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sábado, 26 de abril de 2025

Calvino Pela Perspectiva de Sua Correspondência

Poucos personagens históricos têm produzido, ao longo dos séculos, tanta controvérsia quanto o reformador genebrino João Calvino. Seus adversários históricos o descreveram com os adjetivos e substantivos mais implacáveis encontrados nos dicionários — autoritário, dogmático, disciplinador rigoroso, destituído de senso de humor, avesso às artes de forma geral e à música em particular, entre tantos outros termos pejorativos possíveis. E o pior é que, mesmo aqueles que reconhecem suas muitas qualidades e qualificações acadêmicas, e até se denominam calvinistas, silenciam em uma concordância velada — e diria até acovardada — diante dessa intensa campanha difamatória sobre sua personalidade e suas múltiplas obras teológicas e pastorais, construída ao longo dos séculos.

Todavia, quando nos permitimos conhecê-lo despido dessa "capa desqualificatória" que lhe impuseram, descobrimos, surpreendentemente, um homem temente a Deus, que viveu intensamente para a glória Dele e a serviço da Igreja de Cristo, seus dois maiores tesouros neste mundo. Uma pessoa que cultivou uma infinidade de amizades, algumas por toda a vida, que amou e foi intensamente amado. Um homem que lutou todos os seus dias contra diversas enfermidades físicas e emocionais, que perdeu filho e esposa em decorrência dessas enfermidades. Mas, acima de tudo, uma pessoa humilde, que não acumulou fortuna na terra, mas investiu todos os seus dias na eternidade.

Uma das fontes de sua riqueza, que revela por completo este reformador de Genebra, são as mais de três mil correspondências que ele manteve ao longo de sua vida. Sem internet e sem WhatsApp (imagine só!), munido apenas de uma pena, tinteiro e papel, ele se correspondeu com milhares de pessoas — desde imperadores, reis e rainhas, até pastores, comunidades cristãs, leigos, homens e mulheres, jovens e idosos, sem distinção. Algumas dessas correspondências equivalem a verdadeiros tratados teológicos, enquanto outras são simples e tocantes cartas pastorais — cheias de conforto, encorajamento e apoio nos momentos mais críticos vividos pelos seus destinatários.

Ao ler essas milhares de correspondências, torna-se impossível sustentar a visão de que João Calvino era um líder egocêntrico e destituído de sentimentos. Nelas, ele chora com os que choram e se alegra com os que se alegram. Ele demonstra total solidariedade com todas as nuances da vida de seus amigos, embora seja implacável com os inimigos do Evangelho, da Igreja e de seu Senhor e Salvador Jesus Cristo. São esses últimos que, até os dias de hoje, continuam a denegrir sua imagem, esforçando-se persistentemente para atribuir-lhe os terríveis atributos pejorativos mencionados.

Mas tais críticos têm falhado miseravelmente. Hoje, em pleno século XXI, na chamada pós-modernidade, presenciamos o ressurgimento da figura desse Reformador do século XVI e a revitalização de sua obra máxima de teologia — As Institutas. Também há uma redescoberta de seus múltiplos comentários dos livros que compõem a Bíblia e uma reafirmação de seu sistema de governo eclesiástico, denominado Presbiterianismo. Nunca antes se falou e escreveu tanto sobre João Calvino. Suas Institutas da Religião Cristã (magnum opus), que capturam a essência de uma compreensão sistemática reformada das Escrituras, continuam sendo reimpressas em centenas de idiomas. Da mesma forma, a fecunda atualidade de seus preciosos comentários bíblicos é redescoberta, pois eles expõem, com fidelidade exegética e hermenêutica, sem perder a força pujante de um coração pastoral, zeloso pelas vidas preciosas que compõem a Igreja de Cristo.

Ninguém que zela pela verdade deveria tratar da vida de Calvino sem antes ler suas correspondências. Embora seja impossível ler todas as milhares delas, pelo menos algumas das inúmeras seleções impressas em inglês deveriam ser consideradas (não encontrei edições em espanhol e muito menos em português, já que as editoras evangélicas não as consideram “vendáveis”).

