A
expressão “Cristianismo Primitivo”[1]
produz algumas discussões acadêmicas. O que poderíamos denominar de fato como
sendo o “Cristianismo Primitivo”? Qual seria realmente a delimitação temporal
desse período? Entre os diversos estudiosos não há uma única resposta,
portanto, expresso aqui apenas uma dentre outras possibilidades para
compreendermos melhor o que chamamos de “Cristianismo
Primitivo”.
O termo “cristianismo
primitivo” foi usado pela primeira vez por J.
B. Basedow em 1979 referindo-se ao cristianismo “original, autêntico”. Posteriormente a
expressão tornou-se independente da história da igreja, como sendo algo
distinto dela. No século XIX debatia-se muito se o “cristianismo
primitivo” seria ou não um modelo ideal para todas as igrejas no
transcorrer do tempo.
Sem
dúvida alguma, a expressão nos arremete aos primórdios do cristianismo, tendo
como ponto de partida as literaturas canônicas neotestamentárias. Mas essas
informações cobrem tão somente a segunda parte do primeiro séculos e nos
fornecem apenas um estrato do que realmente estava acontecendo, visto que a
mensagem cristã alcança em pouco tempo todo o território do império Romano,
proliferando comunidades cristãs em toda parte. A partir de Antioquia, segundo
evangelista Lucas,[2] eles passaram a serem
denominados de cristãos e por extensão suas comunidades posteriormente se
constituirão no que veio a ser denominado de cristianismo (Χριστιανισμός),
mas esse termo somente foi utilizado pela primeira vez por Inácio de Antioquia
em 107 d.C., para definir o sistema e a prática dos cristãos ou da igreja
cristã pelos quais estavam sendo perseguidos injustamente; usa também para
distingui-lo do judaísmo e por fim aquela fé verdadeira que requer uma vida que
corresponda a essa verdade.[3]
Entretanto, o cristianismo, mormente
usado no singular, nunca foi um movimento uníssono e homogêneo,[4]
pois desde seus primeiros movimentos há discordâncias em suas ênfases e
posteriormente na interpretação de suas principais doutrinas. Nas
correspondências paulinas e demais encontramos os apóstolos preocupados que as
mais diversas discrepâncias que foram se desenvolvendo paralelamente e muitas
vezes dentro das próprias comunidades cristãs. O que chamamos de ortodoxia
cristã, que se refere ao conjunto de dogmas estabelecido pela igreja cristã, é
algo posterior e que haverá de ser forjado na bigorna dos embates e discussões
das lideranças eclesiásticas e mais tarde conciliares.
A periodização[5] do
Cristianismo Primitivo também não
encontra uma conciliação entre os diversos historiadores cristãos. Como em toda
história, as permanências e mudanças estão sempre presentes e interagindo
mutuamente, ora se opondo, ora se articulando. Desta forma, há aqueles que
optam por uma compreensão mais ampla desse período, perpassando pelo
estabelecimento do cânon cristão e controvérsias trinitárias de maneira que é
possível esticar até o quinto século. Alguns preferem tomar como referência
para conclusão desse período o Concílio de
Calcedônia (451), onde as questões cristológicas foram ao menos
equalizadas. Outros optam por ampliar até 604 no Ocidente quando do
falecimento do papa Gregório, o Grande e até 749 no Oriente,
com a morte de João de Damasco. Todavia, há aqueles que preferem o oposto e define
como “Cristianismo Primitivo” tão
somente o período neotestamentário e quando muito o segundo século da era
cristã. Seguindo a periodização mais ampla podemos subdividi-la em três períodos:
apostólico (dos primórdios neotestamentário até Clemente, bispo de Roma (95
d.C.); pré-Nicéia e pós-Nicéia. O primeiro concílio ecumênico de Nicéia,
convocado pelo imperador Constantino (325 d.C.), se constitui determinante para
essa periodização por definir polêmicas teológicas (cristológicas), mas também
porque demarca a ascensão do cristianismo sobre o paganismo no império Romano e
que efetuaria profundas mudanças da sociedade da época.
A relevância do estudo deste
primeiro período do Cristianismo Primitivo está justamente no fato de que é no
transcorrer destes primeiros séculos que o Cristianismo se definira como
religião e moldará a forma e limites da Igreja Cristã. É aqui que seus cânones
serão definidos e mesmo os Reformadores no século XVI a eles voltaram em seus
esforços de resgatar a Igreja Cristã de seu caos teológico-eclesiástico.
A partir de Nero, perpassando alguns
séculos e muitos imperadores, se empreendeu todos os esforços para que esse
cristianismo fosse destruído e esquecido. Líderes cristãos foram mortos das
formas mais brutais; suas literaturas queimadas periodicamente; suas
comunidades espoliadas com lei ou mesmo sem leis; mas esse Cristianismo
permaneceu, para que no século XXI fosse completamente esquecido e totalmente
ignorado, justamente por aqueles que deveriam preservá-lo e perdurá-lo. O que
nem mesmo os mais cruéis imperadores romanos conseguiram fazer, os cristãos dos
dias atuais fazem com sua indiferença e ignorância. Assim como o jovem pródigo,
desperdiçou toda sua riqueza se banqueteado e se prostituindo, os cristãos tem
persistentemente feito com a herança recebida do Cristianismo Primitivo. Mas,
assim como aquele jovem, quando experimentando a mais intensa miséria, chora
amargamente e toma a resolução de retornar à casa do Pai, assim será com os
atuais cristãos, que quando se aperceberem da real miséria espiritual que estão
vivendo, haverão de arrependidos, retornarem às fontes saudáveis daquele
cristianismo que apesar de enfrentarem os mais duros embates internos e
externos, permaneceu fiel às suas origens e fundamentos evangélicos.
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes,
Ivan Pereira Mestre em Ciências da Religião.
Universidade
Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro
Blog
Reflexão
Bíblica
http://reflexaoipg.blogspot.com.br/
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Referências
Bibliográficas
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ilustrada do cristianismo. A era dos mártires até a era dos sonhos frustrados. 2.
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VEYNE, P. Quando
nosso mundo se tornou cristão (312-394). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010.
[1]
Alguns autores referem-se a esse mesmo período optando por outras
nomenclaturas: cristianismo antigo; cristianismo pré-niceno.
[2]
Além do livro de Atos, escrito pelo evangelista Lucas, temos Josefo, um
historiador judeu que escreveu em grego, Tácito, Suetônio e Plínio, o Jovem, como
as primeiras testemunhas não-bíblicas que fazem referência aos cristãos.
[3][3]
Atualmente a expressão “cristianismo” é utilizado para distingui-lo de outras
expressões de fé como o judaísmo e o islamismo, bem como contraponto há outros
“ismos”, como o humanismo, marxismo.
[4] Esta
polissemia de sentidos e significados resultou em que os historiadores passaram
a se utilizar do termo plural “cristianismos”, para melhor ilustrar o contexto
histórico. Uma “unificação” ocorre a partir do século IV e perdura somente até
o século XVI, quando eclode a Reforma Protestante, revelando novamente a
pluralidade inerente do movimento cristão.
[5]
A divisão cronológica da história, tal como conhecemos hoje, foi desenvolvida a
partir do século XIX. Visava facilitar o estudo das ações do homem através dos
tempos, sendo baseada então no calendário cristão, uma vez que foi criada a
partir da cultura europeia Ocidental greco-romana.
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