Como explicado no artigo anterior inicialmente os
cristãos eram tolerados dentro Império da mesma forma que os judeus, pois até
então se pensava que o cristianismo era uma seita judaica. Somente após as
perseguições promovidas por Nero é que os cristãos serão tratados
distintamente. Completando o artigo anterior veremos como a Igreja Cristã foi
tratada pelo Império Romano a partir do governo de Severo, até o momento em que
o Cristianismo deixou de ser uma religião ilícita e passou a fazer parte
integrante do Império.
Ø Severo (192 d.C.): Encerrada a dinastia nerva-antonina, ruge mais uma vez a
malícia persecutória; os preconceitos e a fúria da multidão ignorante, culpando
os cristãos pelas desgraças acidentais, reeditam-se leis obsoletas em relação
aos adeptos do cristianismo.
o Até o século II, as ações persecutórias
encontravam-se circunscritas às autoridades e ao nível das províncias romanas.
Conforme destaca G.E.M. de Ste Croix, o poder imperial, nesta época, não
intervinha diretamente sobre a
questão dos cristãos, a qual ficava a cargo dos governadores de província (STE CROIX, 1963, p. 7).
Todavia, quando se inicia o século III, visto
que o cristianismo estava estabelecido em todo o Império, a ponto de Tertuliano,
que viveu nessa época, registrar, uma hipérbole com certeza, que se os cristãos houvessem se retirado em
massa dos territórios romanos, o império teria ficado grandemente despovoado.
E o apologista registra o clima anticristão que predominava naquele
momento: “Se o Tibre chega às muralhas,
se o Nilo não se eleva até os campos, se o céu não provê chuva, se há
terremotos, se há fome ou peste, imediatamente grita-se, ‘Os cristãos ao leão’.
Tantos para um?”
§ O que fica claro nessas palavras de Tertuliano é que os
cristãos se transformaram em bodes expiatórios no transcorrer do século III,
passando a ser os principais inimigos internos do Império Romano: depreciadores
dos valores romanos, perturbadores da paz dos deuses, e na visão do governo colcoando
em risco a manutenção da própria res publica.
o A partir deste contexto o poder imperial passa a tratar a
questão do Cristianismo, como grande perigo de desestabilização, de modo que os
imperadores
passaram a se envolver diretamente com a questão cristã, em especial Décio, Valeriano e Diocleciano.
Ø Décio (249 d.C.): A primeira perseguição em todo o Império. Aborrecido
com seu antecessor (Felipe) e enciumado com o avanço do cristianismo, visto que
os templos pagãos começavam a ser abandonados e as comunidades cristãs cada vez
mais cheias, Décio vai colocar todo seu esforço para erradicar o cristianismo
do Império e para isso promulga um decreto, cujo teor disserta Dreher (2004, p.
54):
o A partir de 249, imperadores naturais da llíria
procuraram, através de uma concentração de forças, salvar a unidade do Império.
Contra as forças desagregadoras dos cultos orientais é que se voltou o edito do
imperador Décio (249-253), no ano de 250. Segundo o edito, todos os habitantes
do Império tinham que sacrificar aos deuses e ao gênio do Imperador. Feito o
sacrifício, o autor do mesmo recebia um certificado. O edito não se dirigia
especificamente contra os cristãos, mas atingi-os em cheio, pois os adeptos das
comunidades cultuais não cristãs realizavam os sacrifícios sem maiores
escrúpulos. As religiões sincretistas não proibiam tal sacrifício. Para os
cristãos, a situação era diferente. Para eles, o sacrifício significava
automaticamente prisão, perda da propriedade e morte.
o Contribui para isso o fato de que a igreja cristã estava
subdividida em inúmeras facções. Na ilha de Creta, o governador, sumamente ativo na
execução dos éditos imperiais, fez correr rios de sangue dos piedosos cristãos.
Era exigido que os cristãos renunciassem sua fé, e que se submetessem aos ritos
da religião imperial. Os que se submetessem receberiam um Certificado
de Sacrifício (libellus)
da Comissão sacrificial local e assim seria inocentado da suspeita de minar a
unidade religiosa do Império.
§ Sob tanta pressão muitos cristãos sucumbiram; muitos
pagaram propinas para adquirirem um certificado. Entretanto, muitos se
recusaram e preferiram enfrentar a morte, como Fabiano de Roma (Cipriano de
Cartago. Epístolas 75,3) e Bablas de Antioquia (História Eclesiástica VI. 39,
4). Orígenes, o célebre presbítero de Alexandria,
foi preso aos sessenta e quatro anos e torturado
violentamente, enquanto outros líderes precisaram fugir – como Cipriano
de Cartago (Epístolas 2,1).
o De acordo com documento da época - as Epístolas
de Cipriano de Cartago – podemos perceber que está terrível política
imperial alcançou um relativo, e rápido, êxito, pois muitas comunidades, sem
suas lideranças, apostataram (Cipriano de Cartago. Tratado sobre os apóstatas 8;
cf. História Eclesiástica, de Eusébio de Cesaréia).
