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sábado, 31 de dezembro de 2016

Novo Testamento de Erasmus: 500º aniversário da "primeira edição"

            Neste ano de 2017 em grande parte do Ocidente haverá de se comemorar os 500º  anos da Reforma Protestante, que teve seu estopim na promulgação das 95 teses do então beneditino Matinho Lutero.
Entretanto, dentre os diversos marcos históricos significativos que contribuíram para que acontecesse esta grande reforma religiosa-eclesiástica  está a produção do Novo Testamento Grego, que foi produzida pelo filho do renascentismo humanista o católico catedrática Erasmo de Roterdã (Desiderius Erasmus - 1467-1536) e que neste ano de 2016 completou seu 500º ano desde sua primeira edição (1516).
Evidentemente que para um povo brasileiro avesso à leitura, incluindo os mais diversos ramos do cristianismo-evangélico aqui estabelecidos, não é de se esperar que esta data simbólica possa ter ou fazer qualquer diferença. Todavia, naquele momento, em que eram raras as versões da Bíblia ou mesmo do Novo Testamento, o esforço de Erasmo foi algo revestido dos maiores reconhecimentos e recebido como água cristalina em meio às turvas águas que emanavam de uma Igreja Cristã quase totalmente contaminada por toda sorte de influências e desvios dos padrões bíblicos.
Ainda que não fosse a primeira edição de um Novo Testamento compilado em grego, Erasmus editio princeps[1] tornou-se um marco importante, pois seu trabalho filológico dos textos bíblicos gregos acabou por trazer à tona uma série de equívocos encontrados na velha senhora (Vulgata Latina) até então a única tradução autorizada pela Igreja Católica e tida como uma versão inspirada (sem erros). O próprio Martinho Lutero usou a segunda edição do trabalho de Erasmus para produzir sua tradução do Novo Testamento em alemão, o chamado "Testamento de setembro".[2] A terceira edição do texto grego de Erasmo tornou-se a base textual para a versão mais popular da Bíblia em inglês a King James (Tyndale 1525) e que foi a única bíblia utilizada pelas igrejas inglesas (Anglicana) por muitos séculos e ainda hoje continua muito querida. Além deles temos Antonio Brucioli, que fez uma tradução para o italiano; e Francisco de Enzinas, para utilizou o texto de Erasmo para sua versão para o espanhol.
Erasmo de Roterdã estudou em Paris, Oxford e na Itália e foi ordenado sacerdote católico em 1492 nos Cânones Agostinianos Regular, mas optou por não seguir a carreira eclesiástica e foi nomeado secretário do bispo de Cambrai, na França. Como filho de seu tempo ele foi arrebatado pelos fortes ventos do humanismo renascentista, exercendo permanentemente seu senso crítico em relação às instituições eclesiásticas, mas não se entusiasmou com os diversos movimentos reformistas que optaram pela ruptura e não pela busca permanente de uma reforma da Igreja. Manteve-se sempre esperançoso de que era possível reforma a Igreja sem sair dela. Em determinados momentos travou debates acadêmicos teológicos com Martinho Lutero. Por causa dessa sua “neutralidade” foi atacado por ambos os lados da questão e lhe custou caro, conforme expressa o erudito David Schaff de que Erasmo “morreu isolado, sem tomar nenhum partido. Os católicos não o consideravam católico e os protestantes não podiam considerá-lo protestante”.
Reconhecido por sua capacidade acadêmica como filólogo e humanista, mas também muito popular, pois era uma pessoa viajada e tinha um circulo de amizade com personagens palacianos e acadêmicos. Era consultado por vários estudiosos de diversos países e suas obras eram muito bem recebidas pelos críticos e pelo público. Naquele momento Erasmo era uma celebridade internacional. Por todas estas razões Erasmus foi convidado por Johann Froben[3] de Basileia em 1514, para que produzisse nada menos do que um novo texto grego do Novo Testamento para impressão. Assumiu o desafio e no inicio de 1516 esta sendo impresso seu trabalho que curiosamente, Erasmus chamou de Novum Instrumentum omne , ou Novo Instrumento, em vez de Novo Testamento, mas já na segunda edição ele retoma o nome tradicional. O texto estava dividido em duas colunas. Em uma, ficava o texto em grego; em outra, ficava sua tradução para o latim. Sua obra também incluía muitas notas críticas. Erasmo escreveu na introdução do seu Novo Testamento: “Alguns não querem que as Escrituras Sagradas sejam lidas pelas pessoas comuns nem traduzidas para as línguas modernas. Discordo totalmente deles”.
