigos da Confissão de Fé Belga, a mais antiga confissão reformada presente na harmonia. Gostaria de receber sugestões de acréscimos a esta bibliografia para futuras edições. Encaminhe suas sugestões para 2919 Leonard NE, Grand Rapids, MI 49525 (fax: 616-977-0889; e-mail: jrbeeke@aol.com ).[2]

Agradeço ao meu estimado amigo Sinclair B. Ferguson por me ajudar a escrever a introdução histórica das sete confissões reformadas contidas nesta harmonia. Também agradeço aos meus diagramadores, Gary e Linda den Hollander, que meticulosamente formataram e revisaram o documento. Que Deus, em Sua graça, use este volume para despertar uma apreciação mais profunda pelas nossas confissões reformadas e para estimular uma maior comunhão entre os crentes reformados de todo o mundo de língua inglesa [e outras], independentemente da tradição reformada a que pertençam. A beleza deste livro está em destacar a harmonia entre as confissões reformadas, apesar da diversidade das várias tradições históricas." [destaque meu].

Joel R. Beeke

Cronológica das Confissões Reformadas

Confissão Belga de Fé (1561)

Também conhecida pelo termo latino do século XVII Confessio Belgica, refere-se aos Países Baixos, englobando tanto o norte quanto o sul, que hoje correspondem à Holanda e à Bélgica. Outros nomes para a Confissão Belga incluem "Confissão Valã" e "Confissão dos Países Baixos".

Esse nome “Confissão Valã” é referência à comunidade francófona (de fala francesa) do sul da Bélgica e corresponde às crenças fundamentais da Confissão Belga, sendo amplamente adotada por igrejas reformadas, especialmente durante a Reforma.

Países Baixos era uma região que na época abrangia tanto o norte quanto o sul dos atuais Holanda e Bélgica.

Em 1566, essa Confissão foi revisada pelo Sínodo de Antuérpia. Posteriormente, foi regularmente adotada pelos sínodos nacionais holandeses realizados nas últimas três décadas do século XVI. Após uma revisão adicional, o Sínodo de Dort (1618-1619) adotou a confissão como um padrão doutrinário obrigatório para todos os oficiais das igrejas reformadas.

Catecismo de Heidelberg (1563)

É um documento histórico e teológico importante, originalmente escrito em alemão. Ele contém perguntas e respostas destinadas a ensinar os fundamentos da fé cristã reformada.

Foi escrito em Heidelberg, Alemanha, a pedido do Eleitor Frederico III (1516-1576), que encarregou Zacharius Ursinus (1534-1583), um professor de teologia de 28 anos da Universidade de Heidelberg, e Caspar Olevianus (1536-1587), o pregador da corte de Frederico, de 26 anos, de preparar um catecismo reformado para instruir os jovens e guiar pastores e professores.

O conhecimento acadêmico de Ursinus e a eloquência de Olevianus são evidentes no Documento finalizado, que foi chamado de “um catecismo de poder e beleza incomuns, uma obra-prima reconhecida”.

Segunda Confissão Helvética (1566)

A primeira Confissão (1563) não satisfez plenamente os diversos ramos protestantes, devido discordâncias sobre a "presença real" de Cristo na Ceia do Senhor, uma questão que somente foi tratada posteriormente — pelo menos para calvinistas e zwinglianos—no Consenso de Zurique (Consensus Tigurinus) de 1549.

Praticamente é um trabalho pessoal de Heinrich Bullinger de 1562, que posteriormente foi  solicitado por Frederico III, Eleitor do Palatinado, que o traduz  para o alemão, para usá-lo como defesa contra as críticas luteranas na Dieta Imperial de 1566. Após algumas revisões em uma conferência em Zurique naquele mesmo ano, a confissão foi aprovada por Berna, Biel, Genebra, os Grisões, Mulhausen, Schaffhausen e St. Gallen. Foi amplamente aceita posteriormente na Escócia, Hungria, Polônia e outros lugares.

Cânones de Dort (1618-1619)

Esse documento foi produzido no transcorrer do Tribunal do Sínodo de Dort (1618 e 1619), sobre os Cinco Principais Pontos da Doutrina em Disputa na Holanda que ficou popularmente conhecido como os Cânones de Dort ou os Cinco Artigos Contra os Remonstrantes (Arminianos). Consiste em declarações doutrinais adotadas pelo Sínodo, que se reuniu na cidade de Dordrecht em 1618-1619. Embora este fosse um sínodo nacional das Igrejas Reformadas da Holanda, tinha um caráter internacional. Era composto por vinte e sete delegados estrangeiros representando oito países, além de seus sessenta e dois delegados holandeses.

