Neste ano de 2017 em grande parte do
Ocidente haverá de se comemorar os 500º anos da Reforma Protestante, que teve seu estopim
na promulgação das 95 teses do então beneditino Matinho Lutero.
Entretanto,
dentre os diversos marcos históricos significativos que contribuíram para que acontecesse esta
grande reforma religiosa-eclesiástica está a produção do Novo
Testamento Grego, que
foi produzida pelo filho do renascentismo humanista o católico catedrática
Erasmo de Roterdã (Desiderius Erasmus - 1467-1536) e que neste ano de 2016 completou seu 500º ano desde sua primeira edição (1516).
Evidentemente
que para um povo brasileiro avesso à leitura, incluindo os mais diversos ramos
do cristianismo-evangélico aqui estabelecidos, não é de se esperar que esta
data simbólica possa ter ou fazer qualquer diferença. Todavia, naquele momento,
em que eram raras as versões da Bíblia ou mesmo do Novo Testamento, o esforço
de Erasmo foi algo revestido dos maiores reconhecimentos e recebido como água
cristalina em meio às turvas águas que emanavam de uma Igreja Cristã quase
totalmente contaminada por toda sorte de influências e desvios dos padrões
bíblicos.
Ainda
que não fosse a primeira edição de um Novo Testamento compilado em grego, Erasmus editio princeps[1] tornou-se
um marco importante, pois seu trabalho filológico dos textos bíblicos gregos
acabou por trazer à tona uma série de equívocos encontrados na velha senhora
(Vulgata Latina) até então a única tradução autorizada pela Igreja Católica e
tida como uma versão inspirada (sem erros). O próprio Martinho Lutero usou a
segunda edição do trabalho de Erasmus para produzir sua tradução do Novo
Testamento em alemão, o chamado "Testamento
de setembro".[2] A
terceira edição do texto grego de Erasmo
tornou-se a base textual para a versão mais popular da Bíblia em inglês a King James (Tyndale 1525) e que foi a única
bíblia utilizada pelas igrejas inglesas (Anglicana) por muitos séculos e ainda hoje
continua muito querida. Além deles temos Antonio Brucioli, que fez uma tradução
para o italiano;
e Francisco de Enzinas, para utilizou o texto de Erasmo para sua versão para o espanhol.
Erasmo
de Roterdã estudou em Paris, Oxford e na Itália e foi ordenado sacerdote
católico em 1492 nos Cânones Agostinianos Regular, mas optou por não seguir a
carreira eclesiástica e foi nomeado secretário do bispo de Cambrai, na França. Como
filho de seu tempo ele foi arrebatado pelos fortes ventos do humanismo
renascentista, exercendo permanentemente seu senso crítico em relação às
instituições eclesiásticas, mas não se entusiasmou com os diversos movimentos reformistas
que optaram pela ruptura e não pela busca permanente de uma reforma da Igreja. Manteve-se
sempre esperançoso de que era possível reforma a Igreja sem sair dela. Em
determinados momentos travou debates acadêmicos teológicos com Martinho Lutero.
Por causa dessa sua “neutralidade” foi atacado por ambos os lados da questão e
lhe custou caro, conforme expressa o erudito David Schaff de que Erasmo “morreu isolado, sem tomar nenhum partido. Os católicos
não o consideravam católico e os protestantes não podiam considerá-lo
protestante”.
Reconhecido
por sua capacidade acadêmica como filólogo e humanista, mas também muito
popular, pois era uma pessoa viajada e tinha um circulo de amizade com
personagens palacianos e acadêmicos. Era consultado por vários estudiosos de
diversos países e suas obras eram muito bem recebidas pelos críticos e pelo
público. Naquele momento Erasmo era uma celebridade internacional. Por todas
estas razões Erasmus foi convidado por Johann Froben[3] de
Basileia em 1514, para que produzisse nada menos do que um novo texto grego do
Novo Testamento para impressão. Assumiu o desafio e no inicio de 1516 esta
sendo impresso seu trabalho que curiosamente, Erasmus chamou de Novum Instrumentum omne ,
ou Novo
Instrumento, em vez de Novo Testamento, mas já na segunda edição ele
retoma o nome tradicional. O texto estava dividido em duas colunas. Em uma,
ficava o texto em grego; em outra, ficava sua tradução para o latim. Sua obra
também incluía muitas notas críticas. Erasmo escreveu na introdução do seu Novo
Testamento: “Alguns não
querem que as Escrituras Sagradas sejam lidas pelas pessoas
comuns nem traduzidas para as línguas modernas. Discordo totalmente
deles”.