Na verdade, em diversos momentos, Calvino admitiu que, se pudesse escolher, seria um escritor e correspondente de “tempo integral”. Todavia, ele tinha plena consciência de que isso não lhe seria permitido devido às suas grandes responsabilidades pastorais e educacionais. Nada lhe proporcionava maior satisfação do que reservar tempo para se corresponder com as mais diversas pessoas, sobre os mais variados temas. Muitas vezes, precisava de vários dias para organizar e redigir suas cartas, dado seu permanente cuidado com a coerência e a fundamentação bíblica, características marcantes de sua personalidade.

Nenhum assunto era pequeno demais ou grande demais para não merecer sua atenção e tempo. Fosse uma crítica aos seus escritos, um desabafo de um amigo, dúvidas profundas ou até mesmo meras curiosidades especulativas, ele tinha o cuidado de responder com a mesma acuidade e seriedade.

Uma das máximas vivenciais de Calvino era que nada era pequeno ou grande demais; tudo estava entrelaçado com a vontade soberana de Deus, visando à edificação da Igreja por meio das vidas de cada crente. Parafraseando uma expressão popularizada (ainda que muitas vezes distorcida): cada crente importa, pois foi resgatado das trevas e transportado para o reino de Cristo.

Uma sugestiva seleção de suas correspondências é a organizada por Bonnet (2009), que oferece um vislumbre de seus múltiplos relacionamentos e preocupações com as mais diversas facetas da vida cotidiana das pessoas. Entre elas, encontramos desde sofrimentos até questões amorosas, como quando e com quem se casar. O cuidado que ele tinha por sua amada esposa, Idelette de Bure, é notável, e o sofrimento causado pela morte precoce dela feriu profundamente sua alma.

Essa seleção limitada ainda nos permite reconstruir mentalmente a ampla, contínua e crescente teia de amigos — mais chegados do que irmãos — que se entrelaçavam com sua vida pessoal, assim como a ponta do iceberg de seus críticos contumazes. Afinal, quem não tem inimigos é porque nunca teve amigos.

As leituras dessa ampla correspondência corrigem o grande equívoco, implantado na mente de muitos, de que Calvino era, em decorrência de sua formação acadêmica, muito mais um teórico político do que um teólogo e pastor. Tal concepção não encontra consistência alguma em suas correspondências (bem como em qualquer de suas outras obras). Trata-se de uma pseudo-difamação criada para afastar possíveis leitores de seus ensinos e de sua teologia. Sua única regra de fé e produção literária sempre foi, desde as primeiras linhas até as últimas, a infalível, insubstituível e inegociável Palavra de Deus. Isso, naturalmente, sempre fez o braseiro do inferno arder mais intensamente.

Mas, para aqueles que não se satisfazem em apenas “ouvir” falar de João Calvino e desejam conhecê-lo de fato e de verdade, a leitura de suas correspondências é imprescindível. Ouça Calvino abrindo o coração e a alma; sinta o pulsar de seu coração; estremeça diante de suas indignações contra todo erro que afronta o ensino eminentemente bíblico.

A leitura de seu extenso corpus de correspondências também nos permite inferir a progressão de maturação teológica e eclesiológica que ele desenvolveu ao longo de sua vida. A impressão que se tem dos “calvinistas” atuais (e não tão atuais) é a de que todo o seu arcabouço de conhecimento teológico já estava pronto, e ele apenas o acessou — como fazemos hoje com sistemas de Inteligência Artificial. No entanto, seu conhecimento começou como o de qualquer outro, sendo enriquecido ao longo de toda sua jornada. Suas Institutas são a prova concreta desse fato, pois, a cada reedição, eram acrescidas novas proposições que, embora não alterassem a essência de suas teses, acrescentavam novos subsídios e argumentos, fortalecendo ainda mais seus pressupostos teológicos bíblicos.

Calvino, como qualquer outro, não nasceu um teólogo pronto. Suas cartas revelam claramente que seu desenvolvimento teológico ia além do ambiente acadêmico e se entrelaçava com sua prática vivencial e pastoral. À medida que sua correspondência se intensificava, ele aprendia a lidar com a pluralidade de opiniões divergentes, o que não lhe permitia acomodar-se nos louros alcançados. Pelo contrário, isso o impelia constantemente a buscar novos subsídios para as suas ênfases teológicas e para sua prática de ensino, seja no campo acadêmico ou pastoral.