Ø Valeriano (257 d.C.): Sete anos após a morte de Décio, em
257, Valeriano promulgou dois editos que definiram as diretrizes da
perseguição e a ilegalidade do Cristianismo. A perseguição promovida por
Valeriano objetivava a destruição das comunidades cristãs a partir do confisco de
seus bens e da destruição física de suas principais lideranças e notáveis (tática
usada por Hitler em relação aos judeus alemães e todos os
regimes totalitários).
o Perdurou por longos e terríveis três anos e
dez meses. Foram inumeráveis os mártires dessa perseguição; suas
torturas e mortes eram variadas e penosas. Estêvão,
bispo de Roma, foi decapitado; Saturnino, o piedoso bispo ortodoxo de
Toulouse, teve seus pés atados à cauda de um touro, e o enfurecido animal
desceu em disparada as escadarias do templo. No ano 258 d.C, Marciano, que
dirigia os assuntos do governo em Roma, conseguiu uma ordem do imperador
Valeriano para matar todo o clero cristão que atuava na capital do império e
por ordem dele, o bispo Sixto e seis de seus diáconos sofreram o
martírio.
o Na África,
a perseguição rugiu com peculiar violência; milhares foram martirizados. Cipriano,
bispo de Cartago, um pregador piedoso e cortês, em 250 d.C, ele foi
publicamente proscrito pelo imperador Décio e todos os seus bens confiscados;
em 257 d.C, foi desterrado para uma pequena cidade, no mar da Líbia; mas depois
de outro tribunal, foi condenou à decapitação, sentença executada no dia
quatorze de setembro de 258 d.C.
§ A título de exemplo, é oportuno transcrever a mísera
sorte do imperador Valeriano, que durante muito tempo, e tão duramente,
perseguiu os cristãos. Este tirano foi feito prisioneiro, mediante um
estratagema, por Sapor, imperador da Pérsia, que o levou ao seu próprio país e
tratou-o ali com a mais inusitada indignidade, ao fazê-lo sempre ajoelhar-se
como o mais humilde escravo e colocar sobre ele os pés, como se fora uma
banqueta, quando montava em seu cavalo. Depois de tê-lo humilhado durante sete
anos neste abjeto estado de escravidão, fez com que lhe tirassem
os olhos, apesar de já possuir oitenta e três anos de idade. Ainda não
saciados os seus desejos de vingança, ordenou que o esfolassem
e esfregassem
lhe sal na carne viva. Sob tais torturas, morreu Valeriano, um dos mais
tiranos imperadores de Roma e um dos maiores perseguidores dos cristãos. (Eusébio
de Cesareia. História Eclesiástica VII, 13,1; Lactâncio. Sobre a morte dos
perseguidores 5,2-5).
Ø Galieno (253-268). Com a morte de Valeriano, assumiu seu
filho que foi mais condescendente e durante seu reinado (exceto por alguns
poucos mártires) a Igreja gozou relativa paz. Chegou a promulgar um rescrito
pelo qual devolvia os lugares de culto e os bens às comunidades cristãs (cf.
Eusébio de Cesareia. História Eclesiástica VII, 13,1), embora não tenha
declarado o cristianismo uma religião lícita.
Ø Diocleciano (284-305): O breve período de paz entre o
Império e os cristãos será rompido por um dos períodos mais
implacáveis de perseguição. Como autodenominado Pontifex Maximus o
imperador tornar-se o zelador das tradições religiosas e cabia a ele buscar a
benevolência dos deuses que garantiria a ordem e a prosperidade para o Império
(BROWN, 1999:40).
o Diante do risco permanente de motins entre seus generais,
ele estabelece um colegiado do poder imperial, denominado na historiografia
como Tetrarquia: um sistema político que baseava na
promoção da concórdia e da uniformidade.
o Então, após um período desde o rescrito de Galieno, a situação
vai mudar radicalmente, ainda que não houvesse nenhum motivo para isso, como
descreve Moses I. Finley (1991, 170):
·
Cristãos
ocupavam cargos públicos, e eram leais (ou tão indiferentes) ao Império como
qualquer outro grupo, não havia nenhuma grande pressão popular no sentido de
eliminá-los, no sentido de torná-los bodes expiatórios da peste e da fome; em
suma, não havia nenhum motivo político ou social visível para que Diocleciano,
quase ao final de seu reinado, decidisse esmagar essa religião.