Naquele momento, em que as rodas dos tempos começavam a girar mais rapidamente, com o impulso do dínamo da imprensa, Erasmus montou apressadamente uma edição, [4]  baseando o texto em manuscritos gregos que tinha na mão,[5] que eram os mais antigos. Seu texto passou a ser denominado de “Texto Receptus , ou “texto recebido, texto Majoritário ou ainda texto Bizantino, por ter sido utilizado pela Igreja Grega”.
Para a publicação de seu texto, Erasmo fundamentou-se em seis manuscritos datados dentre os séculos XI e XV, estando bem ciente de sua qualidade inferior.[6] Esses manuscritos não eram completos, ou seja, havia lacunas entre eles, de maneira que necessitou se apoiar no texto da velha Vulgata latina de São Jerônimo.[7] 
A aceitação foi tão grande que rapidamente se esgotaram a primeira edição, bem como as seguintes até a quinta - publicadas em 1519,[8] 1522, 1527 e 1535, respectivamente – a cada nova edição Erasmo incluía correções do texto grego. Sem qualquer restrição, Erasmo fez uso do texto Complutense para um número de correções, que ele mesmo reconheceu como pertencendo a uma tradição textual melhor e mais confiável.
Mas nem tudo foi tranquilo, como na verdade nunca é. Houve muitas resistências ao trabalho de Erasmo e seus muitos críticos centraram em três questões: 1) as diferenças que havia entre sua nova tradução latina e a consagrada Vulgata; 2) as longas anotações, que justificava sua tradução e 3) a inclusão, entre as notas, de comentários sobre a vida desregrada e corrupta de muitos sacerdotes. Além das críticas nos púlpitos e nas Universidades, como as de Cambridge e Oxford, proibiam-se os alunos de lerem e os livreiros de venderem a “herética” tradução.
 Foi acusado de apoiar os movimentos Reformadores, pois seu texto foi amplamente utilizado por muitos eruditos reformados. Mas a acusação mais grave foi de que ele tinha ideias “arianas”, pois negava a trindade e assim a genuína Divindade de Jesus. Esta grave acusação, que poderia leva-lo à fogueira da Inquisição, foi feita por Lopes de Stunica, um dos editores da Poliglota Complutense, que concorria naquele momento com o texto de Erasmo. A acusação era decorrente do fato que ele omitiu a passagem de 1 João 5:7-8 que era encontrada na Vulgata, mas não nos manuscritos gregos ao qual ele tinha acesso e fundamentado seu trabalho: “pois há três que testificam no céu, o Pai, o Verbo e o Espírito Santo: e estes três são um”.
Ele replicou de que não havia encontrado em nenhum manuscrito grego a referida passagem e desafiou seu acusador a trazer ao menos um texto grego que a comprovasse. Um manuscrito lhe foi trazido e ele honrou sua promessa e incluiu a referida passagem em sua terceira edição (1522), todavia, incluiu uma longa nota marginal colocando sob suspeita o texto que lhe foi trazido e mantendo suas razões para não considerar essas palavras como originais (METZGER, 1993, p. 715-716). Muitos críticos textuais entendem que o texto que lhe foi apresentado foi produzido artificialmente em Oxford, em 1520, por um frade franciscano chamado Froy, que ele extraiu da Vulgata Latina.
Atualmente a maioria das Bíblias modernas está baseada em um Textus mais moderno denominado de texto científico (Nestle-Aland). Este trabalho está fundamentado no texto alexandrino (Egito) cujos manuscritos datam do 2º século D.C. Ele é claramente o mais próximo dos originais, e forma a base para as edições científicas modernas. Mas o texto produzido por Erasmo foi e continua sendo fundamental para grande parte das versões da bíblia em todo o mundo.
Infelizmente, afora alguns espaços acadêmicos e talvez teológicos, a data no mais passou totalmente despercebida. Mas ainda que no último dia do ano de 2016 creio ser oportuno nos lembrarmos deste marco extremamente importante para os grandes acontecimentos que haveria de ocorrer nos anos próximos e que ainda hoje se fazem ressentir na continuidade da História da Igreja Cristã.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Reflexão Bíblica
http://reflexaobiblica.spaceblog.com.br/


