O
ensino teológico elaborado por João Calvino é constituído por cinco pontos ou
teses? Parece uma pergunta infantil, porém, é uma boa pergunta. E a resposta
pode surpreender. A resposta é sim e
não!
Sim,
o calvinismo contem os cinco pontos - obviamente. Temos livros sobre os cinco
pontos. Criou-se um acrônimo - TULIP
como uma maneira de memoriza-los mais facilmente: depravação total, eleição incondicional, expiação limitada, graça irresistível e perseverança dos santos.
Porém,
temos que dizer: Não, os cinco pontos
não são uma síntese do calvinismo. Se quisermos um resumo do calvinismo,
devemos recorrer a um de seus grandes documentos confessional, como a Confissão de Fé de Westminster, a
teologia calvinista é muito mais ampla e abrangente do que os apresentados no acrônimo
- TULIP.
Se
não foram elaborados diretamente por Calvino, de onde vieram os “cinco pontos do calvinismo”? É particularmente
apropriado fazer essa pergunta agora, porque 2018-19 marcou os 400 anos da elaboração destes cinco
pontos do calvinismo. A origem deles encontra-se na Holanda, Sínodo
internacional de reformados (1618-1619), na cidade de Dordtrecht (abreviada
como Dort), onde as teses produzidas a partir da teologia elaborada por James
Hermanson (c. 1559-1609), conhecido por Jacob
Arminius foram rejeitadas. Embora este fosse um Sínodo nacional das igrejas
reformadas da Holanda, se revestiu de um caráter internacional, pois foi
composto não apenas por delegados holandeses, mas também por delegados de oito
países estrangeiros.
Armínio
sempre fora um aluno brilhante, perpassando pelas melhores Universidades,
incluindo um período em Genebra nos dias de Teodoro Beza, sucessor de Calvino. Retorna
para a Holanda para servir como ministro reformado na igreja de Amsterdã de
1588 a 1603. Em 1602, Leiden foi devastado pela praga e Franciscus Junius, o
professor erudito de teologia da Universidade foi uma dentre centenas de vítimas.
Johannes Uitenbogaard, pregador da corte, recomendou Armínio para preencher a
vaga. Ele serviu lá apenas seis anos até sua morte em 1609. Ele não chegou a
editar uma teologia própria, e nas aulas e pregações públicas se manteve dentro
da ortodoxia reformada calvinista, mas em instrução particular a certos alunos
selecionados, ele expressou suas dúvidas e insatisfação. Sua influência
sobre esses alunos se tornou aparente quando eles se apresentaram para entrar
no ministério. Quando seus alunos chegaram da Academia ou partiram para
outras academias, eles tomaram posições contra as Igrejas Reformadas,
disputando, contradizendo e criticando o ensino de Calvino e subsequentemente
do Calvinismo de seus dias, pois suas concepções teológicas se inclinavam para
as doutrinas humanistas de Erasmo, quanto à graça soberana (de Deus), em
oposição ao que era ensinada pelos Reformadores.
Mas
foi somente após sua morte que muitos de seus ex-alunos e amigos acadêmicos
estruturaram seus escritos, até então desconhecidos. Em 1610, 46 dessas pessoas
produziram um documento, cujo seu título holandês é De Remonstrantie en het Remonstrantisme [O protesto do
protestantismo] e o latim trás Articuli
Arminiani sive Remonstrantia [Os artigos arminianos com protesto], questionando
alguns dos ensinamentos da Confissão Belga (calvinista) sobre questões relacionadas
à salvação e o apresentaram ao governo holandês, pedindo que seus pontos de
vista fossem considerados e protegidos. Essas declarações de objeção eram normalmente
chamadas de remonstrância (protesto vigorosamente reprovador) que passou a ser
vinculada aos seus defensores que foram alcunhados de Remonstrantes.
No
documento apresentado por eles, bem como em outros materiais produzidos por Armínio,
se questionava abertamente alguns aspectos importantes da teologia calvinista
em relação à salvação (soteriologia):
1. A
eleição está condicionada à previsão da fé.
