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sexta-feira, 9 de maio de 2025

Calvino – Profeta Ezequiel o "Canto do Cisne Inacabado de Calvino"

Mesmo para aqueles que conhecem o mínimo do extraordinário trabalho realizado por João Calvino, reformador protestante genebrino, que elaborou (e pregou e lecionou) quase a totalidade dos livros que compõem a Bíblia, resgatar seu comentário sobre o profeta Ezequiel, toca o coração e a alma, não apenas pela qualidade de excelência com que ele tratou cada um de seus comentários bíblicos (e todas suas centenárias obras), mas neste caso em particular pelo fato de constituir seu último trabalho bíblico, visto que antes de poder envia-lo, após rígidos critérios de revisão, para ser editado, o amado reformador, que estava extremamente debilitado fisicamente, veio a falecer, em sua casa, arrodeado pelos amigos, pastores de Genebra e arredores, bem como de muitos de seus alunos (detalhes específicos deste momento de despedida leia o artigo indicado abaixo).

Se não fosse suficiente a qualidades intrínsecas acadêmica e profundamente pastoral, o fato de se constituir seu “Canto do Cisne” literário, torna, ainda que inacabado em sua edição final, parando no capítulo 16, um comentário único em sua singularidade. Para os mais poéticos como eu, ao ler os textos, é possível ouvir com o coração e a alma, ainda que distanciados por séculos, o pulsar da mente e do coração do Mestre (na verdade Doutor) e Pastor João Calvino em seus últimos esforços de oferecer aos leitores cristãos de sua amada comunidade genebrina, e aos cristãos reformados espalhados pelo mundo inteiro, irradiados da Universidade de Genebra por ele iniciada na referida cidade (que ele adotou e foi adotado, visto sua origem francesa),  pois seus escritos continuam sendo lido e edificando vidas ainda hoje.

Meu singelo esforço é apenas colocar em porções homeopáticas o conteúdo desta obra, que, como um bom vinho, quanto mais anos se passam, mais saboroso se torna ao ser degustado, permitindo que seus aromas sejam apreciados em toda a sua riqueza e sutileza. Este é um esforço concomitante com sua obra magistral, as Institutas da Religião Cristã, que você pode acompanhar nos links abaixo.

Com raríssimas exceções, o propósito maior é deixar o Mestre Calvino falar, permitindo que seus comentários e mensagens sejam plenamente apreciados. No entanto, como venho fazendo com as Institutas, inseri algumas poucas questões para reflexão, com o intuito de oferecer ao leitor uma oportunidade de pensar um pouco mais sobre os textos por ele apresentados em cada artigo.

Vamos nos assentar em um dos bancos da Catedral de Saint-Pierre, em Genebra, Suíça, ou em uma das carteiras da sala de aula de João Calvino na Academia de Genebra (fundada em 1559, e posteriormente transformada na Universidade de Genebra após sua morte em 1564, por volta do século XVII). Ali, com avidez e desejo de sermos edificados, ouviremos suas palavras e cresceremos na graça e no conhecimento das Escrituras.

Que o Espírito Santo, que capacitou João Calvino no século XVI, com o mesmo poder capacitador, ilumine ainda hoje nossos corações e mentes, no século XXI pós-moderno, para que possamos apreender os princípios e verdades imutáveis da Palavra de Deus. Amém e amém!

Commentary on Ezekiel

John Calvin

O próprio Ezequiel explica, logo no início de seu Livro, em que período ele cumpriu o ofício profético; e disso depende o conhecimento de seu argumento. Pois, a menos que entendamos como Deus o despertou, podemos com dificuldade entrar em seu espírito e seremos incapazes de receber qualquer fruto justo de sua instrução. É necessário, portanto, começar a partir deste ponto: a saber, o tempo de sua profecia: pois ele diz:

CAPÍTULO 1

CAPUT 1

Primeira Lição

Prima Lectio

1. No trigésimo ano, no quarto mês, no quinto dia do mês (estando eu entre os cativos junto ao rio Quebar, os céus se abriram e tive visões de Deus.

1. Et fuit tricesimo anno, quarto meuse quinta mensis, et ego  f22 in medio Captivitatis,  f23 super fluvium Chebar aperti sunt coeli, et vidi visiones Dei.

2. No quinto dia do mês, que foi o quinto ano do cativeiro do rei Joaquim. 

2. In quinta mensis, ipse est annus quintus captivitatis regis Joiakim.

 

PRIMEIRA LIÇÃO

Ezequiel explica logo no início de seu livro o período em que exerceu seu ofício profético; e a compreensão dessa época é essencial para entender sua mensagem. Pois, se não entendermos como Deus o despertou, dificilmente conseguiremos captar seu espírito e obter proveito de seu ensinamento.

