Há duas tendências prejudiciais à genuína História do
Protestantismo e da História em geral: A primeira consiste na romantização dos
acontecimentos históricos, elevando os protagonistas a figuras heroicas e
idealizadas, como se os processos vivenciados fossem isentos de complexidade e
conflito. Essa narrativa idealizada obscurece as nuances históricas e favorece
a construção de mitos, em detrimento da análise contextual.
A segunda tendência, ainda mais inquietante, consiste na
negligência da própria História, frequentemente considerada por muitos como
elemento irrelevante ou descartável no contexto contemporâneo. Tal postura
evidência não apenas um déficit de conhecimento, mas também uma ruptura com a
consciência histórica — componente fundamental para a construção da identidade
individual e coletiva.
Essas perspectivas equivocadas revelam-se particularmente evidentes
entre segmentos evangélicos das gerações mais recentes, cujas práticas e
discursos denotam um desconhecimento significativo de suas tradições
históricas, fundamentos teológicos e marcos institucionais. Tal lacuna
cognitiva conduz a uma postura autorreferente, como se fossem protagonistas
inaugurais de um movimento desvinculado de suas raízes — raízes essas forjadas
ao longo dos séculos por uma multiplicidade de vozes, embates e contextos históricos
que moldaram a identidade protestante contemporânea.
A sistemática desvalorização da História, em determinados círculos
evangélicos contemporâneos, decorre também do fato de ela funcionar como um
espelho incômodo que revela a realidade desconcertante de um evangelicalismo
superficial e profundamente aculturado, característico dos séculos XX e XXI.
Tal cenário sinaliza um inquietante retrocesso às sombras da Idade Média —
período em que a Igreja, desfigurada por estruturas de poder e alianças
espúrias, havia se distanciado de sua identidade e missão essencial como sal e
luz do mundo. Em nossos dias, os sinais da presença dos valores do Reino de
Deus tornam-se cada vez mais rarefeitos, enquanto princípios mundanos e
mercantilistas ascendem como forças estruturantes de um modelo eclesiástico que
busca acomodar-se confortavelmente aos contornos de uma sociedade marcada pela
degradação ética e espiritual.
Nos turbulentos anos do século XVI, sob os ecos profundos da
Reforma Protestante, Genebra emerge como um cenário emblemático do embate entre
tradição e renovação. Os reformadores — homens como João Calvino e Guillaume
Farel — não apenas enfrentaram questionamentos doutrinários, mas também foram
alvo de intensas pressões sociais e políticas, chegando ao extremo da
violência.
Os opositores do avanço reformado, ao perceberem nele uma ameaça às
estruturas religiosas e políticas então vigentes, mobilizaram-se com veemência
para conter sua disseminação. O receio de que as sementes de um Evangelho
profundamente bíblico e salvífico frutificassem em solo genebrino e se
espalhassem por outras regiões levou à intensificação da resistência, por vezes
violenta, contra os reformadores. Este episódio revela o custo elevado de uma
fé que se dispõe a desafiar estruturas consolidadas, e a força resiliente
daqueles que empenharam suas vidas na restauração da centralidade das
Escrituras como fundamento da vida cristã.
Após inúmeros embates e retrocessos, os reformadores conquistaram
uma vitória significativa — ainda que parcial — na cidade suíça de Genebra.
Contudo, os opositores não estavam dispostos a renunciar a seu status quo,
sustentado não por convicções religiosas, mas por uma moral profundamente
corrompida. Para estes, a religião deveria se restringir ao âmbito privado, sem
se imiscuir nas dinâmicas sociais e políticas. Seu lema, então como agora, era:
“viva e deixe viver”. A reputação de Genebra como um reduto de depravação
ecoava por toda Europa, sendo descrita em versos e prosas como símbolo de uma
sociedade afundada no pecado. Aqueles que se agarravam ao lamaçal da
imoralidade resistiam a qualquer tentativa de reforma, exigindo que a Igreja os
aceitasse tal como eram, sem confronto ou transformação. A semelhança com os
dias atuais é inquietantemente reveladora — e está longe de ser mera
coincidência.
