TEXTO AMPLIADO
Quando uma pequena parte da esquadra portuguesa, escoltada
pelos navios de guerra ingleses, que trazia a família Real e praticamente toda
a Corte portuguesa ao Brasil, se separou com D. João VI e a rainha mãe D. Maria,
aportando primeiramente na Bahia em 24
de janeiro de 1808, enquanto os demais navios seguiriam o plano de viagem
pré-ordenado em direção ao Rio de Janeiro, dava-se o maior e mais significativo
divisor de águas da historiografia brasileira.
Ainda que relegado ao ostracismo e ceticismo no que se
refere às datas simbólicas brasileiras, este advento demarca o início das mais
significativas transformações sociais e econômicas que a até então Colônia
brasileira havia experimentado em seus quase trezentos anos de existência.
Naquele momento as pessoas envolvidas jamais poderiam prever que os singelos
atos promovidos por D. João VI, na Bahia e posteriormente no Rio de Janeiro,
haveriam de repercutir tão intensamente na história brasileira e nem nos sonhos
(ou pesadelos) mais extravagantes se imaginaria que viesse a desembocar, em
apenas doze anos, no movimento que culminaria com a independência do Brasil
(1822).
Foi nesta rápida estadia, de aproximadamente trinta dias,
na Bahia que D. João assina o primeiro documento oficial no Brasil, denominado
de “Carta Regia”, que permitirá de
forma inédita que navios outros que não português pudessem aportar em
território brasileiro, tornando-se o marco da inserção brasileira nos
movimentos econômicos internacionais, obrigando a jovem Colônia a se
transformar de abobora em Metrópole, como em um conto de fadas à imaginação tupiniquim.
Entretanto, nada disso ocorre motivado apenas pelos
interesses próprios de D. João VI e da Corte portuguesa, mas como cumprimento
de um acordo prévio estabelecido com os ingleses que em contrapartida haviam
feito a escolta da família real de Portugal ao Brasil, pois eles possuíam
naquele momento a única frota capaz de impor respeito diante dos navios franceses
de Napoleão que povoavam os mares, e cujo os exércitos simultaneamente estavam
desembarcando nos portos portugueses e assumindo simbolicamente o trono
lusitano.
O decreto real de Abertura dos Portos, ainda que fosse
destinado à todas as nações amigas, beneficiava naquele momento apenas o
comércio inglês, que por longo tempo predominara nas relações comerciais
brasileiras. No aspecto prático, o documento rompia o chamado “pacto colonial”,
que exigia que todos os produtos comercializados com a Colônia pagassem taxas
alfandegárias à Portugal.
Este decreto de 1808 (conforme abaixo comentado)
simbolicamente haverá de ficar impregnado na mentalidade comercial brasileira,
de maneira que os termos “abertura”, “protecionismo” e “competitividade” são
avocados invariavelmente pelos mais diversos segmentos da economia brasileira
em todos os tempos. Parafraseando um adágio popular: “deixamos de ser colônia,
mas o espírito de colônia nunca nos deixou”.
É também por esta pequena incisão legal, primariamente
comercial, que se iniciara o processo de implantação dos segmentos cristãos
protestantes no Brasil. Inserido no decreto real está a primeira abertura legal
para que pudesse haver expressão religiosa não católica no país, rompendo um
monopólio religioso de mais de trezentos anos. Os ingleses serão os primeiros a
usufruírem deste dispositivo, mas em poucas décadas outros estrangeiros também
faram uso desta pequena, mas irreversível liberdade religiosa.
Utilização livre
desde que citando a fonte
Guedes, Me. Ciências da Religião.
Universidade
Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Reflexão Bíblica
http://reflexaoipg.blogspot.com.br/
Carta Regia de 28 de janeiro de 1808.