Vemos que o Profeta foi chamado ao ofício de Mestre no quinto ano depois que Joaquim se entregou voluntariamente ao rei da Babilônia (2 Reis 24:15); e foi arrastado para o exílio, junto com sua mãe: pois foi, diz ele, "no trigésimo ano". Pois foi, como ele declara, "no trigésimo ano". A maioria dos comentaristas segue o parafraseador caldeu, interpretando que essa contagem começa a partir da descoberta do Livro da Lei. É evidente que esse ano corresponde ao décimo oitavo ano do reinado de Josias, mas, em minha análise, não concordo com aqueles que adotam essa data. Afinal, a expressão "o trigésimo ano" pareceria excessivamente ambígua e forçada. Em nenhum lugar encontramos registros de que escritores posteriores adotaram essa data como um padrão. Além disso, não há dúvida de que o método usual entre os judeus era iniciar a contagem a partir de um Jubileu, pois esse era o marco inicial para os anos futuros. Por isso, não tenho dúvida de que esse trigésimo ano foi contado a partir do Jubileu. Minha opinião não é inédita, pois Jerônimo a menciona, embora a rejeite completamente, por ter sido levado a erro por uma visão contrária. No entanto, como é certo que os judeus utilizavam esse método de contagem, iniciando a partir do Jobel, ou seja, do Jubileu, essa é a explicação mais adequada para o trigésimo ano. Se alguém objetar que não há registro de que o décimo oitavo ano do rei Josias tenha sido o ano habitual em que cada um retornava às suas terras (Levítico 25), em que os escravos eram libertos e toda a restauração do povo ocorria, a resposta ainda assim é simples.

Embora não possamos determinar com precisão em que ano ocorreu o Jobel, basta atribuir o Jubileu a este período, pois os judeus costumavam contar seus anos a partir dessa instituição. Assim como os gregos tinham suas Olímpiadas e os romanos seus Cônsules, a partir dos quais faziam a contagem de seus anais, os hebreus também tinham um sistema de referência: costumavam iniciar a contagem dos anos a partir do Jobel, o ano do Jubileu, e assim seguiam até a próxima restauração, como mencionei anteriormente. Portanto, é provável que este tenha sido um ano de Jubileu — é provável, então, que este tenha sido o Jubileu.

Diz-se que Josias celebrou a Páscoa com uma pompa e esplendor tão grandiosos que não houve nada semelhante desde o tempo de Samuel (2 Crônicas 35:18). A explicação mais plausível para isso não é que ele sempre realizava a Páscoa com tamanha magnificência, mas que foi levado a fazê-lo por causa da ocasião especial: um momento em que o povo foi restaurado, voltou às suas terras e os escravos foram libertos. Como se tratava do Jubileu, o piedoso rei sentiu-se motivado a celebrar a Páscoa com um esplendor muito maior do que o habitual — chegando até mesmo a superar Davi e Salomão. Além disso, embora tenha reinado por mais treze anos depois desse evento, não há registro de que Josias tenha celebrado outra Páscoa com um esplendor notável. Não há dúvidas de que ele realizava a celebração anualmente, pois isso era um costume estabelecido (2 Reis 23:23). Dessa observação, concluímos que essa celebração específica foi extraordinária e que o ano em questão foi o Jobel. Ainda que isso não esteja explicitamente mencionado nas Escrituras, é suficiente saber que o profeta calculava os anos conforme o método tradicional do povo.

Ele afirma que este foi "o quinto ano do cativeiro do rei Jeconias", também chamado de Jeoaquim. Jeoaquim sucedeu a Josias e reinou por onze anos. Se somarmos os treze anos restantes do reinado de Josias e esses onze anos, chegamos a vinte e quatro anos (2 Reis 23:36).

Seu sucessor, Jeconias, foi rapidamente entregue ao rei Nabucodonosor e levado cativo logo no início de seu reinado, governando apenas por três ou quatro meses (2 Reis 24:8). Depois disso, o último rei, Zedequias, foi colocado no trono por determinação do rei da Babilônia.

E agora devemos considerar a intenção de Deus ao designar Ezequiel como Seu profeta. Jeremias havia proclamado a palavra por trinta e cinco anos, mas com pouco impacto. Deus, então, desejou dar-lhe um auxiliador, alguém que confirmasse sua mensagem e amplificasse seu alcance. Foi um grande alívio para Jeremias saber que o Espírito Santo falava através de outro profeta, em plena harmonia com ele, fortalecendo a verdade de sua pregação.

Jeremias iniciou seu ministério profético no décimo terceiro ano do reinado de Josias (Jeremias 1:2). Se somarmos os dezoito anos restantes de Josias, os onze anos de Jeoaquim, mais um ano e outros cinco, chegamos aos trinta e cinco anos em que Jeremias clamou sem cessar, mesmo diante de um povo indiferente, ou até insensato.

Para socorrê-lo, Deus levantou Ezequiel como profeta em Babilônia, proclamando as mesmas mensagens que Jeremias anunciava em Jerusalém. Sua pregação beneficiava não apenas os cativos, mas também os que permaneceram na cidade e na terra. Essa confirmação era essencial para os exilados, pois havia falsos profetas entre eles, como Acabe, filho de Colaías, e Zedequias, filho de Maaseias (Jeremias 29:21). Esses homens alegavam possuir o Espírito de revelação, faziam promessas grandiosas e desprezavam aqueles que haviam deixado sua pátria. Incentivavam resistência até o fim, afirmando que lutar pela terra prometida era a única opção digna.

Além deles, havia Semaías, o nehelamita (Jeremias 29:24), que escreveu ao sumo sacerdote Sofonias, repreendendo-o por não castigar Jeremias, acusando-o de falso profeta e impostor. Diante da atuação de tais agentes do engano, Deus posicionou Ezequiel no exílio, evidenciando o quanto sua missão era não apenas útil, mas indispensável.

