“A tradição é o fruto da atividade
de ensino do Espírito ao longo das eras, enquanto o povo de Deus buscava
compreender as Escrituras. Não é infalível, mas também não é desprezível, e
empobrecemo-nos se a ignorarmos.”
— J. I. Packer, Upholding the Unity
of Scripture Today
Ainda nas páginas neotestamentárias encontramos o alerta de Judas
em sua epístola, escrita na segunda metade do primeiro século: “... batalhar
pela fé que de uma vez por todas foi entregue aos santos” (Jd 1:3). Já em seus
dias, um número crescente de falsos mestres — travestidos de cristãos —
distorcia o evangelho. Sua exortação tinha o propósito de preservar o ensino
evangélico já estabelecido de forma orgânica na comunidade apostólica (Stott,
1995; Bruce, 1982).
Essa preocupação inicial de Judas continuaria a ecoar nos séculos seguintes, especialmente quando movimentos como o gnosticismo, o arianismo e o modalismo ameaçaram a integralidade da fé bíblico cristã. Um dos exemplos mais marcantes desse processo foi o marcionismo, um desvio teológico profundamente sistemático: Marcião rejeitou o Antigo Testamento, rompeu a unidade entre o Deus Criador (Demiurgo — entendido como criador da matéria e da lei) e o Deus Redentor (revelado em Jesus, o Deus da graça e do amor, e portanto totalmente distinto do Demiurgo). Além disso, elaborou um “cânon” próprio, reduzido e distorcido.
Por se tratar de uma ameaça coerente e bem articulada, o
marcionismo exigiu da Igreja uma resposta igualmente sistemática. Assim, os
primeiros escritores cristãos passaram a formular, ordenar e explicitar de modo
mais claro a fé já vivida e confessada historicamente — um processo que
contribuiu diretamente para o surgimento dos primeiros credos (Richardson, Creeds
in the Making; Kelly, Early Christian Doctrines).
Dessa forma, esse processo confirma que, inicialmente, os credos e
as primeiras sínteses doutrinárias não foram criações arbitrárias, mas
instrumentos necessários para guardar a verdade e promover a unidade da fé,
dentro da moldura estabelecida por Judas em sua epístola, ainda que aqui
utilizada de forma anacrônica.
Na esteira do desenvolvimento histórico, as grandes controvérsias
cristológicas e trinitárias desembocaram nos grandes concílios eclesiásticos:
Niceia (325) — ratificou a consubstancialidade do Filho com o Pai.
Constantinopla (381) — enfatizou o papel divino do Espírito Santo.
Éfeso (431) e Calcedônia (451) — desenvolveram a doutrina da união
hipostática em Cristo.
Certamente, essas formulações e definições doutrinárias,
sistematizadas nos diversos credos, expressam uma maturação da fé apostólica.
Seus propósitos iniciais foram legítimos, ao buscar preservá-la das
interpretações teológicas e filosóficas externas que poderiam obscurecer a
revelação bíblica em sua inteireza. Dessa forma, nesse momento histórico, os
credos funcionaram como barreiras de proteção, delimitando a identidade cristã
e servindo como critério para o ensino, o culto e a vida comunitária.
Entendo ser relevante, nesta introdução geral, discernir os quatro
principais termos que se relacionam ao tema que estamos abordando. Cada um
deles possui sua própria origem e peculiaridade, mas o propósito é comum:
servir de bússola para orientar a Igreja em tudo o que se refere à fé de forma
clara e fiel, distinguindo o cristianismo autêntico das inovações, heresias e
falsos ensinos contra os quais o Novo Testamento já advertia. Embora distintos
em seus objetivos, todos foram elaborados para comunicar doutrinas e conceitos
teológicos complexos a pessoas sem formação acadêmica em teologia — em alguns
casos, até mesmo a crianças e pessoas não alfabetizadas, como ocorre nos
catecismos.
Os quatro termos são: “credos”, “confissões,” “catecismos” e
“concílios”.
Credos – A palavra credo, do latim credo (“eu creio”), indica as primeiras
formulações que sintetizam os principais artigos da fé cristã e que foram
recebidas como autoritativas pela Igreja (Kelly, 1958). Não se trata apenas de
enunciados formais, mas de expressões da fé transmitida “de uma vez por todas
aos santos” (Stott, 1995), reafirmando-a quando questionada.