2. Expiação universal (Cristo
morreu por todos os homens e por cada homem, de forma que ele conquistou
reconciliação e perdão para todos por sua morte na cruz, mas só os que exercem
a fé podem gozar desse benefício).
3. Necessária
a regeneração para que alguém seja salvo (aparentemente, uma visão
perfeitamente ortodoxa, mas mais tarde ficou claro que a visão deles era tal
que negava fortemente a depravação da natureza humana).
4. A possibilidade de resistir à
graça.
5. A
incerteza quanto à perseverança dos crentes (mais tarde eles deixaram claro que
não criam de forma alguma na garantia da perseverança).
Os
Remonstrantes acreditavam com base nos escritos de Arminius, de que as
Escrituras permitiam uma interpretação da salvação, em que preservava e/ou
enfatizava o livre arbítrio e dava
aos seres humanos uma maior participação
em sua salvação.
Rejeição
das Teses Arminiana (Remonstrantes)
O sínodo,
com cerca de noventa delegados eclesiásticos, durou mais de seis meses, de novembro
de 1618 a maio de 1619, visto que se aguardava a chegada de todos os delegados
convocados; o Sínodo ficou então composto por 84 membros e 18 comissários
seculares. Dos 84 membros, 58 eram holandeses, oriundos dos sínodos das
províncias, e os demais (26) eram delegados convidados de oito países
estrangeiros, dentre os quais Grã-Bretanha, Alemanha, (a França não enviou seus
representantes, pois o rei não autorizou a vinda deles), todos com direito a
voto. Os motivos para convidar os teólogos estrangeiros foram: a tentativa de
garantir a isenção que os remonstrantes alegavam que a igreja da Holanda
(calvinista) não possuía; os remonstrantes alegavam continuamente ao povo que
as demais igrejas protestantes compartilhavam da mesma visão que eles, de
maneira que a presença dos delegados estrangeiros poderia dirimir esta e outras
dúvidas.
Percebendo que seria minoria,
pois apenas 46 ministros (pastores) havia subscrito a remonstrância e estavam apenas como convidados e não como
delegados oficiais, de modo que dificilmente teriam suas teses
aprovadas, começaram a tumultuar as sessões do Sínodo e foram convidados a se
retirarem do Plenário.
O moderador era Johannes
Bogerman e a primeira atividade do Sínodo foi o pronunciamento do juramento:
"Prometo, diante
de Deus em quem creio e a quem adoro, que está presente neste lugar, e que é o
Perscrutador de nossos corações, que durante o curso dos trabalhos deste
Sínodo, que examinará não só os cinco pontos e as diferenças resultantes deles
mas também qualquer outra doutrina, não utilizarei nenhum escrito humano, mas
apenas e tão somente a Palavra de Deus, que é a infalível regra de fé. E
durante todas estas discussões, buscarei apenas a glória de Deus, a paz da
Igreja, e especialmente a preservação da pureza da doutrina. Assim, que me
ajude Jesus Cristo, meu Salvador! Rogo para que ele me assista por meio do seu
Espírito Santo!"
A discussão que se seguiu
foi então baseada no principal documento analisado, a representação de 1610 com
seus 5 artigos. A maioria dos pastores-delegados
holandeses (às vezes descritos como contra-remonstrantes) concluiu não haver
fundamentos bíblicos suficientes para validá-los. Para eles, em grande
parte da Remonstrância ecoava nas entrelinhas os antigos ensinamentos de Pelágio, um monge do século IV, com o
qual Agostinho debateu
exaustivamente, visto que a teologia pelagianas ensinava que apesar do pecado
de Adão (queda), os seres humanos mantiveram em si mesmos, por natureza e à
parte a graça de Deus, o poder de crer (fé salvadora) em Deus e obedecê-lo.