Mas sua influência ia além dos cativos. Os habitantes de Jerusalém também foram obrigados a prestar atenção às profecias de Ezequiel, anunciadas na Caldeia. Ao perceberem que suas mensagens estavam em plena sintonia com as de Jeremias, inevitavelmente se perguntaram sobre essa impressionante coincidência. Afinal, não é natural que dois profetas, em locais distintos, proclamem suas palavras em perfeita harmonia, como dois cantores unindo suas vozes no mesmo tom.

Essa sincronia entre Ezequiel e Jeremias forma uma melodia profética inigualável. Agora compreendemos melhor o significado do que Ezequiel escreve sobre os anos: "No trigésimo ano, no quarto mês e no quinto dia do mês, quando eu estava entre os cativos."

Antes de avançar, farei uma breve abordagem dos temas tratados por Ezequiel. Como mencionei, ele compartilha muitos aspectos em comum com Jeremias, mas com uma particularidade: Ezequiel anuncia o último juízo contra o povo, pois eles continuavam a acumular iniquidade sobre iniquidade, intensificando ainda mais a ira divina.

Por isso, ele os ameaça repetidamente, não apenas uma vez, pois o coração endurecido do povo tornava insuficiente proclamar o juízo de Deus três ou quatro vezes—era necessário reforçá-lo constantemente. Ao mesmo tempo, Ezequiel expõe as razões pelas quais Deus decidiu punir severamente Seu povo: estavam contaminados por superstições, eram perversos, avarentos, cruéis e corruptos, entregues ao luxo e à depravação. O profeta reúne todos esses aspectos para demonstrar que o julgamento divino não é excessivo, pois o povo havia alcançado o ápice da impiedade e da maldade.

Entretanto, em meio às advertências, Ezequiel também oferece vislumbres da misericórdia de Deus. Afinal, as ameaças seriam inúteis sem uma promessa de redenção. Se a ira de Deus se manifestasse sem qualquer esperança, os homens seriam lançados ao desespero, e este os levaria à loucura. Quando alguém percebe a severidade do juízo divino, inevitavelmente se angustia e, como uma fera enraivecida, volta-se contra o próprio Deus.

Por essa razão, afirmei que todas as advertências são vãs sem um vislumbre da misericórdia divina. Os profetas não argumentam com os homens senão para levá-los ao arrependimento—e isso só seria possível se houvesse a certeza de que Deus poderia se reconciliar com aqueles que dEle haviam se afastado. Assim, tanto Ezequiel quanto Jeremias, ao repreenderem o povo, temperam sua severidade com promessas de restauração.

Além disso, Ezequiel profetiza contra diversas nações pagãs, como Jeremias, incluindo os amonitas, moabitas, tirios, egípcios e assírios (Jeremias 26-29). A partir do capítulo quarenta, ele passa a tratar extensivamente sobre a restauração do Templo e da cidade, anunciando que um novo estado surgiria, no qual a realeza voltaria a florescer e o sacerdócio recuperaria sua antiga glória. Até o fim do livro, ele revela as singulares bênçãos de Deus, que seriam concedidas após o término dos setenta anos de exílio.

Neste ponto, é útil recordar o que observamos no caso de Jeremias (Jeremias 28): enquanto os falsos profetas prometiam ao povo um retorno imediato, dentro de três ou cinco anos, os verdadeiros profetas anunciavam o que realmente aconteceria. Assim, o povo deveria se submeter pacientemente à correção divina e entender que o longo período de exílio não deveria abalar sua confiança na justiça de Deus.

Agora que compreendemos o que nosso profeta está tratando, bem como a direção e o conteúdo de seu ensinamento, avancemos para o contexto.

Ele declara: “estando entre os cativos.” Alguns intérpretes procuram explicar suas palavras de maneira sofisticada, argumentando que Ezequiel não estava realmente entre os exilados, mas que essa passagem se referiria a uma visão. Segundo essa leitura, o termo "entre", no sentido de "no meio", poderia indicar sua participação em uma assembleia do povo. No entanto, sua intenção é bem diferente: ele emprega essa expressão para demonstrar que compartilhava do exílio com os demais, e ainda assim recebeu o espírito profético naquela terra contaminada.

Portanto, a frase “entre os cativos” ou “no meio dos cativos” não indica uma reunião pública, mas simplesmente afirma que, embora o profeta estivesse distante da Terra Sagrada, a mão de Deus ainda se estendia até ele, concedendo-lhe o dom profético. Isso refuta aqueles que negavam que Ezequiel já possuía o Espírito de revelação antes do exílio. Esses críticos não erram apenas por desconhecimento, mas por pura obstinação, pois os judeus resistiam profundamente à ideia de que Deus pudesse reinar fora da terra santa.

Até hoje, muitos ainda mantêm essa rigidez, mesmo dispersos pelo mundo, pois preservam traços do antigo orgulho. Na época, porém, quando havia esperança de retorno, considerar a manifestação de Deus fora da Terra Sagrada parecia um sacrilégio, especialmente se ocorresse fora do Templo. Ezequiel, então, evidencia que foi chamado ao ofício profético no meio dos exilados, sendo um deles.

Aqui se revela a inestimável bondade de Deus, pois Ele chama o profeta do abismo—e Babilônia, naquele período, era um abismo profundo. Assim, o Espírito Santo surge com seu instrumento, levantando Ezequiel como mensageiro e anunciador do juízo, mas também da graça divina.

