Neste ano comemoramos os 500 anos da chamada Reforma Protestante, o maior movimento de ruptura produzido no Cristianismo Ocidental. De fato podemos dividir o Cristianismo Ocidental em dois períodos: antes e depois da Reforma.
Todavia,
desde seu nascedouro a Igreja Cristã permanentemente teve que corrigir sua trajetória
sob o risco de desfigurar-se completamente. Ainda nos registros do livro de
Atos encontramos momentos de tensões: os diáconos tiveram que serem eleitos por
causa de uma situação de conflito e descriminação entre as viúvas helenistas e
as viúvas judias; se há uma figura encantadora de Barnabé temos um contraponto
no casal Ananias e Safira; desde cedo os Elima(s) procuram um meio de utilizar
o “poder” do Espírito Santo para beneficio próprio; nas literaturas paulinas e
demais correspondências neotestamentárias ficam nítidas as constantes divisões
e subdivisões que ocorrem dentro das pequenas comunidades cristãs que se
multiplicam por todo o Império Romano.
Ainda
no primeiro e segundo séculos eclodem no seio da Igreja Cristã, ainda em formação,
os primeiros grandes desvios doutrinários tipificados em uma das figuras mais
carismáticas que verdadeiramente chegou perto de dividir o cristianismo – Marcião.
A partir dele a Igreja teve que se auto-definir como instituição e formar o
corpo teológico eclesiástico que veio a se constituir na ortodoxia cristã.
Mesmo
antes de Constantino a Igreja Cristã já havia assimilado muitas das características
das religiões pagãs com as quais convivia contextualmente, mas foi após
adquirir o status de religião oficial do Império Romano que a Igreja começou definitivamente
sua trajetória descendente.
Com
o passar dos séculos inumeráveis movimentos reformistas surgiram e
desapareceram, alguns assimilados pela Igreja oficial e outros esmagados pelo
poder politico-bélico dessa mesma Igreja.
Muito
antes de surgirem as figuras emblemáticas de Lutero, Calvino, Zwinglio e tantos
outros que perfazem a constelação do movimento de reforma do século XVI,
brilharam estrelas solitárias que de uma forma ou de outra confrontaram a toda
poderosa Igreja Cristã em relação aos seus desvios e desvarios. Entretanto,
essas estrelas solitárias não tiveram em seus dias as condições favoráveis
encontradas no século XVI e por está razão apesar de alcançarem relativas
expressões em suas épocas, foram caladas na maioria das vezes pelos carrascos e
pelas fogueiras. Infelizmente a Igreja Cristã cuja cruz é seu símbolo maior,
como expressão máxima do amor de Deus pelas pessoas, optou por séculos em se
utiliza da espada para tratar todos aqueles que ousaram confrontá-la ou mesmo
criticá-la.
John
Wycliffe
Esse
professor inglês da Universidade de Oxford do século XIV ficou conhecido na
História da Igreja como a “Estrela
da Manhã da Reforma”, pois de fato com ele os primeiros raios de uma
nova era começam a despontar nos horizontes do cristianismo.
Ele
nasceu perto de Richmond no condado Inglês de Yorkshire, cerca de 1320 (mas há variações
de 1320 a 1328) e muito pouco se sabe sobre sua infância. Em 1345 ele começa
seus estudos na Universidade de Oxford, e permanece lá por 17 anos. Sua paixão
é a teologia e a filosofia, bem como o direito canônico às quais se dedica com
entusiasmo. Após interromper seus estudos por várias razões finalmente recebe
seu grau de Doutor em teologia em 1372.
Mas como indicado suas
paixões são a teologia e a filosofia e ainda durante os anos anteriores a sua
formatura, Wycliffe teve a tarefa de interpretar a Bíblia aos alunos e aqui
começa a se definir o seu futuro caminho: a
Bíblia torna-se cada vez mais importante em sua vida. Ela
é - como reconheceu - inigualável
em relação a qualquer outro escrito, e torna-se para ele "o espelho
no qual podemos reconhecer as verdades eternas".