Naquele
momento, em que as rodas dos tempos começavam a girar mais rapidamente, com o
impulso do dínamo da imprensa, Erasmus montou apressadamente uma edição, [4]
baseando o texto em manuscritos gregos que tinha na mão,[5]
que eram os mais antigos. Seu texto passou a ser denominado de “Texto Receptus” ,
ou “texto recebido,
texto Majoritário ou ainda texto
Bizantino, por ter sido utilizado pela Igreja Grega”.
Para
a publicação de seu texto, Erasmo fundamentou-se em seis manuscritos datados dentre
os séculos XI e XV, estando bem ciente de sua qualidade inferior.[6] Esses
manuscritos não eram completos, ou seja, havia lacunas entre eles, de maneira
que necessitou se apoiar no texto da velha Vulgata latina de São Jerônimo.[7]
A
aceitação foi tão grande que rapidamente se esgotaram a primeira edição, bem
como as seguintes até a quinta - publicadas em 1519,[8]
1522, 1527 e 1535, respectivamente – a cada nova edição Erasmo incluía
correções do texto grego. Sem qualquer restrição, Erasmo fez uso do texto
Complutense para um número de correções, que ele mesmo reconheceu como
pertencendo a uma tradição textual melhor e mais confiável.
Mas
nem tudo foi tranquilo, como na verdade nunca é. Houve muitas resistências ao
trabalho de Erasmo e seus muitos críticos centraram em três questões: 1) as diferenças que havia entre sua
nova tradução latina e a consagrada Vulgata; 2) as longas anotações, que justificava sua tradução e 3) a inclusão, entre as notas, de
comentários sobre a vida desregrada e corrupta de muitos sacerdotes. Além das
críticas nos púlpitos
e nas Universidades,
como as de Cambridge e Oxford, proibiam-se os alunos de lerem e os livreiros de
venderem a “herética”
tradução.
Foi acusado de apoiar os movimentos
Reformadores, pois seu texto foi amplamente utilizado por muitos eruditos
reformados. Mas a acusação mais grave foi de que ele tinha ideias “arianas”, pois negava a trindade e assim a
genuína Divindade de Jesus. Esta grave acusação, que poderia leva-lo à fogueira
da Inquisição, foi feita por Lopes de Stunica, um dos editores da Poliglota Complutense, que concorria
naquele momento com o texto de Erasmo. A acusação era decorrente do fato que
ele omitiu a passagem de 1 João
5:7-8 que era encontrada na Vulgata, mas não nos
manuscritos gregos ao qual ele tinha acesso e fundamentado seu trabalho: “pois há três que testificam no céu, o Pai, o Verbo e o
Espírito Santo: e estes três são um”.
Ele
replicou de que não havia encontrado em nenhum manuscrito grego a referida
passagem e desafiou seu acusador a trazer ao menos um texto grego que a
comprovasse. Um manuscrito lhe foi trazido e ele honrou sua promessa e incluiu
a referida passagem em sua terceira edição (1522), todavia, incluiu uma longa
nota marginal colocando sob suspeita o texto que lhe foi trazido e mantendo suas
razões para não considerar essas palavras como originais (METZGER, 1993, p.
715-716). Muitos críticos textuais entendem que o texto que lhe foi apresentado
foi produzido artificialmente em Oxford, em 1520, por um frade franciscano
chamado Froy, que ele extraiu da Vulgata Latina.
Atualmente a maioria das
Bíblias modernas está baseada em um Textus mais moderno denominado de texto
científico (Nestle-Aland).
Este trabalho está fundamentado no texto alexandrino (Egito) cujos manuscritos
datam do 2º século D.C. Ele é claramente o mais próximo dos originais, e forma
a base para as edições científicas modernas. Mas o texto produzido por Erasmo
foi e continua sendo fundamental para grande parte das versões da bíblia em
todo o mundo.