Portanto, testemunhamos como Deus faz resplandecer a luz nas trevas, ao convocar Ezequiel ao seu ministério durante o exílio.

Além disso, embora seu ensinamento fosse útil aos judeus que ainda permaneciam na terra, Deus não queria que voltassem a Ele sem antes carregarem um sinal de sua desonra. Afinal, desprezaram as profecias proferidas no Templo, no Santuário e em Sião. Agora, as revelações brotariam daquela terra impura, por meio de um mestre que, como mencionei, estava afundado naquele abismo profundo.

Com isso, Deus castiga o desprezo do povo por Sua palavra, expondo sua rebeldia. Por muito tempo, Isaías exerceu o ministério profético, depois veio Jeremias, mas o povo continuava tão endurecido quanto antes.

Como desprezaram a profecia quando esta fluía diretamente da fonte, Deus levantou um profeta na Caldeia. Assim, agora podemos entender o significado completo dessa passagem.

Ele menciona "o rio Quebar", que muitos identificam com o Eufrates, mas sem apresentar razões concretas para isso—apenas porque não encontram outro rio célebre na região. A justificativa oferecida é que o Tigre perde seu nome ao desaguar no Eufrates, levando alguns a sugerirem que Quebar seria, na verdade, o próprio Eufrates. No entanto, não há certeza sobre a localização exata do exílio do profeta: pode ter sido na Mesopotâmia ou mesmo além da Caldeia. Além disso, como o Eufrates tem muitos afluentes, é provável que cada um tivesse seu próprio nome.

Diante dessas incertezas, prefiro deixar a questão em aberto.

Como a visão profética ocorreu às margens do rio, alguns interpretam que suas águas eram, de certa forma, consagradas para revelações. Buscando justificativas, argumentam que a água é mais leve que a terra, e como um profeta deve elevar-se acima do mundo material, a água seria um elemento adequado para as manifestações divinas. Outros relacionam isso à purificação, sugerindo que o batismo estaria prefigurado nesse episódio.

Contudo, deixo de lado tais sutilezas, pois elas se dissolvem por si mesmas. Evito essas especulações porque, ao seguir esse caminho, a Escritura perderia sua solidez. Embora conjecturas desse tipo pareçam plausíveis, devemos buscar na Escritura ensinamentos seguros e firmes, nos quais possamos confiar.

Há quem distorça, por exemplo, a passagem:
"Junto aos rios de Babilônia, ali nos assentamos e choramos" (Salmo 137:1)—como se o povo tivesse procurado as margens dos rios para orar e cultuar. No entanto, o texto simplesmente descreve a geografia da região, destacando seus numerosos cursos d’água, como mencionei anteriormente.

Contudo, deixo de lado tais sutilezas, pois elas se dissolvem por si mesmas. Evito essas especulações porque, ao seguir esse caminho, a Escritura perderia sua solidez. Embora conjecturas desse tipo pareçam plausíveis, devemos buscar na Escritura ensinamentos seguros e firmes, nos quais possamos confiar.

Há quem distorça, por exemplo, a passagem:
"Junto aos rios de Babilônia, ali nos assentamos e choramos" (Salmo 137:1)—como se o povo tivesse procurado as margens dos rios para orar e cultuar. No entanto, o texto simplesmente descreve a geografia da região, destacando seus numerosos cursos d’água, como mencionei anteriormente.

Ele declara: “os céus se abriram, e eu vi visões de Deus”. Quando Deus abre os céus, isso não significa uma abertura física, mas sim a remoção de todo obstáculo que impeça os fiéis de contemplarem Sua glória celestial. Afinal, mesmo que os céus fossem rasgados mil vezes, ainda assim a luz divina seria imensurável.

O sol, embora nos pareça pequeno, supera em tamanho a Terra; os demais planetas, exceto a lua, são como centelhas, e o mesmo vale para as estrelas. Assim, se até a luz natural enfraquece à medida que tentamos penetrar na vastidão do cosmos, como então poderíamos vislumbrar a glória incompreensível de Deus?

Portanto, ao abrir os céus, Deus não apenas remove barreiras, mas também concede nova visão aos seus servos, permitindo-lhes ultrapassar dimensões que normalmente seriam inalcançáveis. Foi isso que aconteceu com Estêvão, ao contemplar os céus abertos (Atos 7:56)—seus olhos foram iluminados por uma percepção extraordinária. Da mesma forma, no batismo de Cristo, os céus foram abertos (Mateus 3:16) de maneira que João Batista pôde ter uma visão elevada e sobrenatural.

No mesmo sentido, Ezequiel emprega essa expressão, dizendo: “os céus se abriram.”

Ele acrescenta: “eu vi visões de Deus.” Alguns entendem que isso se refere a visões extremamente sublimes, porque na Escritura tudo o que é excelente pode ser chamado de divino—como montes e árvores grandiosas, que recebem a designação de montes e árvores de Deus. No entanto, essa interpretação parece limitada. É mais plausível que Ezequiel esteja se referindo à inspiração profética, declarando assim que foi enviado por Deus, pois, ao assumir essa missão, ele deixou de lado suas limitações humanas para se tornar instrumento da revelação divina.

