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segunda-feira, 27 de julho de 2020

VERBETE – Sínodo de Dort


O ensino teológico elaborado por João Calvino é constituído por cinco pontos ou teses? Parece uma pergunta infantil, porém, é uma boa pergunta. E a resposta pode surpreender. A resposta é sim e não!

Sim, o calvinismo contem os cinco pontos - obviamente. Temos livros sobre os cinco pontos. Criou-se um acrônimo - TULIP como uma maneira de memoriza-los mais facilmente: depravação total, eleição incondicional, expiação limitada, graça irresistível e perseverança dos santos.

Porém, temos que dizer: Não, os cinco pontos não são uma síntese do calvinismo. Se quisermos um resumo do calvinismo, devemos recorrer a um de seus grandes documentos confessional, como a Confissão de Fé de Westminster, a teologia calvinista é muito mais ampla e abrangente do que os apresentados no acrônimo - TULIP.

Se não foram elaborados diretamente por Calvino, de onde vieram os “cinco pontos do calvinismo”? É particularmente apropriado fazer essa pergunta agora, porque 2018-19 marcou os 400 anos da elaboração destes cinco pontos do calvinismo. A origem deles encontra-se na Holanda, Sínodo internacional de reformados (1618-1619), na cidade de Dordtrecht (abreviada como Dort), onde as teses produzidas a partir da teologia elaborada por James Hermanson (c. 1559-1609), conhecido por Jacob Arminius foram rejeitadas. Embora este fosse um Sínodo nacional das igrejas reformadas da Holanda, se revestiu de um caráter internacional, pois foi composto não apenas por delegados holandeses, mas também por delegados de oito países estrangeiros.

Armínio sempre fora um aluno brilhante, perpassando pelas melhores Universidades, incluindo um período em Genebra nos dias de Teodoro Beza, sucessor de Calvino. Retorna para a Holanda para servir como ministro reformado na igreja de Amsterdã de 1588 a 1603. Em 1602, Leiden foi devastado pela praga e Franciscus Junius, o professor erudito de teologia da Universidade foi uma dentre centenas de vítimas. Johannes Uitenbogaard, pregador da corte, recomendou Armínio para preencher a vaga. Ele serviu lá apenas seis anos até sua morte em 1609. Ele não chegou a editar uma teologia própria, e nas aulas e pregações públicas se manteve dentro da ortodoxia reformada calvinista, mas em instrução particular a certos alunos selecionados, ele expressou suas dúvidas e insatisfação. Sua influência sobre esses alunos se tornou aparente quando eles se apresentaram para entrar no ministério. Quando seus alunos chegaram da Academia ou partiram para outras academias, eles tomaram posições contra as Igrejas Reformadas, disputando, contradizendo e criticando o ensino de Calvino e subsequentemente do Calvinismo de seus dias, pois suas concepções teológicas se inclinavam para as doutrinas humanistas de Erasmo, quanto à graça soberana (de Deus), em oposição ao que era ensinada pelos Reformadores.

Mas foi somente após sua morte que muitos de seus ex-alunos e amigos acadêmicos estruturaram seus escritos, até então desconhecidos. Em 1610, 46 dessas pessoas produziram um documento, cujo seu título holandês é De Remonstrantie en het Remonstrantisme [O protesto do protestantismo] e o latim trás Articuli Arminiani sive Remonstrantia [Os artigos arminianos com protesto], questionando alguns dos ensinamentos da Confissão Belga (calvinista) sobre questões relacionadas à salvação e o apresentaram ao governo holandês, pedindo que seus pontos de vista fossem considerados e protegidos. Essas declarações de objeção eram normalmente chamadas de remonstrância (protesto vigorosamente reprovador) que passou a ser vinculada aos seus defensores que foram alcunhados de Remonstrantes.

No documento apresentado por eles, bem como em outros materiais produzidos por Armínio, se questionava abertamente alguns aspectos importantes da teologia calvinista em relação à salvação (soteriologia):

1. A eleição está condicionada à previsão da fé.

2. Expiação universal (Cristo morreu por todos os homens e por cada homem, de forma que ele conquistou reconciliação e perdão para todos por sua morte na cruz, mas só os que exercem a fé podem gozar desse benefício).

3. Necessária a regeneração para que alguém seja salvo (aparentemente, uma visão perfeitamente ortodoxa, mas mais tarde ficou claro que a visão deles era tal que negava fortemente a depravação da natureza humana).

4. A possibilidade de resistir à graça.

5. A incerteza quanto à perseverança dos crentes (mais tarde eles deixaram claro que não criam de forma alguma na garantia da perseverança).

Os Remonstrantes acreditavam com base nos escritos de Arminius, de que as Escrituras permitiam uma interpretação da salvação, em que preservava e/ou enfatizava o livre arbítrio e dava aos seres humanos uma maior participação em sua salvação.

Rejeição das Teses Arminiana (Remonstrantes)

            O sínodo, com cerca de noventa delegados eclesiásticos, durou mais de seis meses, de novembro de 1618 a maio de 1619, visto que se aguardava a chegada de todos os delegados convocados; o Sínodo ficou então composto por 84 membros e 18 comissários seculares. Dos 84 membros, 58 eram holandeses, oriundos dos sínodos das províncias, e os demais (26) eram delegados convidados de oito países estrangeiros, dentre os quais Grã-Bretanha, Alemanha, (a França não enviou seus representantes, pois o rei não autorizou a vinda deles), todos com direito a voto. Os motivos para convidar os teólogos estrangeiros foram: a tentativa de garantir a isenção que os remonstrantes alegavam que a igreja da Holanda (calvinista) não possuía; os remonstrantes alegavam continuamente ao povo que as demais igrejas protestantes compartilhavam da mesma visão que eles, de maneira que a presença dos delegados estrangeiros poderia dirimir esta e outras dúvidas.