No transcorrer do tempo, Wycliffe
se aproxima cada vez mais da visão que os reformadores do século XVI defenderam
do papel e da importância da Bíblia. Ele inicia no ano de 1382, uma de suas
maiores contribuições para todos os movimentos reformistas posteriores, uma
tradução da Bíblia para o Inglês, pois até então havia apenas a versão em latim
“Vulgata Latina”, de maneira que sua mensagem era conhecida apenas por uma inexpressiva
minoria de pessoas. Para Wycliffe é na Bíblia que se encontra o genuíno testemunho
de Jesus Cristo e de seu Evangelho. Para ele é o próprio Cristo que garante a
verdade bíblica, pois ele cumpriu a lei em sua vida e seus ensinamentos. A
grande tarefa da igreja e de todos os cristãos é seguir o seu exemplo, pregando
e vivendo o Evangelho. Em seu livro De
sufficientia legis Christi ele que sem o conhecimento da Bíblia não
haveria paz na Igreja e na sociedade. Com isso, contrapunha a autoridade das
escrituras à autoridade papal: “Enquanto
temos muitos papas e centenas de cardeais, suas palavras só podem ser
consideradas se estiverem de acordo com a Bíblia”. Idêntico
princípio seguiria Lutero mais de 100 anos depois, ao liderar a Reforma
Protestante. Wycliffe acreditava que a Bíblia deveria ser um bem comum de todos
os cristãos e precisaria estar disponível para uso cotidiano, na língua nativa
das populações. Partes da Bíblia já haviam sido traduzidas para o inglês, mas
não havia uma tradução completa, e Wycliffe atribuiu a si mesmo de coordenar
está tarefa. Ele produz uma tradução clara e uniforme do Novo
Testamento, enquanto seu amigo Nicholas de Hereford traduziu o Antigo
Testamento. Posteriormente ambas as traduções foram revisadas
por John Purvey em 1388, quando então os ingleses tiveram acesso à
Bíblia em seu próprio idioma.[1] Em um período de opulência
e depravação da Igreja, Wycliffe enfatiza especialmente
a pobreza de Jesus, sua humildade e sofrimento paciente.
E por
que a Igreja havia chegado à esta lamentável situação? O diagnóstico
de Wycliffe é porque ela deixou de levar a sério a Bíblia. Sua proposta
terapêutica: expropriar a Igreja,
e fazê-lo com medidas do poder secular. Wycliffe quer mudar o sistema
existente, e é por isso que ele prega a
luta contra a propriedade do clero. Mas também em seus escritos Wycliffe
combate celibato obrigatório dos padres, o comércio de indulgências, a extrema-unção.
Tudo isso, diz Wycliffe, não é prescrita na Bíblia.
Diante da crescente
aderência às suas propostas reformistas Wycliffe foi denunciado em Roma pelo
"clero secular"
(ou seja, os clérigos que não vivem em mosteiros), e condenado em 1377. Mas, simultaneamente, Wycliffe
fica protegido pelo Estado Inglês. Ele insiste cada vez mais fortemente no direito dos leigos e do Estado para
endireitar uma Igreja que não age de acordo com o Evangelho. A obediência ao
Papa só deve ser feita se ele se mantém fiel a Bíblia: se vive na pobreza e
anuncia a lei de Cristo. Quando isso não ocorre o Estado que foi criado por
Deus para governar o povo e garantir a paz deve intervir. Em sua a Summa theologiae contém
afirmação de que, nos assuntos de ordem material, o rei está acima do papa e
que a Igreja deveria renunciar a qualquer tipo de poder temporal. Seu livro De officio regis[2] defendia
que o poder real também era originário de Deus, e encontrava testemunho nas
Escrituras Sagradas, quando Cristo aconselhou “dar a César o
que é de César”. Rapidamente suas teses espalharam-se pela Inglaterra,
em parte pelos interesses da nobreza em confiscar os bens então em poder da
igreja.