o O que
aconteceu então? O historiador Paul Veyne nos ajuda a entender essa
drástica mudança. Próximo do ano 300, Diocleciano elabora um decreto visando
uma pureza moral do Império Romano. Para ele somente a volta do respeito às
veneráveis e puras normas das leis romanas fariam com que os deuses fossem mais
indulgentes com Roma ao “virem que todos
os súditos do imperador levam uma vida piedosa, devota, tranquila e pura”
(VEYNE, 2010, p. 245).
o Entretanto, este desejo nostálgico-religioso do imperador
vai encontrar nos cristãos um obstáculo, pois eles além de estarem espalhados
por todo o império são obstinados em sua adoração exclusivista – é
preciso quebra-los – quatro editos serão promulgados (Lactâncio 12,2; 13,1;
Eusébio de Cesaréia – História Eclesiástica, VIII, 2, 1-5; BARNES, 1981, p. 23):
§ Toda literatura cristã deve ser entregue às autoridades
imperiais para serem queimadas;
§ Seus lugares de culto devem ser demolidos;
§ Seus direitos legais foram suprimidos;
§ Os cristãos proeminentes (honestiores) tiveram seus
privilégios suprimidos;
§ Um número crescente de cristãos foi aprisionado;
·
O segundo e
terceiro editos endurecem ainda mais a perseguição:
·
As lideranças cristãs
são presas (bispos, presbíteros, diáconos);
·
Somente após o
cristão efetuar um sacrifício público aos deuses, ele ficaria livre da prisão.
Ø Declínio das
Perseguições Imperiais
o A partir da abdicação de Diocleciano e Maximiano as
perseguições no Ocidente declinam rapidamente. No Oriente
o maior perseguidor, Galério, tomado pela enfermidade, edita um
decreto cessando a perseguição aos cristãos e solicitando-lhes
que orem por ele e pela res publica (LACTANIO, 34, 1-5; CESAREIA, VIII, 17,
3-10). Este decreto é o marco histórico da definitiva
liberdade de ser cristão. Em seu comentário sobre esse decreto, F.
Ruggiero afirma:
·
Os cristãos foram um inimigo
extremamente anômalo. Por mais de dois séculos Roma tinha procurado
assimilá-los ao próprio tecido social… estavam fisicamente no interior da
civitas Romana, mas por motivos diversos eram-lhe estranhos; tinham finalmente
determinado uma radical transformação da própria civitas em sentido cristão.
o Mas apesar de Maximino Daia, no Oriente,
manter a perseguição contra os cristãos, utilizando como argumento as calúnias
contra Cristo, contidas no documento apócrifo “Atas de Pilatos”, no final vai prevalecer o
“Edito de Tolerância de Galério”,[1] que revoga
os editos persecutórios, e inclui entre as divindades que protegem o Império
Romano, o Deus dos cristãos. A partir daqui se estabelecem as bases das
relações do cristianismo com o poder imperial, não apenas no século IV, mas no
Governo de Constantino I e além.
o O Cristianismo goza agora de um status
de religião lícita (religio licita), que somado à vitória
de Constantino sobre seu maior concorrente
Maxêncio, na famosa Batalha da Ponte Mílvio, em 28 de outubro de 312 (cf.
CESAREIA, IX, 9, 1-13; Vida de Constantino I, 38-40, 1-2) e a conferência
imperial de Milão, entre Constantino e Licínio (308-324), acrescido da derrota
de Maximino Daia para Licínio (cf, CESAREIA, IX, 10. 1-5), transforma a
religião cristã, até então ilícita e perseguida, em uma religião lícita e
favorecida pelos futuros imperadores romanos.
Sem
nos determos em detalhes, podemos estabelecer uma espécie de estatística
entre os anos 64 e
313, isto é, sobre um período de 249
anos, e chegarmos, conforme cálculos de Giordani (2002, p. 331), a cento e
vinte e nove anos de perseguição
religiosa para cento e vinte anos de tolerância:
o Século I: 6 anos de
perseguição e 28 de tolerância.
o Século II: 86 anos de perseguição e 14 de tolerância.
o Século III: 24 anos
de perseguição e 76 de tolerância.
o Século IV: 13 anos de perseguição.
Imperador Constantino: Herói ou Vilão?
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes,
Ivan Pereira
Mestre
em Ciências da Religião.
Universidade
Presbiteriana Mackenzie
Outro
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Reflexão
Bíblica
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[1] É também denominado de “Édito de Tolerância de Nicomédia” e foi
um édito datado de 311 d.C. e emitido pela tetrarquia de Galério, Constantino I
e Licínio, oficialmente colocando um fim à perseguição promovida por
Diocleciano aos cristãos.
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