Não surpreende que ele utilize essa expressão, pois era difícil de acreditar que um profeta pudesse surgir na Caldeia. Assim como Natanael questionou se alguma coisa boa poderia vir de Nazaré, (João 1:46), os judeus não conseguiam conceber que a luz da doutrina celestial pudesse brilhar na Babilônia ou que um profeta da graça divina surgisse naquela terra estrangeira.

Essa incredulidade tornava essencial que o chamado de Ezequiel fosse marcado de maneira clara e extraordinária.

Ele então menciona que esta visão ocorreu no quinto ano do cativeiro do rei Jeconias (Jehoiachin, Jeconias ou Jechanias), destacando a teimosia do povo. Quando Deus castiga severamente, no início somos abalados, mas com o tempo acabamos nos submetendo. Contudo, após cinco anos, os judeus ainda não haviam se humilhado diante de Deus—o que evidencia sua persistência na rebeldia.

Além disso, aqueles que permaneceram em Jerusalém se orgulhavam, acreditando que tinham sido poupados do exílio e por isso desprezavam seus irmãos cativos. Jeremias frequentemente menciona essa atitude arrogante entre os judeus que ficaram na terra.

Dessa forma, Ezequiel enfatiza a data, pois era necessário confrontar essa arrogância, já que os judeus rejeitaram as profecias de Jeremias. Agora, Deus levantava um segundo martelo, para parti-los completamente, e esse martelo era Ezequiel.

Essa é a razão pela qual ele destaca o quinto ano do cativeiro do rei Jeconias—para expor a obstinação do povo e tornar evidente a dureza de seu coração diante do juízo divino.

Se precisar de refinamentos ou ajustes na linguagem, estou à disposição! 😊✨

Dessa forma, Ezequiel enfatiza a data, pois era necessário confrontar essa arrogância, já que os judeus rejeitaram as profecias de Jeremias. Agora, Deus levantava um segundo martelo, para parti-los completamente, e esse martelo era Ezequiel.

Essa é a razão pela qual ele destaca o quinto ano do cativeiro do rei Jeconias—para expor a obstinação do povo e tornar evidente a dureza de seu coração diante do juízo divino.

 

Utilização desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Reflexão Bíblica
http://reflexaoipg.blogspot.com.br/

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Referência Bibliográfica
CALVIN, John. Commentary on Ezekiel - Volume 1. www.reformedontheweb.com/home/.html (Reformed on the Web)

 

 


sábado, 3 de maio de 2025

CALVINO em Cinco Minutos – O Que o Conhecimento de Deus Faz em Nós?



Como mencionado no artigo anterior, a proposta nesta série é simples e objetiva – deixar Calvino falar. Seu propósito primário parra elaboração das Institutas foi pedagógico fornecendo uma base sólida para que cada cristão possa estabelecer suas bases doutrinas no único fundamento que a Palavra de Deus. No quadro abaixo o que está em negrito é o tema deste artigo, o que não está é um tema anteriormente aborda e pode ser lido conforme abaixo indicado em Artigos Relacionados.

Vamos ouvir então mestre João Calvino.

Observação: Para melhor aproveitamento dos artigos achei oportuno colocar algumas questões para reflexão no final de cada texto de Calvino.

LIVRO 1 – (18 capítulos)

O CONHECIMENTO DE DEUS E O CONHECIMENTO DE NÓS MESMOS SÃO COISAS CORRELATAS E SE INTER-RELACIONAM

O Conhecimento de nós mesmos nos conduz ao conhecimento de Deus

O conhecimento de Deus, humilha nosso orgulho, desvenda nossa hipocrisia, demonstra as perfeições absolutas de Deus e nosso próprio desamparo.

Por outro lado, é evidente que o homem nunca alcança um verdadeiro autoconhecimento até que tenha contemplado previamente a face de Deus e descido após tal contemplação para olhar para dentro de si mesmo. Pois (tal é o nosso orgulho inato) sempre parecemos justos, retos, sábios e santos, até que estejamos convencidos, por evidências claras, de nossa injustiça, vileza, loucura e impureza. Convencidos, no entanto, de que não estamos, se olharmos apenas para nós mesmos, e não também para o Senhor - Ele sendo o único padrão pela aplicação do qual essa convicção pode ser produzida. "Pois, uma vez que todos nós somos naturalmente propensos à hipocrisia, qualquer aparência de justiça é suficiente para nos satisfazer em vez da própria justiça. E como nada aparece dentro de nós ou ao nosso redor que não esteja contaminado com uma impureza muito grande, enquanto mantivermos nossa mente dentro dos limites da poluição humana, qualquer coisa que seja em algum grau menos contaminada nos deleita como se fosse mais pura: assim como um olho, ao qual nada além de preto havia sido previamente apresentado, considera um objeto de tonalidade esbranquiçada, ou mesmo acastanhada, perfeitamente branco. Não, o sentido corporal pode fornecer uma ilustração ainda mais forte do quanto somos iludidos ao estimar os poderes da mente. Se, ao meio-dia, olharmos para o chão ou para os objetos ao redor que estão abertos à nossa vista, pensamos que somos dotados de uma visão muito forte e penetrante; mas quando olhamos para o sol e olhamos para ele sem véu, a visão que fez muito bem para a terra está - constantemente tão deslumbrada e confusa com a refulgência, que nos obriga a confessar que nossa perspicácia em discernir objetos terrestres é mera escuridão quando aplicada ao sol. Da mesma forma, isso acontece ao estimarmos nossas qualidades espirituais. Enquanto não olhamos além da terra [humanidade], ficamos bastante satisfeitos com nossa própria retidão, sabedoria e virtude; nos dirigimos a nós mesmos com termos extremamente lisonjeiros e nos vemos como pouco menos que semideuses.