Wycliffe também critica a
compreensão católica romana tradicional da Eucaristia: De acordo com ele, no
transcorrer da missa os elementos do pão e do vinho não se transubstanciam no
corpo e sangue de Cristo: o vinho é vinho, e pão é pão. Mas o seu efeito só ocorre
de fato se os distribuidores
e os destinatários
têm a atitude certa, isto é: somente se eles realmente viverem o seguimento de
Cristo.
A tensão aumenta em relação
a Wycliffe e seus seguidores. Sua doutrina do sacramento é declarada heresia, mas
ele não se rende. Autoridades inglesas recomendam a Wycliffe silenciar-se,
causando atrito entre ele e as autoridades. Wycliffe inclui o monarquismo (vida
monástica) em suas críticas, dizendo que não é compatível com a Bíblia. O
conflito culmina em 1382 quando os ensinamentos de Wycliffe a respeito do
sacramento, dos ativos da igreja e do monaquismo são rejeitados e seus discípulos
são cada vez mais perseguidos.
No entanto, Wycliffe está se
tornando cada vez mais agudo e amargurado. Ele nega que a igreja existente para
ser igreja (institucional). De acordo com Wycliffe, a verdadeira igreja são os pobres
fiéis que seguem Cristo. Enquanto assistia à
missa em Lutterworth, no dia 28 de dezembro de 1384, foi acometido por um
ataque de apoplexia, falecendo 3 dias depois, no último dia do ano. Wycliffe foi um crítico veemente da igreja de seu
tempo. Censurou sua secularização e reivindicou
reformas profundas que eram inaceitáveis para a maioria de seus contemporâneos.
Sua crítica da Igreja institucional e sua valorização da Bíblia são as
mensagens da Reforma do século XVI. No resultado final, a igreja só pode ser
salva pelo arrependimento dos fiéis e quando ela mesma seguir Jesus Cristo na
pobreza, humildade e sofrimento. Wycliffe levava muito a sério essas
exigências: para ele, era um caminho possível que requer, no entanto, uma clara
mudança na própria constituição e doutrina da Igreja. Com certeza a efetivação
das propostas de Wycliffe teria dando uma cara completamente diferente à Igreja
Cristã. Em 1415, o Concílio
de Constança, condenou os ensinamentos de John Wycliffe como
herético. Na Inglaterra, esta sentença é cumprida quando seus restos foram
desenterrados e queimados.
Embora a maior parte do
programa da complexa reforma proposta por Wycliffe foram esquecidas nos transcorrer
dos anos, muitas das suas iniciativas sobreviveu; por exemplo, a pregação simples
dos chamados pregadores "Lollards"[3] que Wycliffe tinham começado
a enviar em seus últimos anos, mais tarde influenciou a Reforma na Inglaterra.
Mas também para além das fronteiras, Wycliffe inspirou homens, como John Hus na
Boêmia e posteriormente todos os reformadores do século XVI.
John
Wycliffe - um reformador? Sim e não. Sim, uma vez que diz
respeito a sua crítica da igreja medieval e sua recuperação da Bíblia. Mas alguns
aspectos teológicos, como a doutrina da justificação, por exemplo, não é
percebido em Wycliffe. O que falta é - do ponto de vista reformado - a
capacidade de relativizar o poder humano. John Wycliffe foi um reformador da Igreja
na qual a Reforma pode construir e desenvolver ainda mais as suas ideias.
John
Wycliffe sobre a Relevância da Bíblia (Escrita em 1378).
Isso, em seguida, o cristianismo tem uma
fundação autônoma, Deus colocou a lei das Escrituras como a regulação, que os
cristãos devem basear-se em tudo o que se relaciona com o seu discurso e o
significado de seus conceitos (...). Apesar de alguns professores acreditarem
que em tempos de Anticristo e seus seguidores cristãos conceber muitas maneiras
de lidar com suas intrigas, parece-me que a fé na Bíblia é a melhor maneira de
dizer se um homem ensina e vive em harmonia com a lei Cristo (...).
