Ao longo de quatro séculos, os reformadores foram expostos a
críticas tão variadas quanto implacáveis. Mas, com toda certeza, pela
expressividade e abrangência de seus estudos teológicos e bíblicos, nenhum foi
mais injustamente caluniado, difamado e depreciado do que o francês genebrino
João Calvino.
Não tendo argumentos sólidos para atacarem suas obras, seus críticos passaram —
e ainda hoje mantêm — a dirigir ataques à sua pessoa e personalidade. Não há
esfera de sua vida que não tenha sido alvo de comentários pejorativos e
depreciativos.
Como responder a essa avassaladora máquina de desmonte de sua personalidade
pública-histórica? Um dos caminhos é
voltarmos nosso olhar para suas correspondências pessoais. Poucos escreveram
tanto e para tantas pessoas tão amplamente diversas — imperadores, reis e
rainhas, expoentes eclesiásticos, amigos e inimigos, até os mais simples
pastores de pequenas igrejas interioranas, em diferentes pontos do globo
terrestre. Há registros de correspondências enviadas e recebidas por pastores
calvinistas que foram enviados ao Brasil, ainda no final dos anos 1500, como
parte da tentativa francesa de estabelecer uma colônia calvinista no país.[1]
Muitas de suas correspondências certamente editas em separado,
daria um expressivo volume literário. Mas a proposta deste artigo é mais
simples e singular. Apresentar aos leitores suas últimas palavras escritas, que
não poderia ser endereçada a outro, senão, seu amigo de longa data e de muitas
lutas Rev. Guillaume Farel. Não é propriamente uma carta em seu sentido
estrito, estando mais para um pequeno bilhete pessoal e tocante. O contexto em
que foi escrito é tão impactante quanto as palavras ali registradas.
O reformador genebrês está respirando cada vez com mais dificuldade;
seus movimentos exigem todo seu esforço físico e mental. Toma conhecimento de
seu amigo, com 75 anos, está se preparando para viajar muitos quilômetros para
poder estar com ele nestes últimos momentos. Então tomado por uma preocupação,
marca registrada dele, para com a saúde de seu velho amigo, ele escreve estas
poucas mas impressionantes palavras, abaixo transcritas.
Em cada palavra e linhas desta diminuta correspondência é possível identificarmos
os sentimentos mais profundos de um coração amoroso. Seu esforço, inútil, era
demover Farel de empreender tão desgastante viagem, visto a idade e certamente
fragilidade física, apenas para vê-lo, visto que sua chama está se apagando
rapidamente e lhe resta apenas mais alguns dias de tênue vida.
É impossível ler este pequeno documento e vislumbrar nele as
críticas contumazes e ácidas que lhe eram dirigidas em vida — e, por incrível
que pareça, de forma ainda mais intensa após sua morte.
Neste último texto de sua autoria, não se encontra uma única palavra contra
seus múltiplos adversários.
Não há lamúrias, não há amarguras, frustrações ou decepções.
Há apenas uma clara preocupação — não com seu próprio bem-estar, mas com os
cuidados para com seu idoso e precioso amigo.
A morte não lhe trazia qualquer temor, apenas a tristeza de não
poder continuar seus mais diversos ministérios para a glória de seu Senhor e
Salvador Jesus Cristo.
Uma melancolia discreta por não mais poder zelar pelas igrejas, por seus
pastores e pela menina de seus olhos — a Universidade e seus professores — que
espargiam o genuíno conhecimento e ensino bíblico não apenas na cidade de
Genebra, mas também em centenas de outras cidades e países na Europa e no
mundo.
Quem dera nossos últimos pensamentos e palavras, diante da morte inclemente,
pudessem, em algum grau, se assemelhar aos do exausto João Calvino — que, assim
como o apóstolo Paulo, podia tranquilamente dizer: “Combati o bom combate,
acabei a carreira, guardei a fé” (2 Timóteo 4.7).
Aproveite e deguste este precioso documento.
CARTA 668
A FAREL.
ÚLTIMAS DESPEDIDAS.
GENEBRA, 2 de maio de 1564.
Adeus, meu irmão excelentíssimo e íntegro; e já que é da vontade de
Deus que você sobreviva a mim neste mundo, viva com a lembrança de nossa profunda
amizade, a qual, tendo sido útil à Igreja de Deus, terá seus frutos
aguardando-nos no céu.
Não quero que você se canse por minha causa. (itálico meu)
Respiro com dificuldade, e a cada momento espero exalar meu último suspiro.
É suficiente que eu viva e morra por Cristo, que é para todos os seus
seguidores um ganho, tanto na vida quanto na morte.
Mais uma vez me despeço de você e de seus irmãos.
Utilização livre desde que citando a fonteGuedes, Ivan PereiraMestre em Ciências da Religião.Universidade Presbiteriana Mackenzieme.ivanguedes@gmail.comOutro BlogReflexão Bíblica
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Referências Bibliográficas
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CALVIN OPERA - Ioannis
Calvini opera quae supersunt omnia [todas as obras].
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de João Calvino. Morte e
Glória de João Calvino - Daniel-Rops
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Calvin: his life, letters, and work. London: Hodder and Stoughton, 1914.
SCHALKWIJK,
Frans Leonard. O Brasil na Correspondência de Calvino. Fides
reform-.004-077 a 184.pdf [transcrição destas cartas].
[1] Leia
maiores informações em meu artigo - Nicolau Durand de Villegaignon: Um
Cavaleiro de Malta e a Primeira Experiência Protestante no Brasil (Parte 1), conforme
abaixo indicado.
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