Conde
da Ponte,[1] de
Meu Conselho, Governador e Capitão General da Capitania da Bahia, Amigo. Eu o
Príncipe Regente[2] vos Envio muito saudar,
como aquele que Amo. Atendendo a representação, que fizeste subir à Minha Real
Presença sôbre se achar interrompido, e suspenso o Comércio desta Capitania com
grave prejuízo dos Meus Vassalos, e da Minha Real Fazenda[3] em
razão das críticas, e públicas circunstancias da Europa[4], e
Querendo dar sôbre este importante objeto alguma providência pronta, e capaz de
melhorar o progresso de tais danos: Sou Servido Ordenar interina, e
provisoriamente, enquanto não Consolido um Sistema geral, que efetivamente
regule semelhantes matérias, o seguinte. Primo: Que sejam admissíveis nas
Alfândegas do Brasil[5]
todos e quaisquer Gêneros, Fazendas, e Mercadorias transportadas, ou em Navios
Estrangeiros das Potências, que se conservam em Paz, e Harmonia com a Minha
Real Coroa, ou em Navios dos Meus Vassalos, pagando por entrada vinte e quatro
por cento; a saber: vinte de Direitos grossos, e quatro do Donativo já
estabelecido, regulando-se a cobrança destes Direitos pelas Pautas, ou
Aforamentos, por que até o presente se regulam cada uma das ditas Alfândegas,
ficando, os Vinhos e as Aguardentes, e Azeites doces, que se dominam Molhados,
pagando o dobro dos Direitos, que até agora nelas satisfaziam. Segundo: Que não
só os Meus Vassalos, mas também os sobretidos Estrangeiros possam exportar para
os Portos, que bem lhes parecer a benefício do Comércio,[6] e
Agricultura,[7] que tanto Desejo promover,
todos e quaisquer Gêneros, e Produções Coloniais, à exceção do Pau-brasil,[8] ou
outros notoriamente estancados,[9]
pagando por saída os mesmos Direitos já estabelecidos nas respectivas
Capitanias, ficando entretanto como em suspense, e sem vigor todas as Leis,
Cartas Regias, ou outras Ordens, que até aqui proibiam neste Estado do Brasil o
recíproco Comércio, e Navegação entre os Meus Vassalos, e estrangeiros. O que
tudo assim fareis executar com zelo e atividade, que de vós Espero, Escrita na Bahia
aos 28 de janeiro de 1808. [Grafia da época].
Príncipe — Para o Conde da Ponte.
Príncipe — Para o Conde da Ponte.
[1] Seu nome completo era João de
Saldanha da Gama Melo Torres Guedes Brito (1773-1809), sexto conde da Ponte,
governou a capitania da Bahia entre 1805 e 1809, e foi o responsável pela
recepção da família real portuguesa no Brasil em 1808. Tornou-se conhecido pela
forma autoritária como tratava os escravos e por defender que, qualquer tipo de
união entre os cativos, fosse em quilombos ou em irmandades, poderia levar a
rebeliões e deveriam, portanto, ser energicamente reprimidos. Apesar das
posições arbitrárias com relação aos cativos, o conde foi também o responsável
pela implementação do Teatro de São João em Salvador. A obra foi iniciada em
1806, ainda durante seu governo e o Teatro foi inaugurado em 13 de maio de
1812, portanto, mais de um ano antes da inauguração da mais importante casa de
espetáculos da corte, o Real Teatro de São João, aberto em 12 de outubro de 1813.
[2] D. João (1767-1826), segundo filho de
d. Maria I e d. Pedro III, de maneira que somente torna-se herdeiro imediato da
Coroa com a morte do primogênito d. José em 1788. Ele assumiu a regência do
Império português em 1792, no impedimento de sua mãe, considerada louca.
Durante seu governo Portugal foi invadido pelos exércitos francês de Napoleão
Bonaparte em 1807, levando à transferência da família real e da Corte para o
Brasil, tendo partido às pressas em novembro daquele mesmo ano, aportando em
Salvador em janeiro de 1808. Ainda no Brasil, com a morte de d. Maria I1816,
tornou-se d. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves. Para não perder o
direito de reinar, em 1821, retornou com a Corte para Portugal, deixando no
Brasil seu filho Pedro como regente. Mesmo à distância teve uma influência
ativa no processo da independência do Brasil (1825) oferecendo orientações ao
jovem príncipe que a partir de então assumira o trono brasileiro.
[3] Este órgão governamental foi criado
em 1761, durante o reinado de D. José I, resultante de uma profunda reforma
econômica efetuada pelo ministro Martinho de Melo e Castro. O objetivo primário
era minimizar os poderes do até então todo poderoso Conselho Ultramarino, mas
trouxe um forte impacto tanto para Portugal quanto para suas colônias, pois
modernizou-se os métodos de contabilidade introduzindo novas formas de
elaboração de escrituração e balanços periódicos. Foi introduzida nas colônias
as Juntas da Fazenda, que eram órgãos descentralizados e responsáveis pelos
custeios militares, civis e eclesiásticos (todos os clérigos eram pagos pela
coroa portuguesa), bem como todas e quaisquer despesas extraordinárias.