Se o amor pela lei corresponde ao amor pelo
legislador, em seguida, como um homem pode amar a Cristo acima de todas as
coisas, se despreza a sua lei ou deixa de seguir a lei dos homens? Ele não ama
mais o fruto da lei que mais ama, e, consequentemente, mais efêmero ama bens
eternos? É exatamente o mesmo com o estudo que o homem dedicado a ampliar seu
conhecimento, porque isso significaria mais amor por Deus se dirigiu à lei de Cristo,
e, portanto, um bem maior. E o mesmo é verdadeiro para aqueles que multiplicam
as leis dos homens, que quebram o estudo da teologia. A lei de Cristo, como é
legada à posteridade na Bíblia, não é suficiente? (...) Devemos acreditar que
aqueles que estudam leis estrangeiras sob o pretexto de entender melhor a lei
de Cristo, preservar e protegê-lo, terá uma desculpa credível para o tribunal,
o juiz supremo? Não são suas próprias ações que denunciam? Eles devem primeiro
examinar-se se entender tanto a lei de Cristo como deveriam sempre se esforçar
para o conhecimento prático dos mandamentos do Senhor, na mesma medida que eles
conhecem as regras dos homens. Eles devem analisar, em segundo lugar, se o
objetivo de seus estudos é um esforço para trazer as pessoas à vida de Cristo,
ou se para viver no gozo e na pompa do mundo mantendo a receita e lucro para si
e suas famílias. Eles devem examinar, em terceiro lugar, se esforçam para a
realização e defesa da lei de Cristo, que é o que sempre guiar na mesma medida
com que defender a sua própria lei! Pelo contrário, não é muito evidente nos
juristas políticos discussão sobre a superioridade e a faixa superior de sua
lei acima da lei de Cristo, e, portanto, buscar mais severamente aqueles que
promovem a lei de Cristo ? E se alguém perguntar-lhes sobre os Dez Mandamentos,
eles geralmente não sabem o número ou encomendá-los! Disto se segue que os
culpados são especialmente nossos teólogos, os nossos monges e padres ricos, nossos
advogados, bloqueando o caminho para a lei de Cristo.
(tradução livre)
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan
Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas
AMARAL, Epaminondas M. do. O
Protestantismo e a Reforma. São Paulo: Livraria Saleluz, 1962.
(Coleção Otoniel Mota I).
ARMESTO-FERNÁNDES, Felipe e WILSON, Derek. Reforma:
o cristianismo e o mundo 1500-2000. Trad. Celina Cavalcante Falck. Rio
de Janeiro: Record, 1997.
BOISSET, J. História do
protestantismo. São Paulo: Difusão Europeia, 1971.
LATOURETTE, Kenneth
Scott. Uma história do cristianismo - volume
II: 1500 a 1975 a.D. São
Paulo: Editora Hagnos, 2006.
DANIEL-ROPS. A igreja da renascença e
da reforma I: a reforma protestante. São Paulo: Ed. Quadrante, 1996,
p. 435.
DELUMEAU, Jean. La Reforma. Barcelona:
Editorial Labor S/A, 1967.
[1] Essa tradução da Bíblia efetivada por
Wycliffe deve ser entendida mais como
movida pelo nacionalismo inglês e menos por uma inclinação popular de
democratização de acesso à Palavra de Deus. Os pobres continuaram sem ter acesso a ela por
dois motivos: o primeiro
é que era cara por sua confecção ainda manual, e segundo, porque o povo continuava
analfabeto. A grande difusão da Bíblia só foi de fato possível com a invenção da imprensa no
século XV e a universalização
da educação a partir do século XIX. Então, somente após o
século XIX reuniram-se as condições para a Bíblia se tornar um livro popular.
[2] Este livro teve grande influência na reforma da Igreja, não
apenas na Inglaterra – que sob Henrique VIII passaria a ter a igreja
subordinada ao Estado e o rei como chefe da Igreja – mas também na Boêmia e na
Alemanha.
[3] Eram padres que não faziam votos nem
recebiam consagração formal, mas dedicavam sua vida a ensinar o Evangelho ao
povo. Estes pregadores itinerantes espalharam os ensinos de Wycliffe pelo
interior da Inglaterra, agrupados dois a dois, de pés descalços, usando longas
túnicas e carregando cajados nas mãos.
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