Embora não haja credos completos nas Escrituras, é possível encontrar declarações confessionais embrionárias. No Antigo Testamento, destaca-se o Shema: “Ouve, ó Israel: o Senhor nosso Deus é o único Senhor” (Dt 6:4). No Novo Testamento surgem fórmulas como “Jesus é Senhor” (1Co 12:3) e a fórmula batismal trinitária (Mt 28:19). Paulo, em 1Co 15:3–7, escreve ou transcreve o que muitos consideram um credo primitivo.
Confissões – As confissões de fé representam o desenvolvimento histórico e
teológico dos credos, ampliando sua função inicial de síntese doutrinária e de
material catequético. Cada segmento protestante buscou articular
sistematicamente sua compreensão das Escrituras. Destacam-se a Confissão de
Augsburgo (1530), a Confissão Belga (1561), os Trinta e Nove Artigos (1563) e a
Confissão de Westminster (1647).
Catecismos – Os catecismos (katēchismos, do grego) significam “instruir
oralmente”, “ensinar pela repetição” e “memorização”. Após a sistematização dos
credos e confissões, passaram a ser instrumentos didático pedagógicos. Exemplos clássicos incluem o Catecismo de
Heidelberg (1563) e o Catecismo de Westminster (1647).
Concílios – Os concílios eclesiásticos compõem parte essencial desse arco de
elaboração e sistematização doutrinária. A partir do século IV, especialmente
após Niceia (325), os concílios ecumênicos assumiram papel determinante na
formulação da ortodoxia³. Apenas os quatro primeiros são universalmente
reconhecidos como ecumênicos: Niceia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431) e
Calcedônia (451). Tais concílios eram convocados pelo imperador, e não por
figuras eclesiásticas como o papa.
Conclusão
Em resumo, os credos cristãos foram criados como instrumentos
necessários para preservar a integridade da fé apostólica e promover a unidade
da Igreja. Eles surgiram inicialmente como resposta às heresias e desvios
teológicos que ameaçavam a identidade cristã, e foram formulados para comunicar
a doutrina bíblica de forma clara e fiel. Os credos, confissões, catecismos e
concílios são expressões da maturação da fé apostólica e continuam a ser
relevantes para a Igreja hoje, servindo como bússola para orientar a fé e a
prática cristã.
Mas como todo remédio esse também produziu seus efeitos colaterais - o enrijecimento da ortodoxia doutrinária, especialmente após os séculos XVII e XVIII. Ao transformar a fé em um sistema teológico rígido e excessivamente normativo, produziu-se uma vida cristã desconectada da realidade concreta e ancorada mais em fórmulas abstratas do que em uma vivência autêntica com Cristo. A ortodoxia, que deveria servir como bússola para orientar a Igreja, em alguns contextos passou a funcionar como um muro, separando a experiência comunitária e espiritual da prática cotidiana da fé. Esse alerta histórico evidencia que a fidelidade doutrinária não pode ser reduzida a esquemas intelectuais, mas deve permanecer enraizada na comunhão viva com Cristo, capaz de dialogar com os desafios de cada tempo sem perder sua essência.
Utilização
livre desde que citando a fonteGuedes,
Ivan PereiraMestre
em Ciências da Religião.Universidade
Presbiteriana Mackenzieme.ivanguedes@gmail.comOutro
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Referências Bibliográficas
BRUCE, F. F. The Canon of Scripture. Downers Grove: InterVarsity Press,
1982.
DENNISON, James T. Dennison, Jr. (org.). Reformed Confessions of the 16th and 17th
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Reformation Heritage Books, 2008), vol. 1, págs. 40-42
GONZALEZ, Justo L. Historia del pensamiento cristiano. Buenos Aires:
Methopress, 1965 [v. 1]; La Aurora, 1972 [v. 2]. 2 v. (Biblioteca de Estudios
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KELLY, J. N. D. Early Christian Doctrines. London: Adam & Charles
Black, 1958.
PACKER, J. I. Upholding the Unity of Scripture Today. Journal of the
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RICHARDSON, Cyril C. Creeds in the Making: A Short Introduction to the History of
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STOTT, John R. W. A fé cristã diante dos desafios contemporâneos. São Paulo:
ABU Editora, 1995.
TILLICH, Paul. História do pensamento cristão. Trad. de Jaci C.
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Obs.: Ler artigo
específico sobre Marcião indicado em Artigos Relacionados.