Algo até então inimaginável, o grande e milenar Império
Romano começa a desmoronar, inicialmente do lado Ocidental e posteriormente do
lado Oriental.
Esta queda longe de ser repentina ela vinha se desenhando
ao longo do último século e não sem razão começa a se buscar os fundamentos de
um Império Romano-Cristão. Após o reinado de Teodósio, com exceção do curto
reinado de Majoriano, o Império vai se deteriorando rapidamente em todas as
suas instâncias política-social-econômica proporcionando uma crise de
autoridade pública generalizada. Em meio ao caos emerge a auctoritas de Roma
como elo entre o mundo antigo e a nascente Idade Média. A Igreja soube como
nenhum outro segmento social ocupar progressivamente os espaços deixados vazios
pelo poder imperial. Creio que as palavras de Peter Brown nos fornecem uma
significativa percepção deste momento:
Neste sentido, o cristianismo latino
do início da Idade Média tem menos a ver com a conversão de Constantino do que
com a geração perturbada, mas imensamente criativa – uma geração de invasões
bárbaras, guerras civis e enfraquecimento da autoridade imperial – que
coincidiu com os anos de maturidade de S. Agostinho. O próprio Agostinho,
baptizado em 387 e eleito bispo de Hipona, na costa do Norte da África (a
moderna Anhangá/Boné, Argélia) em 395, veio a falecer em 430 com idade de 76
anos, num mundo já muito diferente daquele em que tinha crescido (1999, p. 55).
Em 337 d.C., caíram as barreiras na
fronteira do Império e hordas de bárbaros (o nome que os romanos aplicavam a outros povos, com exceção dos gregos
e judeus) Ocidental começaram a entrar em todos os lugares nas províncias
inermes. Em menos de cento e quarenta
anos, o Império Romano do Ocidente, que existia há mais de mil anos, deixou
de existir.
§ Por volta de 450
d.C., os terríveis hunos sob a liderança de Átila invadiu a Itália e ameaçou destruir não apenas Roma, mas
todos os demais reinos ao redor. Então os povos bárbaros (não romanos, gregos
ou judeus) que tinham invadido a Europa e se estabelecido como “reinos” diferentes,
os godos, vândalos e francos,[1] concomitantemente
com a liderança de Roma, na figura do Papa Leão Magno (†460), lutaram e
venceram o arrogante Átila e seus
hunos, na batalha de Chalons (451 d.C.) no norte da França. Assim, a
Europa inicia o desenvolvimento de sua própria civilização, sob a liderança de
Roma.
§ Os bárbaros liderados por Odoacro invadem e conquistam a
cidade de Roma, depõe o último e jovem imperador do Ocidente, Rômulo Augusto
(475-476) e fez-se proclamar rei da Itália. Assim, de forma melancólica extingue-se o último vestígio do antes
grande Império Romano.
Abaixo temos a descrição por duas perspectivas diferentes
destes acontecimentos:
§ Testemunho de
Orígenes, líder e escritor cristão:
“Meu coração estremece pensando nos desastres do nosso
tempo. Eis mais de vinte anos que entre Constantinopla e os Alpes Julianos o
sangue é derramado diariamente… Quantas damas, quantas virgens de Deus, quantos
corpos nobres e delicados não foram joguetes dessas feras selvagens? Os Bispos
são levados em cativeiro, os sacerdotes assassinados juntamente com clérigos de
diversas Ordens; as Igrejas são devastadas, os cavalos amarrados junto aos
altares de Cristo como em estrebaria; os despojos dos mártires são extraídos da
terra. Em toda parte, há luto, gemidos e a sombra da morte. O mundo romano
desmorona, e a nossa cabeça orgulhosa não se dobra… Tivesse eu cem línguas, cem
bocas, uma voz de bronze, nunca, nunca eu poderia contar tantas desgraças!”
(Epístola IX 16).
“Quem teria acreditado que essa Roma, construída sobre
vitórias obtidas em todo o universo, viesse um dia a desmoronar? … Quem teria
acreditado que, para os seus povos, Roma viria a ser mãe e sepulcro? … Que
todas as regiões do Oriente, do Egito e da África se cobririam de escravos
(homens e mulheres) vindos de Roma, outrora senhora do universo? ” (Prefácio ao
livro III, XXV).
