Escalada Social: Paulatinamente a mensagem cristã foi alcançando as
camadas mais elevadas da sociedade imperial. Muitos cristãos acabam ocupando
funções públicas de prestígio. Próximo do ano 200 d.C., Abgar, de Edessa,
tornou-se o primeiro rei a declarar-se cristão e em 311, Constantino adota o
cristianismo como a religião, ainda que única, do Império. Os cristãos começam
acumularem riqueza e as comunidades, prosperam e adquirem muitos bens
materiais.
Adaptações Doutrinárias e Práticas: A igreja toma uma estrada que a conduzira para o período mais decadente
e apostata de sua história nos séculos
posteriores da idade média. A simplicidade de seus cultos e das vestimentas de
seus líderes foi sendo paulatinamente substituídas pelas vestimentas
esfuziantes das religiões pagãs de Júpiter, Serapis e Ísis tão populares em
Alexandria na idade teocrática anterior. As liturgias simples centradas na
pregação, nas orações e na comunhão, se transformam em cerimônias sofisticadas,
centralizadas cada vez mais no sacerdote, no altar e na celebração da missa
sacrificial. Criam-se artifícios como água benta, acender velas,
raspar a cabeça, ao invés de incentivar os cristãos a uma vida de obediência
aos princípios do Evangelho de Cristo.
Mudando o significado do batismo cristão: ainda cedo se iniciou um processo
degenerativo do significado do batismo revestindo-o de um poder mágico.
O ato até então simples de obediência à ordenança de Jesus Cristo, vai
adquirindo todo um ritual cada vez mais complexo, como descrito no documento
primário da Didaquê, o primeiro manual de catecúmenos para novos cristãos:
Agora em referência ao batismo, batizai assim: havendo
primeiramente pronunciado todas estas coisas, batizai em nome do Pai, do Filho
e do Espírito Santo, em água corrente. Mas se não tiverdes água corrente,
batizai em outra água, e se não puderdes batizar em água fria, então batizai em
água morna. E. se não tiverdes água suficiente para a imersão, derramai água em
profusão sobre a cabeça três vezes, em nome do Pai, do Pilho e do Espírito
Santo. Mas, antes do batismo, o ministrante e o candidato devem jejuar, e
quaisquer outras pessoas que puderem; mas ao candidato, mandareis jejuar por
dois ou três dias antes de ser efetuado o ato.
Desde
Justino
Mártir (150 d.C.) a expressão “banho da regeneração” começou a ser utilizado
em referência ao batismo. E nos escritos ante-nicenos o vocábulo “regenerar”
foi sendo associado diretamente ao ato do “batizar”.
No
fim desse período, a ceia podia ser celebrada somente
pelo bispo ou sacerdote. Consistia de pão e vinho (misturado com água).
Catecúmeno: Inicialmente a pessoa recebia o batismo mediante sua
profissão de fé e isso perdurou até o meado do segundo século. Com a
multiplicação de cristãos sentiu-se a necessidade de oferecer melhor instrução
aos novos convertidos, ensinando-lhes as doutrinas fundamentais da igreja. A
proposta foi boa, mas infelizmente o resultado foi funesto, pois na medida do
tempo a “educação religiosa” passou a substituir o
testemunho de uma genuína regeneração, abrindo as portas das igrejas a pessoas
que nunca experimentaram a graça de Deus, contribuindo para uma acelerada
corrupção da igreja. [o século XVI que o diga].
Mudanças Eclesiásticas: Junto com a mudança da vida cristã, ocorrem também
mudanças no ministério e na organização das igrejas. Até ao tempo de Irineu não
havia distinção entre os títulos "presbíteros" e "bispos",
sendo estes termos empregados como sinônimos. Entretanto, entre os cem anos de
Irineu a Cipriano, passaram a designar duas funções distintas. A causa possível
é que as igrejas haviam se desenvolvido e tornando suas administrações mais
complexas, como por exemplo, a responsabilidade de recolher e distribuir
esmolas, que adquiriu proporções consideráveis. Os bispos assumiram
esta obrigação e gradualmente foram assumindo uma prerrogativa
sobre o corpo de presbíteros, aos quais era confiada a direção das igrejas
locais; diante das desavenças entre os presbíteros os bispos passaram a exercer
o papel de juiz; paulatinamente caminha-se para um sacerdotalismo,
tão comum nas demais religiões. Evidentemente que em sua origem os motivos que
estabeleceram estas mudanças são genuínos, mas quando começou a ser empregado
pelos sucessores menos dignos redundaram em grandes e lamentáveis abusos.
Mas
ao final desse período, não apenas a distinção de presbíteros e bispos, mas
outras funções surgem: subdiáconos, leitores, acólitos, zeladores e
exorcistas.