Esses pontos ficaram conhecidos como os Cânones de Dort, ou os "Cinco Pontos do Calvinismo".

Confissão de Fé de Westminster (1647)

A Confissão de Fé produzida pelos teólogos de Westminster é, sem dúvida, um dos documentos mais influentes do período pós-Reforma da igreja cristã. Elaborada com precisão, é uma exposição cuidadosa da teologia reformada do século XVII. Apesar da serenidade que transparece em suas frases, ela foi concebida em meio às intensas turbulências do cenário político que a cercava.

O pensamento teológico predominante na elaboração da Confissão de Fé de Westminster foi o calvinismo, uma teologia reformada fundamentada nos ensinamentos de João Calvino. Essa confissão reflete uma teologia centrada na soberania de Deus, na autoridade das Escrituras e na doutrina da graça. Além destes pontos abrange outras temáticas: como a providência divina, os sacramentos, a vida cristã e a organização da igreja, sempre pela perspectiva reformada e bíblica.

Catecismo Menor de Westminster (1647)

Esses Catecismos foram criados com o propósito de instruir e fortalecer a fé dos cristãos de forma clara e prática. Foram elaborados para atender às demandas de diferentes públicos e às diversas necessidades da igreja reformada no século XVII, especialmente nas regiões da Escócia e Inglaterra.

O Catecismo Menor contém 107 perguntas para as quais, em geral, são formuladas respostas de uma única frase, embora ocasionalmente uma resposta mais detalhada seja dada. O padrão seguido é amplamente o da Confissão de Fé, mas aqui as definições teológicas dadas são compactas e concisas.

Catecismo Maior de Westminster (1648)

Praticamente um ano depois, foi elaborado o chamado Catecismo Maior que reflete a mesma teologia e diversas características do anterior, mas, explorando uma variedade mais abrangente de assuntos com um nível maior de profundidade. Ele inclui 196 perguntas e respostas, muitas delas consistindo em mais de cem palavras organizadas em frases detalhadas e complexas.

Contents

Foreword         vii

Historical Introduction to the Reformed Confessions  ix

Introduction     2

Theology: The Doctrine of God

The Being and Attributes of God        6

 Revelation       8

The Holy Scriptures     10

The Apocrypha             18

The HolyTrinity            20

The Godhead of the Son         24

The Godhead of the Holy Spirit           26

God's Decrees and Predestination       28

Creation           36

Providence       40

Anthropology: The Doctrine of Man

The Fall of Man, Original Sin, and Punishment           46

God’s Covenant with Man       52

Free Will and Inability              56

Christology: The Doctrine of Christ

Christ the Mediator      62

The Names of Christ    62

The Natures of Jesus Christ     66

The Offices of Christ    68

The States of Christ     74

God’s Just Mercyin Christ        82

The Promises ofthe Gospel      82

Soteriology: The Doctrine of Salvation

Common Grace and External Calling   88

Effectual Calling and Regeneration      90

Saving Faith    94

Justification      98

Sanctification   104

Adoption         106

Repentance and Conversion    108

GoodWorks      114

Perseverance   118

Assurance        126

The Law of God           130

The First Commandment         136

The Second Commandment     140

The Third Commandment        144

The Fourth Commandment      148

The Fifth Commandment         152

The Sixth Commandment         156

The Seventh Commandment    158

The Eighth Commandment      160

The Ninth Commandment        162

The Tenth Commandment and Application     166

Christian Liberty          170

Prayer and Fasting      172

The Lor’s Payer            176

Ecclesiology: The Doctrine of the Church

The Doctrine ofthe Church      188

Union with Christ and the Communion of Saints        196

The Government and Office-bearers of the Church     198

The Means of Grace: Word and Sacrament     208

Holy Baptism   216

The Lord’s Supper       220

Civil Authorities           230

Celibacy, Marriage, Divorce, and Family Life   234

Eschatology: The Doctrine of the Last Things

Resurrection fromthe Dead     240

The Last Judgment and Eternity          242

Selected Bibliography              247

 

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
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Referência Bibliográfica

BEEKE, Joel R. e FERGUSON, Sinclair B. (editors). Reformed confessions harmonized. Michigan: Published by Baker Books. Third printing, February 2000.

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[1] O livro está em inglês. Traduzi apenas o prefácio, escrito por Joel R. Beeke, e alguns pequenos trechos com o objetivo de despertar o interesse do leitor do blog e auxiliar na compreensão do conteúdo da obra original.

[2] A edição do livro em questão é de 1999, terceira edição 2000, é possível que o email citado não seja mais o mesmo.