Mas, se começarmos a elevar nossos pensamentos a Deus e refletirmos sobre que tipo de Ser Ele é e quão absoluta é a perfeição daquela retidão, sabedoria e virtude, à qual somos chamados a nos conformar como padrão, aquilo que antes nos encantava com sua falsa aparência de justiça se tornará corrompido pela maior iniquidade; o que nos enganava sob o nome de sabedoria nos parecerá repulsivo por sua extrema insensatez; e o que aparentava ser uma força virtuosa será condenado como a mais miserável impotência.

Tão distantes estão as qualidades que em nós parecem mais perfeitas de qualquer semelhança com a pureza divina.

 

João Calvino

Institutas da Religião Cristã

1559

 

Questões Para reflexão

1.     O autoconhecimento depende apenas da introspecção humana ou exige uma referência externa, como Deus, para ser completo?

2.     Por que tendemos a nos iludir sobre nossa própria justiça, sabedoria e virtude?

3.     O que acontece quando começamos a ver nossas qualidades sob a luz da perfeição divina?

4.     A ilusão da visão física pode ser comparada à ilusão da mente?

 

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Referências Bibliográficas

CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã, edição clássica, em quatro volumes, tradução de Waldyr Carvalho Luz, com base na edição de 1559 em latim. São Paulo: Editora Cultura Cristã, Primeira Edição, 1984.

___________. As Institutas ou Instituição da Religião Cristã (da edição original francesa de 1541). Tradução e leitura de provas Odayr Olivetti; revisão e notas de estudo e pesquisa Herminsen Maia Pereira da Costa. 1ª edição. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002.

___________. As Institutas ou Instituição da Religião Cristã, em dois volumes, tradução de Carlos Eduardo de Oliveira [vol 1], Omayr J. de Moraes Jr. e Elaine C. Sartorelli [vol 2], com base na edição de 1559 em latim. São Paulo: Editora da UNESP, 2008 [vol 1] e 2009 [vol 2].

CALVINO, João. O Livro dos Salmos. Tradução Valter Graciano Martins. São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 1.

D'AUBIGNÉ, J. H. Merle. The Reformation in Europe in the time of Calvin. Vol. VIII. Translated William L. R. Cates. New York: Robert Carter and Brothers, 1879.

FERREIRA, Wilson Castro. Calvino: vida, influência e teologia. Campinas, SP: Edição de Luz Para o Caminho, 1985.

HALL, David W. e LILLBACK, Peter A. (Eds.). A Theological Guide to Calvin's Institutes – essays and analysis. Phillipsburg, New Jersey, P & R Publishing, 2008. [PACKER, J. I, Prefácio, p. xiii].

WILEMAN, Willian. John Calvin: his life, his teaching, and his influence. London: Robert Banks and Son.

 

sábado, 26 de abril de 2025

Calvino Pela Perspectiva de Sua Correspondência

Poucos personagens históricos têm produzido, ao longo dos séculos, tanta controvérsia quanto o reformador genebrino João Calvino. Seus adversários históricos o descreveram com os adjetivos e substantivos mais implacáveis encontrados nos dicionários — autoritário, dogmático, disciplinador rigoroso, destituído de senso de humor, avesso às artes de forma geral e à música em particular, entre tantos outros termos pejorativos possíveis. E o pior é que, mesmo aqueles que reconhecem suas muitas qualidades e qualificações acadêmicas, e até se denominam calvinistas, silenciam em uma concordância velada — e diria até acovardada — diante dessa intensa campanha difamatória sobre sua personalidade e suas múltiplas obras teológicas e pastorais, construída ao longo dos séculos.

Todavia, quando nos permitimos conhecê-lo despido dessa "capa desqualificatória" que lhe impuseram, descobrimos, surpreendentemente, um homem temente a Deus, que viveu intensamente para a glória Dele e a serviço da Igreja de Cristo, seus dois maiores tesouros neste mundo. Uma pessoa que cultivou uma infinidade de amizades, algumas por toda a vida, que amou e foi intensamente amado. Um homem que lutou todos os seus dias contra diversas enfermidades físicas e emocionais, que perdeu filho e esposa em decorrência dessas enfermidades. Mas, acima de tudo, uma pessoa humilde, que não acumulou fortuna na terra, mas investiu todos os seus dias na eternidade.

Uma das fontes de sua riqueza, que revela por completo este reformador de Genebra, são as mais de três mil correspondências que ele manteve ao longo de sua vida. Sem internet e sem WhatsApp (imagine só!), munido apenas de uma pena, tinteiro e papel, ele se correspondeu com milhares de pessoas — desde imperadores, reis e rainhas, até pastores, comunidades cristãs, leigos, homens e mulheres, jovens e idosos, sem distinção. Algumas dessas correspondências equivalem a verdadeiros tratados teológicos, enquanto outras são simples e tocantes cartas pastorais — cheias de conforto, encorajamento e apoio nos momentos mais críticos vividos pelos seus destinatários.