Infelizmente,
afora alguns espaços acadêmicos e talvez teológicos, a data no mais passou
totalmente despercebida. Mas ainda que no último dia do ano de 2016 creio ser
oportuno nos lembrarmos deste marco extremamente importante para os grandes
acontecimentos que haveria de ocorrer nos anos próximos e que ainda hoje se
fazem ressentir na continuidade da História da Igreja Cristã.
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre
em Ciências da Religião.
Universidade
Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro
Blog
Reflexão
Bíblica
http://reflexaobiblica.spaceblog.com.br/
Referências
Bibliográficas
BASTOS, Alexandre
Frasato. Tempos de angústia Erasmo e Lutero no início da Modernidade.[Monografia
Pesquisa Histórica] Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2008.
CUNHA, Samuel. Erasmo, Lutero e o livre-arbítrio. São
Bernardo do Campo (SP): DISCERNINDO - Revista Teológica Discente da
Metodista,v.2, n.2, p. 53-66, jan. dez. 2014. Disponível em:
www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/discernindo/article/viewFile/4746/4032.
Acessado em: 19/07/2015.
DELUMEAU, Jean. Nascimento
e afirmação da Reforma. Tradução: João Pedro Mendes. São Paulo:
Pioneira, 1989. [Biblioteca Pioneira de ciências sociais. História. Série “Nova
Clio”; 30].
FEBVRE, Lucien. Martinho
Lutero: um destino. São Paulo: Três Estrelas, 2012.
FERACINE, Luiz. Erasmo
de Rotterdam – o mais eminente filósofo da renascença. [Coleção Pensamento
e Vida]. São Paulo: Editora Escala Ltda, 2011.
METZGER, Bruce M. A Textual Commentary on the Greek New
Testament. Stuttgart: United Bible Societies, 1993.
MILLI, Adriani. Livre
ou servo arbítrio? A vontade humana em Erasmo e
MONDIN, Battista. Curso
de Filosofia. [Tradução Benôni Lemos; revisão João Bosco de Lavor
Medeiros]. São Paulo: Edições Paulinas, 1981.
PINTACUDA, Fiorella
de Michelis. Tra de Erasmo e Lutero. Roma: Edizioni di Storia
e Letteratura, 2001. [Instituto Nazionale di Studi Sul Rinascimento]
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[1] A expressão latina editio princeps
( plural : editiones principes ) é um termo clássico para designar a grosso
modo, a primeira
edição impressa de um trabalho que anteriormente existia
apenas em manuscritos , o que poderia ser circulado somente após ser copiados à
mão.
[2] A Bíblia Luther foi
publicada em setembro de
1522, seis meses após ele ter retornado a Wittenberg. Esta tradução
é considerada como sendo, em grande parte, responsável pela evolução da moderna
língua alemã.
[3] Johann Froben foi pintor, ilustrador,
editor, livreiro e impressor suíço, pai de Hieronymus Frobenius e avô de
Ambrosius Frobenius. A sua oficina tipográfica, na Basileia, tornou a cidade um
centro destacado no comércio de livros na Suíça.
[4] A pressa do editor Froben devia ao
fato de que havia um cardeal da Espanha que estava trabalhando em sua própria
edição, mas Ximenes só conseguiu aprovação papal para a publicação em 1522, e a de Erasmo foi editada em 01 de março de 1516. A
obra do Cardeal Francisco
Ximénez de Cisneros era a Bíblia
Poliglota Complutense de Alcalá de Henares e a seção do Novo
Testamento do Complutense foi impresso em janeiro de 1514 em seis volumes, mas
publicada somente 1922. Isso ocorreu porque Erasmo tinha conseguido os direitos
de publicação exclusiva por quatro anos pelo Papa Leão X e pelo Imperador
Romano Maximiliano.
[5] Temos hoje à nossa disposição uma
riqueza de manuscritos de diferentes eras e de qualidade variável (cerca de
5.400 manuscritos para o Novo Testamento).
[6] Os manuscritos que Erasmo usou,
incluindo as anotações que fez neles, ainda existem, de forma que seu trabalho
pode ser analisado de forma relativamente bem.
[7] Um exemplo digno de nota envolve os
versos finais do Livro do Apocalipse, que estavam faltando no códice que
Erasmus havia emprestado de seu amigo Johannes Reuchlin.
[8]
Para essa segunda edição, Erasmo apresentou aproximadamente 1.100 cópias, que continha cerca de 400 melhorias.
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