Essas correspondências nos permitem discernir seus distintivos eclesiológicos de fé — uma definição cada vez mais clara de suas doutrinas — paralelamente ao seu desenvolvimento em termos de comunhão e espiritualidade.

Fragilidade Física e Emocional

Desde sua juventude, Calvino enfrentou toda sorte de pressões. A morte precoce de sua mãe, quando ele tinha aproximadamente seis anos; a rigidez educacional de seu pai, que desejava que ele seguisse a carreira de advogado e, posteriormente, a eclesiástica; sua conversão e envolvimento com o movimento da Reforma; sua fuga da perseguição na França; e a pressão de Guilherme Farel para que assumisse um papel efetivo no movimento reformista em Genebra marcaram profundamente sua trajetória. A partir desse ponto, ele viveu sob o peso da liderança reformada até seu último dia.

Além dos inimigos externos, o que mais o feriu foram as perseguições internas. Ele chegou a ser destituído do pastorado da igreja em Genebra, mas, posteriormente, a pedido e até contrariado, retomou seu ofício pastoral e acadêmico, que exerceu até o fim de sua vida. Complôs contra sua vida eram uma constante.

Suas enfermidades apenas se agravaram ao longo dos anos e, por diversas vezes, ele ficou entre a vida e a morte. Em suas correspondências, Calvino menciona essas provações físicas e emocionais, listando as enfermidades que o afligiram: artrite, gota, tuberculose, pleurisia, enxaquecas, hemorroidas, febre quartã, dispepsia, asma e crises renais agudas. Mesmo nesse contexto, ele demonstrava uma determinação impressionante. Muitas vezes, teve que pregar sentado ou ser carregado até a igreja, quando não conseguia andar.

Apesar de todas as adversidades, ele nunca deixou de dar prosseguimento ao seu trabalho, seja na correspondência, nos livros ou nas pregações e aulas na Academia de Genebra.

Em um dos momentos mais agudos de sua vida, após a morte de sua esposa Idelette de Bure, Calvino escreveu a dois de seus amigos mais preciosos, Pierre Viret e Guilherme Farel, dizendo que havia perdido a melhor parte de si mesmo. Vivenciando plenamente sua fragilidade emocional, Calvino encontrou força e apoio nos amigos próximos. Essa experiência reflete sua humanidade e sensibilidade, além de sua firme convicção na infalível providência de Deus.

Este artigo já ultrapassou, e muito, o espaço adequado para um blog. No entanto, desafio você, caro leitor, a explorar as referências abaixo e acessar essas preciosidades das correspondências de Calvino. Investir seu tempo nessas leituras certamente será recompensador.

 

Utilização livre desde que citando a fonte

Guedes, Ivan Pereira

Mestre em Ciências da Religião.

Universidade Presbiteriana Mackenzie

me.ivanguedes@gmail.com

Outro Blog

Reflexão Bíblica

http://reflexaoipg.blogspot.com.br/


 Referências Bibliográficas

AUGUSTIJN, C., Burger, C. & Van Stam, F.P., 2002, ‘Calvin in the light of the early letters’, in H.J. Selderhuis (ed.), Calvinus Praeceptor Ecclesiae: Papers of the International Congress on Calvin Research, pp. 139–157, Princeton, Droz, Geneva.

BEVERIDGE, Henry; BONNET, Jules (Eds.). Selected works of John Calvin: tracts and letters. Grand Rapids, Mich.: Baker Book House, 1983.

BEZA, T. The life of John Calvin, transl. F. Sibson, Philadelphia. 1836. [primeira biografia de João Calvino].

CALVIN, John. Selected works of John Calvin: tracts and letters. Grand Rapids, Mich.: Baker Book House, 1983. Edited by Henry Beveridge and Jules Bonnet.

COTTRET, Bernard. Calvin, a biography. Grand Rapids, Michigan; Cambridge: William B. Eerdmans Publishing Company, 1995.

CALVIN OPERA - Ioannis Calvini opera quae supersunt omnia [todas as obras].

DANIEL-ROPS. Morte e Glória de João Calvino. Morte e Glória de João Calvino - Daniel-Rops

REYBURN, Hugh Y. John Calvin: his life, letters, and work. London: Hodder and Stoughton, 1914.

SCHALKWIJK, Frans Leonard. O Brasil na Correspondência de Calvino. Fides reform-.004-077 a 184.pdf [transcrição destas cartas].

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