Ao ler essas milhares de correspondências, torna-se impossível sustentar a visão de que João Calvino era um líder egocêntrico e destituído de sentimentos. Nelas, ele chora com os que choram e se alegra com os que se alegram. Ele demonstra total solidariedade com todas as nuances da vida de seus amigos, embora seja implacável com os inimigos do Evangelho, da Igreja e de seu Senhor e Salvador Jesus Cristo. São esses últimos que, até os dias de hoje, continuam a denegrir sua imagem, esforçando-se persistentemente para atribuir-lhe os terríveis atributos pejorativos mencionados.

Mas tais críticos têm falhado miseravelmente. Hoje, em pleno século XXI, na chamada pós-modernidade, presenciamos o ressurgimento da figura desse Reformador do século XVI e a revitalização de sua obra máxima de teologia — As Institutas. Também há uma redescoberta de seus múltiplos comentários dos livros que compõem a Bíblia e uma reafirmação de seu sistema de governo eclesiástico, denominado Presbiterianismo. Nunca antes se falou e escreveu tanto sobre João Calvino. Suas Institutas da Religião Cristã (magnum opus), que capturam a essência de uma compreensão sistemática reformada das Escrituras, continuam sendo reimpressas em centenas de idiomas. Da mesma forma, a fecunda atualidade de seus preciosos comentários bíblicos é redescoberta, pois eles expõem, com fidelidade exegética e hermenêutica, sem perder a força pujante de um coração pastoral, zeloso pelas vidas preciosas que compõem a Igreja de Cristo.

Ninguém que zela pela verdade deveria tratar da vida de Calvino sem antes ler suas correspondências. Embora seja impossível ler todas as milhares delas, pelo menos algumas das inúmeras seleções impressas em inglês deveriam ser consideradas (não encontrei edições em espanhol e muito menos em português, já que as editoras evangélicas não as consideram “vendáveis”).

Na verdade, em diversos momentos, Calvino admitiu que, se pudesse escolher, seria um escritor e correspondente de “tempo integral”. Todavia, ele tinha plena consciência de que isso não lhe seria permitido devido às suas grandes responsabilidades pastorais e educacionais. Nada lhe proporcionava maior satisfação do que reservar tempo para se corresponder com as mais diversas pessoas, sobre os mais variados temas. Muitas vezes, precisava de vários dias para organizar e redigir suas cartas, dado seu permanente cuidado com a coerência e a fundamentação bíblica, características marcantes de sua personalidade.

Nenhum assunto era pequeno demais ou grande demais para não merecer sua atenção e tempo. Fosse uma crítica aos seus escritos, um desabafo de um amigo, dúvidas profundas ou até mesmo meras curiosidades especulativas, ele tinha o cuidado de responder com a mesma acuidade e seriedade.

Uma das máximas vivenciais de Calvino era que nada era pequeno ou grande demais; tudo estava entrelaçado com a vontade soberana de Deus, visando à edificação da Igreja por meio das vidas de cada crente. Parafraseando uma expressão popularizada (ainda que muitas vezes distorcida): cada crente importa, pois foi resgatado das trevas e transportado para o reino de Cristo.

Uma sugestiva seleção de suas correspondências é a organizada por Bonnet (2009), que oferece um vislumbre de seus múltiplos relacionamentos e preocupações com as mais diversas facetas da vida cotidiana das pessoas. Entre elas, encontramos desde sofrimentos até questões amorosas, como quando e com quem se casar. O cuidado que ele tinha por sua amada esposa, Idelette de Bure, é notável, e o sofrimento causado pela morte precoce dela feriu profundamente sua alma.

Essa seleção limitada ainda nos permite reconstruir mentalmente a ampla, contínua e crescente teia de amigos — mais chegados do que irmãos — que se entrelaçavam com sua vida pessoal, assim como a ponta do iceberg de seus críticos contumazes. Afinal, quem não tem inimigos é porque nunca teve amigos.

As leituras dessa ampla correspondência corrigem o grande equívoco, implantado na mente de muitos, de que Calvino era, em decorrência de sua formação acadêmica, muito mais um teórico político do que um teólogo e pastor. Tal concepção não encontra consistência alguma em suas correspondências (bem como em qualquer de suas outras obras). Trata-se de uma pseudo-difamação criada para afastar possíveis leitores de seus ensinos e de sua teologia. Sua única regra de fé e produção literária sempre foi, desde as primeiras linhas até as últimas, a infalível, insubstituível e inegociável Palavra de Deus. Isso, naturalmente, sempre fez o braseiro do inferno arder mais intensamente.

Mas, para aqueles que não se satisfazem em apenas “ouvir” falar de João Calvino e desejam conhecê-lo de fato e de verdade, a leitura de suas correspondências é imprescindível. Ouça Calvino abrindo o coração e a alma; sinta o pulsar de seu coração; estremeça diante de suas indignações contra todo erro que afronta o ensino eminentemente bíblico.

A leitura de seu extenso corpus de correspondências também nos permite inferir a progressão de maturação teológica e eclesiológica que ele desenvolveu ao longo de sua vida. A impressão que se tem dos “calvinistas” atuais (e não tão atuais) é a de que todo o seu arcabouço de conhecimento teológico já estava pronto, e ele apenas o acessou — como fazemos hoje com sistemas de Inteligência Artificial. No entanto, seu conhecimento começou como o de qualquer outro, sendo enriquecido ao longo de toda sua jornada. Suas Institutas são a prova concreta desse fato, pois, a cada reedição, eram acrescidas novas proposições que, embora não alterassem a essência de suas teses, acrescentavam novos subsídios e argumentos, fortalecendo ainda mais seus pressupostos teológicos bíblicos.