Os reformadores, cientes da seriedade do chamado divino, não podiam
— em sã consciência — aceitar as condições impostas por uma sociedade
moralmente decadente. Compreendiam que os princípios bíblicos não existem para
serem contemplados como relíquias em vitrines religiosas, mas sim para serem
vividos com integridade por aqueles que professam fé no Cristo redentor. Os que
se recusam a se submeter à Palavra permanecem em sua devassidão, e
inevitavelmente terão de prestar contas à reta justiça de um Deus Santo.
Desafiar uma mentalidade impregnada de carnalidade moral e
espiritual, no entanto, acarreta alto custo: aqueles que se levantam para
reestabelecer a centralidade das Escrituras enfrentam riscos reais — a
perseguição, a violência, e até a morte.
Neste contexto, vale transcrever o recorte da renomada autora Thea
B. Van Halsema, cuja obra sobre os reformadores oferece luz sobre essa tensão
entre fé autêntica e resistência secular.
Este é o retrato fiel, quase fotográfico, de um momento decisivo —
uma self espiritual capturando o exato instante em que os reformadores, com os
corações firmados na Palavra, se veem compelidos a deixar Genebra. Não por
falta de argumentos, mas por excesso de convicção. Não por serem vencidos, mas
por recusarem transformar o templo do Senhor em vitrine da depravação.
A atmosfera que os envolve é densa, carregada como as nuvens que
antecedem uma tempestade: há angústia, há temor, mas há também uma paz que não
pode ser arrancada — a paz de quem serve a um Deus que vê no oculto e julga com
justiça. Eles partem, mas deixam rastros de verdade, ecos de um Evangelho que
não negocia com o pecado.
A história os expulsa, mas a eternidade os acolhe como testemunhas
da fé que não se corrompe. E àqueles que hoje se veem pressionados a diluir a
verdade em nome da aceitação, este momento nos lembra: ser fiel às Escrituras
é, muitas vezes, caminhar contra o fluxo — mesmo que isso custe o conforto, o
prestígio ou a própria vida.
Transcrição do texto da referida historiadora com tradução
eletrônica acrescida de algumas notas explicativas.
Calvino e Farel abriram caminho pela multidão que chiava e cuspia
neles. Subiram os degraus dentro da prefeitura e passaram pelo arauto à porta
da câmara do conselho. Ao conselho disseram: Vocês agiram perversamente ao
aprisionar um servo do Senhor. Ele falou a verdade quando pregou que vocês não
têm o direito de decidir a adoração da igreja sem antes consultar a própria
igreja¹.
O conselho estava desconfortável diante da ira dos pregadores. Eles
barganharam: Esperaremos para colocar os ritos de Berna em prática se vocês
concordarem em nos permitir afastar Corault de seu ofício como pregador².
A isso jamais concordaremos, responderam os dois homens de roupas
pretas. Tampouco introduziremos as cerimônias de Berna. O conselho da cidade
não tem o direito de impô-las à igreja³.
Do lado de fora, a multidão esperava pelos pregadores. “Ao Ródano,
ao Ródano”, gritavam alguns. Outros lançavam insultos sujos às costas de
Calvino e Farel. Mais cuspes, mais chiados, mais punhos e bastões sacudidos. E
quando chegou a noite, mais chutes em sua porta, mais tiros disparados sob suas
janelas, mais canções sujas cantadas ruidosamente. Alguém chegou a desfilar
pelas ruas, zombando da Ceia do Senhor com uma cantiga obscena⁴.
Tudo isso era um pesadelo para o tímido francês de vinte e oito
anos. O Senhor o havia colocado sobre uma igreja, em vez de colocá-lo em um
estudo tranquilo. Mas que igreja e que cidade! Por quanto tempo ele seria
obrigado a resistir à tempestade?