[4] D. João faz referência às invasões
francesas por toda a Europa, onde desde 1799 Napoleão desencadeou guerras com
praticamente todas as grandes potências, culminando com o “Bloqueio Continental”
em 1806. Todo e qualquer navio não aliado da França deveria ser abatido. D.
João VI usa a tática da neutralidade, mas com a aliança França-Espanha (1807),
os exércitos franceses marcham para invadir Portugal sob o comando do general
Junot (novembro de 1807), obrigando a Família Real embarcar às pressas na
calada da noite nos navios que os transportariam para a colônia brasileira,
escoltados pelos navios ingleses. Somente em 1811, após sucessivas batalhas entre
as tropas francesas e os exércitos anglo-lusitanos, e após a grande vitória na batalha
do Buçaco, os franceses se retiraram dos domínios portugueses.
[5] Eram órgãos da administração fazendária
ou Fazenda responsável pela arrecadação e fiscalização dos tributos
provenientes do comércio de importação e exportação. Com a chegada da Corte
portuguesa e a abertura dos portos brasileiros implementou-se muitas e
significativas mudanças. Deste modo, todos os gêneros, mercadorias ou fazendas
que entrassem no país transportado em navios portugueses ou em navios
estrangeiros (que não estivessem em guerra com Portugal) pagariam por direitos
de entrada 24%, mas os ingleses haviam conseguido incluir em seu acordo
bilateral a diminuição dessa taxa para 15%, o que causou uma revolta enorme nos
comerciantes portugueses. Os denominados gêneros molhados deveriam pagar o
dobro desse valor. Em relação à exportação, qualquer produto colonial (com
exceção dos produtos "estancados", como o pau-brasil ou outros)
pagaria nas alfândegas os mesmos impostos cobrados nas demais colônias.
[6] Aqui se rompe um monopólio rígido mantido
pelo governo português desde seu controle sobre as fronteiras litorâneas brasileiras.
No pacto colonial, que estava sendo desfeito, dava privilégios unicamente à
Portugal e aos portugueses. Ainda que na pratica, desde o século XVII inúmeras concessões
foram sendo introduzidas, dos quais os ingleses sempre se aproveitaram acintosamente.
A posição privilegiada dos ingleses será ampliada com a assinatura em 1810 do
Tratado de Navegação e Comércio que perpetuara as vantagens econômicas deles
sobre os demais países no comércio com o Brasil e Portugal.
[7] A agricultura brasileira naquele
período se caracterizava pelas lavouras monocultoras escravagistas voltadas
para exportação. A chegada da Corte portuguesa vai criar a necessidade de uma
diversificação agrícola e criação de animais para abastecimento interno. Uma
das muitas ações emergenciais efetuadas por D. João VI foi o decreto da formação
do primeiro curso de agricultura na Bahia em 1812 e posteriormente em 1814
cria-se uma cadeira acadêmica de botânica e agricultura, no Rio de Janeiro,
para o qual foi nomeado o Frei Leandro do Sacramento. São os primeiros passos
para se conhecer o potencial da fauna e flora brasileira e a exploração das
riquezas naturais de forma cientifica.
[8] Nossa menina dos olhos de ouro, que
recebeu o nome científico de Caesalpinia echinata, dada pelo cientista Jean-Baptiste Lamark
em 1789, no século XVIII, mas que os índios tupis chamavam de Ibirapitanga. Estas árvores cobriam todo
o litoral brasileiro desde o Rio de Janeiro até o Rio Grande do Norte. Torna-se
o primeiro produto de exportação pelas suas qualidades de corante e construção
naval e instrumentos musicais, e que permaneceu na pauta exportadora até metade
do século XIX. Foi durante séculos o “ouro verde” dos portugueses, por isso a
preocupação por parte do governo em manter intacto seu monopólio.
[9] O termo se refere ao monopólio real
quanto a comercialização de determinados produtos. Quando não realizados pela
Coroa havia regras rígidas para exportação: quantidade máxima, preços tabelados
e autorização régia para comercialização deles. No século XVIII os estancos
mais relevantes para Portugal eram o sal, tabaco, ouro e as pedras preciosas,
que periodicamente eram taxados com o quinto.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
ivanpgds@gmail.com
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Guedes, Ivan Pereira Mestre em Ciências da Religião.
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Referência Bibliográfica
D’Eça, Vicente Almeida. A Abertura dos Portos do Brasil — Ensaio Histórico. Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa, 1908.
Documento Original - http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/Media/Abertura%20dos%20portos.pdf
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