Percebendo que seria minoria, pois apenas 46 ministros (pastores) havia subscrito a remonstrância e estavam apenas como convidados e não como delegados oficiais, de modo que dificilmente teriam suas teses aprovadas, começaram a tumultuar as sessões do Sínodo e foram convidados a se retirarem do Plenário.

O moderador era Johannes Bogerman e a primeira atividade do Sínodo foi o pronunciamento do juramento:

"Prometo, diante de Deus em quem creio e a quem adoro, que está presente neste lugar, e que é o Perscrutador de nossos corações, que durante o curso dos trabalhos deste Sínodo, que examinará não só os cinco pontos e as diferenças resultantes deles mas também qualquer outra doutrina, não utilizarei nenhum escrito humano, mas apenas e tão somente a Palavra de Deus, que é a infalível regra de fé. E durante todas estas discussões, buscarei apenas a glória de Deus, a paz da Igreja, e especialmente a preservação da pureza da doutrina. Assim, que me ajude Jesus Cristo, meu Salvador! Rogo para que ele me assista por meio do seu Espírito Santo!"

A discussão que se seguiu foi então baseada no principal documento analisado, a representação de 1610 com seus 5 artigos. A maioria dos pastores-delegados holandeses (às vezes descritos como contra-remonstrantes) concluiu não haver fundamentos bíblicos suficientes para validá-los.  Para eles, em grande parte da Remonstrância ecoava nas entrelinhas os antigos ensinamentos de Pelágio, um monge do século IV, com o qual Agostinho debateu exaustivamente, visto que a teologia pelagianas ensinava que apesar do pecado de Adão (queda), os seres humanos mantiveram em si mesmos, por natureza e à parte a graça de Deus, o poder de crer (fé salvadora) em Deus e obedecê-lo.

O documento final, os Cânones de Dort, foi formulado em 59 artigos, separados em 5 pontos de doutrina. O documento foi assinado por todos os delegados em 23 de Abril de 1619. Foram ao todo 154 reuniões ao longo de sete meses. Prevaleceu a interpretação ortodoxa. No transcorrer do tempo os 59 artigos foram sendo sumarizados no que veio a ser conhecido, até os nossos dias, como os Cinco Pontos do Calvinismo, contrapondo-se aos Cinco Pontos do Arminianismo. É preciso esclarecer que o Sínodo de Dort enumerou esses Pontos do Calvinismo, não na sua ordem contemporânea encontrado no acróstico “TULIP”, mas na ordem de “ULTIP”, de maneira que se inicia pela  Unconditional Election (Eleição Incondicional), pois o decreto eterno da eleição incondicional é o fundamento da teologia pactual e da doutrina da salvação, conforme abaixo indicados:

  1. A escolha de Deus daqueles que serão salvos não é condicionada pelo que as pessoas podem ou não fazer, pois é Deus quem, com o tempo, "concederá fé em Cristo e perseverança".
  2. Na cruz, Jesus tomou sobre si os pecados daqueles que Deus escolheu para salvar, dando satisfação plena e permanente a eles.
  3. A corrupção do homem, a sua conversão a Deus e como ela ocorre. O Sínodo tratou os pontos 3 e 4 conjuntamente.
  4. Quando Deus escolhe salvar uma pessoa, essa pessoa perseverará na fé até o fim (esse seria o nosso quinto ponto). 

Desta forma os delegados do Sínodo de Dort  acreditavam que há suficiente embasamento nas Escrituras para apoiar esta interpretação, para isso ofereceram muitas referências bíblicas.

As resoluções deste Sínodo (Cânones de Dort) vieram a fazer parte do padrão de fé reformada, juntamente com as demais Confissões de Fé. Em seu prefácio original temos uma afirmação contundente: "julgamento, no qual é explicada a visão verdadeira, concordando com a Palavra de Deus, referente aos cinco pontos de doutrina acima mencionados, e a visão falsa, discordando da Palavra de Deus, que é rejeitada".

O fato de ser o primeiro Sínodo Reformado internacional e formal, produziu uma unidade teológica entre as igrejas reformadas europeias. Posteriormente, quando da convocação da Assembléia de Westminster (Inglaterra) de 1643 a 1653, ela não precisou partir do zero, pois tinham em mãos os Cânones de Dort como fundamento sólido.

Nestes dias de total liberalismo teológico, os princípios estabelecidos nos Cânones de Dort, chocam e irritam uma grande parcela do evangelicalismo brasileiro. Em dias de decadência moral-teológica onde muitos pastores evangélicos defendem ideologias e agenda sociais abertamente anticristãs e declaram que Deus não intervém na história das pessoas, retornar ao porto seguro do Sínodo de Dort é como encontrar um oásis no meio deste deserto teológico do século XXI .

O eixo central da construção de toda a teologia calvinista reafirmada em Dort é uma fé na soberana e livre graça de Deus e na perfeita expiação de Cristo, que é mais necessária hoje do que no século XVII, pois foram e continuam a se constituir no fundamento da nossa única esperança e confiança. Podemos afirmar que o Sínodo de Dort preservou a Reforma. O próprio Lutero (que não era calvinista) dizia que preferia ter sua salvação nas mãos de Deus do que nas suas. Dort reiterou e esclareceu essa verdade. Somente Cristo e somente a graça, de fato. Amém!

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Reflexão Bíblica
http://reflexaoipg.blogspot.com.br/

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