O documento
final, os Cânones de Dort, foi formulado em 59 artigos, separados em 5 pontos
de doutrina. O documento foi assinado por todos os delegados em 23 de Abril de
1619. Foram ao todo 154 reuniões ao longo de sete meses. Prevaleceu a
interpretação ortodoxa. No transcorrer do tempo os 59 artigos foram sendo
sumarizados no que veio a ser conhecido, até os nossos dias, como os
Cinco Pontos do Calvinismo, contrapondo-se aos Cinco Pontos do Arminianismo. É
preciso esclarecer que o Sínodo de Dort enumerou esses Pontos do Calvinismo,
não na sua ordem contemporânea encontrado no acróstico “TULIP”, mas na ordem de
“ULTIP”, de maneira que se inicia pela Unconditional Election (Eleição Incondicional),
pois o decreto eterno da eleição incondicional é o fundamento da teologia
pactual e da doutrina da salvação, conforme abaixo indicados:
- A
escolha de Deus daqueles que serão salvos não é condicionada pelo que as
pessoas podem ou não fazer, pois é Deus quem, com o tempo, "concederá
fé em Cristo e perseverança".
- Na cruz, Jesus tomou
sobre si os pecados daqueles que Deus escolheu para salvar, dando
satisfação plena e permanente a eles.
- A
corrupção do homem, a sua conversão a Deus e como ela ocorre. O Sínodo
tratou os pontos 3 e 4 conjuntamente.
- Quando
Deus escolhe salvar uma pessoa, essa pessoa perseverará na fé até o fim
(esse seria o nosso quinto ponto).
Desta forma os delegados do
Sínodo de Dort acreditavam que há
suficiente embasamento nas Escrituras para apoiar esta interpretação, para isso
ofereceram muitas referências bíblicas.
As
resoluções deste Sínodo (Cânones de Dort) vieram a fazer parte do padrão de fé
reformada, juntamente com as demais Confissões de Fé. Em seu prefácio original temos
uma afirmação contundente: "julgamento,
no qual é explicada a visão verdadeira, concordando com a Palavra de Deus,
referente aos cinco pontos de doutrina acima mencionados, e a visão falsa,
discordando da Palavra de Deus, que é rejeitada".
O
fato de ser o primeiro Sínodo Reformado internacional e formal, produziu uma
unidade teológica entre as igrejas reformadas europeias. Posteriormente, quando
da convocação da Assembléia de
Westminster (Inglaterra) de 1643 a 1653, ela não precisou partir do zero,
pois tinham em mãos os Cânones de Dort como fundamento sólido.
Nestes
dias de total liberalismo teológico, os princípios estabelecidos nos Cânones de
Dort, chocam e irritam uma grande parcela do evangelicalismo brasileiro. Em
dias de decadência moral-teológica onde muitos pastores evangélicos defendem
ideologias e agenda sociais abertamente anticristãs e declaram que Deus não
intervém na história das pessoas, retornar ao porto seguro do Sínodo de Dort é
como encontrar um oásis no meio deste deserto teológico do século XXI .
O eixo central da construção de toda a teologia calvinista reafirmada em Dort é uma fé na soberana e livre graça de Deus e na perfeita expiação de Cristo, que é mais necessária hoje do que no século XVII, pois foram e continuam a se constituir no fundamento da nossa única esperança e confiança. Podemos afirmar que o Sínodo de Dort preservou a Reforma. O próprio Lutero (que não era calvinista) dizia que preferia ter sua salvação nas mãos de Deus do que nas suas. Dort reiterou e esclareceu essa verdade. Somente Cristo e somente a graça, de fato. Amém!
Utilização livre desde que citando a fonteGuedes, Ivan Pereira Mestre em Ciências da Religião.Universidade Presbiteriana Mackenzieme.ivanguedes@gmail.comOutro BlogReflexão Bíblicahttp://reflexaoipg.blogspot.com.br/
VERBETE – Calvinismo
https://historiologiaprotestante.blogspot.com/2014/01/verbete-calvinismo.html
VERBETE - Jacob Arminius
https://historiologiaprotestante.blogspot.com/2016/06/verbete-jacob-arminius.html
VERBETE – Puritanismo
https://historiologiaprotestante.blogspot.com/2013/10/verbete-puritanismo.html
VERBETE – Protestantismo
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VERBETE – Denominacionalismo
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VERBETE – Anglicanismo
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VERBETE: Mártir – Origem e
Significado
https://historiologiaprotestante.blogspot.com/2017/04/verbete-martir-origem-e-significado.html
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(texto integral), http://bereianos.blogspot.com/2016/02/os-canones-de-dort.html.
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