Referências Bibliográficas
BASTOS, Alexandre Frasato. Tempos de angústia Erasmo e Lutero no início da Modernidade.[Monografia Pesquisa Histórica] Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2008.
CUNHA, Samuel. Erasmo, Lutero e o livre-arbítrio. São Bernardo do Campo (SP): DISCERNINDO - Revista Teológica Discente da Metodista,v.2, n.2, p. 53-66, jan. dez. 2014. Disponível em: www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/discernindo/article/viewFile/4746/4032. Acessado em: 19/07/2015.
DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. Tradução: João Pedro Mendes. São Paulo: Pioneira, 1989. [Biblioteca Pioneira de ciências sociais. História. Série “Nova Clio”; 30].
FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero: um destino. São Paulo: Três Estrelas, 2012.
FERACINE, Luiz. Erasmo de Rotterdam – o mais eminente filósofo da renascença. [Coleção Pensamento e Vida]. São Paulo: Editora Escala Ltda, 2011.
METZGER, Bruce M. A Textual Commentary on the Greek New Testament. Stuttgart: United Bible Societies, 1993.
MILLI, Adriani. Livre ou servo arbítrio? A vontade humana em Erasmo e
MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. [Tradução Benôni Lemos; revisão João Bosco de Lavor Medeiros]. São Paulo: Edições Paulinas, 1981.
PINTACUDA, Fiorella de Michelis. Tra de Erasmo e Lutero. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2001. [Instituto Nazionale di Studi Sul Rinascimento]

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[1] A expressão latina  editio princeps ( plural : editiones principes ) é um termo clássico para designar a grosso modo, a primeira edição impressa de um trabalho que anteriormente existia apenas em manuscritos , o que poderia ser circulado somente após ser copiados à mão.
[2] A Bíblia Luther foi publicada em setembro de 1522, seis meses após ele ter retornado a Wittenberg. Esta tradução é considerada como sendo, em grande parte, responsável pela evolução da moderna língua alemã.
[3] Johann Froben foi pintor, ilustrador, editor, livreiro e impressor suíço, pai de Hieronymus Frobenius e avô de Ambrosius Frobenius. A sua oficina tipográfica, na Basileia, tornou a cidade um centro destacado no comércio de livros na Suíça.
[4] A pressa do editor Froben devia ao fato de que havia um cardeal da Espanha que estava trabalhando em sua própria edição, mas Ximenes só conseguiu aprovação papal para a publicação em 1522, e a de Erasmo foi editada em 01 de março de 1516. A obra do Cardeal Francisco Ximénez de Cisneros era a Bíblia Poliglota Complutense de Alcalá de Henares e a seção do Novo Testamento do Complutense foi impresso em janeiro de 1514 em seis volumes, mas publicada somente 1922. Isso ocorreu porque Erasmo tinha conseguido os direitos de publicação exclusiva por quatro anos pelo Papa Leão X e pelo Imperador Romano Maximiliano.
[5] Temos hoje à nossa disposição uma riqueza de manuscritos de diferentes eras e de qualidade variável (cerca de 5.400 manuscritos para o Novo Testamento).
[6] Os manuscritos que Erasmo usou, incluindo as anotações que fez neles, ainda existem, de forma que seu trabalho pode ser analisado de forma relativamente bem.
[7] Um exemplo digno de nota envolve os versos finais do Livro do Apocalipse, que estavam faltando no códice que Erasmus havia emprestado de seu amigo Johannes Reuchlin. 
[8] Para essa segunda edição, Erasmo apresentou aproximadamente 1.100 cópias, que continha cerca de 400 melhorias.

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