§ Uma visão diferente
narrada por Salviano, sacerdote de Marselha (? 480 d.C.):
“Os invasores iam penetrando cada vez mais, e o mundo não
acabava… em vez de deterem sua atenção apenas na barbárie dos novos povos,
fizessem os cristãos o seu exame de consciência; não bastava professar a fé
católica, para esperar as bênçãos de Deus; era preciso viver de acordo com essa
fé;” Ele passa a fazer uma comparação entre as duas civilizações: ... os vícios
da civilização romana, dada aos prazeres e espetáculos fúteis; os habitantes do
Império são coniventes com graves abusos, como a embriaguez, a luxúria, a
mentira, os falsos juramentos, o orgulho… Ao contrário, os invasores têm seus
traços de vida positivos: amam uns aos outros, ao passo que os romanos se
odeiam mutuamente; são castos, principalmente os godos e os saxões; ignoram as
impurezas do circo e do teatro; o deboche, entre eles, é crime, enquanto para
os romanos é motivo de vã glória. Há pobres viúvas e órfãos que escolheram
viver em meio aos godos e não se dão por frustrados. Os bárbaros são hereges,
sim (professavam o arianismo), mas isto é culpa dos romanos, que lhes
transmitiram a heresia.
§ A Cristianização dos
povos invasores. Um dos casos mais
efetivos foram os godos que foram evangelizados pelos arianos e através de Úlfilas
(311-383); ordenado Bispo dos godos por Eusébio, Bispo ariano de Nicomédia, e
que pregou por mais de quarenta anos a fé cristã ariana entre os seus
compatriotas; empreendeu a tradução da Bíblia para o idioma godo e utilizou a
língua goda para ministrar a liturgia. Desta forma, enquanto o Império Romano desmoronava,
a Igreja Cristã fortalecia sua posição como agente político.
§ Relevância da Igreja
Ocidental durante as Invasões Bárbaras
“A Igreja Católica
não só eliminou os costumes repugnantes do mundo antigo, como o infanticídio e
os combates de gladiadores, mas, depois da queda de Roma, ela restaurou e construiu
a civilização” (WOODS, 2005, p. ?).
Tendo na figura “Bispo de Roma”, a Igreja torna-se um ponto
estável em um mundo caótico em que tudo estremecia. O poeta Lactâncio, neste
tempo, escreveu: “Somente a Igreja
conserva e sustenta tudo”
Surgem figuras de
grande envergadura e piedade na Igreja que souberam dar sentido aos
acontecimentos trágicos da queda de Roma: Bento de Núrcia, Agostinho de Hipona,
Leão Magno e tantos outros, que do caos da barbárie, começaram a modelar uma
nova Civilização, por amor a Deus e pela missão que Cristo lhes deu.
O historiador Daniel
Rops conclui sobre esse momento crítico: “O maior serviço que o Cristianismo
prestou ao século V, foi o de dar um sentido a seu drama, impedindo-os de
permanecer inertes, sós e angustiados, à beira de um abismo para além do qual
já não enxergavam”.
Agostinho escreve sua
grande obra literária “Cidade de Deus” tendo esse cenário caótico como pano de
fundo, ele disse: “Talvez não seja ainda o fim da Cidade, mas em breve a Cidade
terá um fim”. “Nas piores circunstâncias é preciso cumprir o nosso dever de
homens”. A confiança de que todos os acontecimentos, por mais caóticos que
sejam, estão subordinados ao desígnio de Deus, foi a grande força do
cristianismo para fortalecer os corações.
De Justiniano até Gregório (527-590) os
anseios papais foram amenizados. Mas as nuvens enegrecidas vão se dissipando no
horizonte, e uma nova atmosfera vai surgindo, trazendo para a Igreja Romana uma
expectativa de grandes oportunidades.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
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[1] Godos,
ostrogodos, visigodos, suevos, francos, germânicos, eslavos (compreendendo
centenas etnias e tribos diferentes), vândalos, saxões, anglos, unos são
exemplos de tribos bárbaras que aos poucos foram conquistando a Europa e os
maiores deles “tinha em média apenas entre 50.000 e 80.000 pessoas, computados
guerreiros, mulheres e crianças” (Franco Júnior, 2001, p.22). Todos os duros e
contínuos embates entre romanos e estes grupos levaram à aceleração do que se
convencionou chamar desintegração ou declínio do Império Romano.
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