Logo
surge o conceito da unidade orgânica (externa) paralela à unidade
espiritual (interna) como ensinada por Irineu,
o que vai demandar uma liderança única sobre todos os demais, de maneira que
depois de Cipriano (250) essa possibilidade torna-se cada vez mais real,
dando-se os primeiros passos para uma supremacia da Igreja de Roma como centro
da unidade de uma igreja universal.
A
análise feita pelo escritor brasileiro Rui Barbosa, católico, na introdução de seu
livro crítico “O Papa e o Concílio” realça o perigo nefasto
dessa tendência de poder centralizador:
Durante a primeira época da igreja, debalde a crítica
histórica procura na organização dela as leis e os elementos que hoje lhe
servem de base. A unidade não resultava então senão de acordo espontâneo das
almas; porque a cristandade era uma pura democracia espiritual, sem centro
oficial, sem meios de coação, extrema, sem relações temporais com o estado. A
noção pagã de um pontífice máximo seria nesses tempos uma enormidade tal que
ainda ao papa Estevão (253-257) negou formalmente Cipriano o direito de
sentenciar entre dois bispos divergentes. "Indigna-me", escrevia S.
Firmiliano, "a estulta arrogância do bispo de Roma, com presunção de que o
seu bispado é herança do apóstolo Pedro". A preponderância que na
propaganda se permitia à moral sobre o dogma, deixava à ortodoxia uma latitude
hoje inconcebível, e facilitava as reconciliações que o absolutismo unitário de
uma autoridade individualmente infalível teria necessariamente impossibilitado.
As boas obras eram então o melhor sinal de fé que se não traduzia em fórmulas artificiais,
mas na comunicação íntima entre os dissidentes evitavam as cismas, que o
refimento centralizador converteu depois em sucessos triviais e persistentes. A
simplicidade dos dogmas, a ausência de cerimônias teatrais, a severa proibição
das imagens, a pureza do ensino, o martírio dos confessores da fé, a submissão
a todos os governos humanos, a aspiração a uma pátria estranha a este mundo,
constituíam a mais decidida antítese entre aquela comunidade, vinculada pelos
laços morais, e o Catolicismo Romano fundado na ampliação arbitrária dos
artigos de fé, nas pompas de um culto faustoso, no enfeitiçamento dos sentidos,
no casuísmo, na intolerância, não somente dogmática, mas temporal, na
insubordinação contra o poder civil, no pendor do sacerdócio a estabelecer
neste mundo um reino seu. A direção dos crentes incumbia aos bispos, eleitos
pelos fiéis, aos padres e diáconos; mas ainda assim, considerável era a
participação da sociedade leiga no julgamento das questões que interessavam a
fé comum. A igreja era o povo, não suplantado, mas livremente unificado ao
sacerdócio (1930, p. 23).
Mundanismo: Um documento revelador é o chamado “Cânones
dos Santos Apóstolos”, produzido provavelmente no final desse período: o
mundanismo predominava entre o clero, pois muitos faziam parte da igreja, mas
manifestavam um comportamento totalmente pagão; predominava a imoralidade; os
templos cristãos se assemelham cada vez mais aos templos pagãos ricos e
suntuosos; as primeiras imagens começam a serem inseridas nos
templos com a explicação de que era para substituir as adorações politeístas
pagãs.
Analfabetismo: A maior parte dos cristãos continuou no analfabetismo,
pois o ensino do catecismo se dava na forma oral/memorização.
Poucos membros frequentavam as escolas pagãs. Assim perpetuava-se a
liderança daqueles que detinham o conhecimento em detrimento da grande massa de
cristãos que permanecia na ignorância literária. Houvesse o cuidado com a alfabetização
dessa maioria e certamente a História Cristã que conhecemos seria totalmente
diferente. Somente no século XVI com o advento da Reforma
Protestante é que os seus diversos segmentos haverão de investir
fortemente na educação de seus membros, principalmente as crianças.
Ascetismo:
Muitos cristãos diante do quadro
decadente de suas lideranças eclesiásticas e tomados pelo sentimento de
desesperança em ver a sociedade salva, buscam uma alternativa para si optando
por uma vida ascética de renúncia: ao casamento [um celibato
voluntário], comer carne, beber vinho. Nesse primeiro momento ainda
permanecia vivendo na sociedade, porém, mais tarde começaram a abandonar o
“mundo” retirando-se para os desertos e florestas.
Não devemos generalizar que toda a cristandade estivesse
tão corrompida. Uma expressiva parcela da liderança e dos cristãos permanecia firme
lutando sinceramente por uma vida cristã autentica sem essa tibieza de
moralidade, tanto de costumes como de práticas, com apontamos ao referenciar
alguns dos movimentos internos. Além disso, o cristianismo
conseguiu restringir o divórcio, abolir a pratica de infanticídio, valorizar o
casamento e a vida familiar e restringir ao máximo as condições desumanas dos
escravos, beneficiando não apenas as comunidades cristãs, mas a
sociedade como um todo.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes,
Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
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Reflexão
Bíblica
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