Noite de sábado. O arauto do conselho chegou por ordem dos
síndicos. Os pregadores concordariam em usar os ritos de Berna? Caso contrário,
os pastores Calvino e Farel não deveriam subir aos púlpitos no dia seguinte.
Outros pregadores seriam encontrados para pregar os sermões da Páscoa e
administrar a Ceia do Senhor⁵.
Manhã de domingo. As igrejas estavam completamente cheias. Os
pregadores pregariam? Sim, os pregadores haviam decidido pregar. Após uma noite
sem sono, dirigiram-se às igrejas — Farel atravessando o rio, Calvino rumo a
Saint Pierre.
Ali estava Calvino, no púlpito, olhando para uma congregação
zangada e agitada. Que sermão ele pregou! Como poderiam estender as mãos para
receber o pão e o vinho da Santa Comunhão quando haviam pecado tão
obstinadamente contra Cristo crucificado? Poderia a Ceia ser celebrada em meio
a tumultos? Deus o proibisse⁶.
Não houve celebração da Comunhão em Saint Pierre, nem em Saint
Gervais. Ilesos, os dois pastores voltaram para casa.
Nos cultos da tarde de Páscoa, Calvino pregou na Igreja de Rive.
Quando falou sobre os problemas em Genebra, homens saltaram com espadas. Amigos
de Calvino o protegeram e o escoltaram até sua porta. “Por um milagre”, relatou
uma testemunha, não houve derramamento de sangue⁷.
Dentro de casa, Calvino e Farel aguardavam a próxima movimentação
dos conselhos. Tarde de domingo, os síndicos se reuniram. Na segunda-feira, o
Conselho dos Duzentos reuniu-se: “Damos aos pastores Calvino, Corault e Farel o
prazo de três dias para saírem de nossa cidade” ⁸.
O arauto anunciou a sentença. Ao ouvi-la, Calvino respondeu: “Muito
bem. Se tivéssemos servido a homens, teríamos sido mal recompensados, mas
servimos a um bom Mestre que nos recompensará” ⁹.
Três pastores franceses, em cavalos alugados, saíram de Genebra.
Era 25 de abril de 1538.
Notas Explicativas
- A teologia reformada sustentava que a
adoração é assunto da igreja, não do governo.
- Os ritos de Berna representavam práticas
litúrgicas menos rigorosas; sua adoção buscava controle religioso.
- O conflito entre poder civil e autonomia
eclesiástica foi central na Reforma Protestante.
- A hostilidade popular indicava resistência
às mudanças religiosas promovidas por Calvino.
- O arauto
era um oficial que comunicava decisões do conselho com bastão e vestes
cerimoniais. Os síndicos, autoridades municipais, tinham prerrogativas
executivas, enquanto o Conselho dos Duzentos era o órgão deliberativo
supremo de Genebra.
- Para Calvino, a Ceia só poderia ser
celebrada em espírito de reverência e comunhão autêntica.
- O púlpito tornou-se símbolo da tensão
entre fé e política; a violência era uma ameaça real.
- A decisão do Conselho dos Duzentos marcou
a expulsão dos líderes reformistas.
- A resposta de Calvino enfatizava sua
convicção teológica de servir apenas a Deus.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
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Referência Bibliográfica Referida neste Artigo
VAN HALSEMA, Thea B. This
Was John Calvin. Grand Rapids: Baker Book House, 1959.
Referências Bibliográficas Sugeridas
BENGE, Janet; BENGE, Geoff. João Calvino: Renovador da Igreja. São Paulo: Editora Betânia, 2005.
FERREIRA, Wilson Castro. Calvino:
Vida, Influência e Teologia. São Paulo: Luz para o Caminho, 1985.
GONZÁLEZ, Justo L. História
do Pensamento Cristão. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004.
MCGRATH, Alister. Uma
Vida de João Calvino. São Paulo: Vida Nova, 2013.
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