Calvino, como qualquer outro, não nasceu um teólogo pronto. Suas cartas revelam claramente que seu desenvolvimento teológico ia além do ambiente acadêmico e se entrelaçava com sua prática vivencial e pastoral. À medida que sua correspondência se intensificava, ele aprendia a lidar com a pluralidade de opiniões divergentes, o que não lhe permitia acomodar-se nos louros alcançados. Pelo contrário, isso o impelia constantemente a buscar novos subsídios para as suas ênfases teológicas e para sua prática de ensino, seja no campo acadêmico ou pastoral.

Essas correspondências nos permitem discernir seus distintivos eclesiológicos de fé — uma definição cada vez mais clara de suas doutrinas — paralelamente ao seu desenvolvimento em termos de comunhão e espiritualidade.

Fragilidade Física e Emocional

Desde sua juventude, Calvino enfrentou toda sorte de pressões. A morte precoce de sua mãe, quando ele tinha aproximadamente seis anos; a rigidez educacional de seu pai, que desejava que ele seguisse a carreira de advogado e, posteriormente, a eclesiástica; sua conversão e envolvimento com o movimento da Reforma; sua fuga da perseguição na França; e a pressão de Guilherme Farel para que assumisse um papel efetivo no movimento reformista em Genebra marcaram profundamente sua trajetória. A partir desse ponto, ele viveu sob o peso da liderança reformada até seu último dia.

Além dos inimigos externos, o que mais o feriu foram as perseguições internas. Ele chegou a ser destituído do pastorado da igreja em Genebra, mas, posteriormente, a pedido e até contrariado, retomou seu ofício pastoral e acadêmico, que exerceu até o fim de sua vida. Complôs contra sua vida eram uma constante.

Suas enfermidades apenas se agravaram ao longo dos anos e, por diversas vezes, ele ficou entre a vida e a morte. Em suas correspondências, Calvino menciona essas provações físicas e emocionais, listando as enfermidades que o afligiram: artrite, gota, tuberculose, pleurisia, enxaquecas, hemorroidas, febre quartã, dispepsia, asma e crises renais agudas. Mesmo nesse contexto, ele demonstrava uma determinação impressionante. Muitas vezes, teve que pregar sentado ou ser carregado até a igreja, quando não conseguia andar.

Apesar de todas as adversidades, ele nunca deixou de dar prosseguimento ao seu trabalho, seja na correspondência, nos livros ou nas pregações e aulas na Academia de Genebra.

Em um dos momentos mais agudos de sua vida, após a morte de sua esposa Idelette de Bure, Calvino escreveu a dois de seus amigos mais preciosos, Pierre Viret e Guilherme Farel, dizendo que havia perdido a melhor parte de si mesmo. Vivenciando plenamente sua fragilidade emocional, Calvino encontrou força e apoio nos amigos próximos. Essa experiência reflete sua humanidade e sensibilidade, além de sua firme convicção na infalível providência de Deus.

Este artigo já ultrapassou, e muito, o espaço adequado para um blog. No entanto, desafio você, caro leitor, a explorar as referências abaixo e acessar essas preciosidades das correspondências de Calvino. Investir seu tempo nessas leituras certamente será recompensador.

 

Utilização livre desde que citando a fonte

Guedes, Ivan Pereira

Mestre em Ciências da Religião.

Universidade Presbiteriana Mackenzie

me.ivanguedes@gmail.com

Outro Blog

Reflexão Bíblica

http://reflexaoipg.blogspot.com.br/


 Referências Bibliográficas

AUGUSTIJN, C., Burger, C. & Van Stam, F.P., 2002, ‘Calvin in the light of the early letters’, in H.J. Selderhuis (ed.), Calvinus Praeceptor Ecclesiae: Papers of the International Congress on Calvin Research, pp. 139–157, Princeton, Droz, Geneva.

BEVERIDGE, Henry; BONNET, Jules (Eds.). Selected works of John Calvin: tracts and letters. Grand Rapids, Mich.: Baker Book House, 1983.

BEZA, T. The life of John Calvin, transl. F. Sibson, Philadelphia. 1836. [primeira biografia de João Calvino].

CALVIN, John. Selected works of John Calvin: tracts and letters. Grand Rapids, Mich.: Baker Book House, 1983. Edited by Henry Beveridge and Jules Bonnet.

COTTRET, Bernard. Calvin, a biography. Grand Rapids, Michigan; Cambridge: William B. Eerdmans Publishing Company, 1995.

CALVIN OPERA - Ioannis Calvini opera quae supersunt omnia [todas as obras].

DANIEL-ROPS. Morte e Glória de João Calvino. Morte e Glória de João Calvino - Daniel-Rops

REYBURN, Hugh Y. John Calvin: his life, letters, and work. London: Hodder and Stoughton, 1914.

SCHALKWIJK, Frans Leonard. O Brasil na Correspondência de Calvino. Fides reform-.004-077 a 184.pdf [transcrição destas cartas].

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