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quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Bonhoeffer – Cartas da Prisão - Introdução

 Homem sentado em mesa de madeira

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Para a grande maioria dos evangélicos brasileiros, o nome Dietrich Bonhoeffer não apenas soa estranho — por ser alemão — como também não significa absolutamente nada. Para a minoria que já ouviu falar dele — abrangendo todos os segmentos protestantes evangélicos — o nome costuma ser simplesmente ignorado, quando não abertamente hostilizado. Resta, portanto, uma minoria dentro da minoria que consegue enxergar em Bonhoeffer um modelo e um convite para pensar e agir para além da caixa eclesiástica ortodoxa, frequentemente enrijecida por um dogmatismo exacerbado desenvolvido entre os séculos XVII e XVIII e que, de diferentes maneiras, acabou sendo perpetuado nos séculos XX e XXI.

Para a grande maioria dos evangélicos brasileiros, o nome Dietrich Bonhoeffer não apenas soa estranho (por ser alemão), como também não significa absolutamente nada. Já para a minoria — que inclui todos os segmentos protestantes evangélicos — o nome é simplesmente ignorado, quando não hostilizado. Resta, portanto, uma minoria dentro da minoria que consegue ver em Bonhoeffer um modelo e um estímulo para pensar e agir fora da caixa eclesiástica ortodoxa, enrijecida pelo dogmatismo exacerbado desenvolvido a partir dos séculos XVII e XVIII, e que foi implementado e permanece, com toda sua força, nos séculos XX e XXI.[1]

Embora, em seus primórdios, esse dogmatismo tivesse como intenção defender a fé bíblico-cristã contra o avanço do ceticismo e do racionalismo — evocando, de certa forma, a exortação de Judas a “batalhar pela fé que uma vez foi dada”, com o tempo esse processo histórico solidificou práticas e mentalidades que se afastaram da vivência cotidiana das pessoas. Assim, muitos protestantes acabaram se acomodando numa práxis meramente teológica, dicotomizando-a das práticas concretas da vida diária — trabalho, família, relacionamentos e a própria experiência real da fé cristã. O importante passou a ser a teologia correta, e não sua aplicabilidade às demais áreas da existência humana.

Embora tenha se mantido teologicamente conservador em sua perspectiva doutrinária, Bonhoeffer compreendia que a práxis teológica é tão relevante quanto a fides bíblica. Essa ênfase na vivência concreta da fé levou, posteriormente, a que seu pensamento fosse apropriado por correntes como o existencialismo e a teologia da libertação. No entanto, tal apropriação é unilateral e não coerente com o núcleo de seu pensamento teológico, o que explica, em parte, a rejeição de Bonhoeffer no Brasil por setores evangélicos de linha reformada, que veem nessas leituras uma distorção de sua fidelidade bíblica.

Bonhoeffer, embora permanecesse teologicamente conservador em suas convicções essenciais, compreendia que a práxis da fé é tão relevante quanto a fides bíblica. Essa sua ênfase na vivência concreta da fé levou, mais tarde, alguns movimentos — como correntes existencialistas e parte da teologia da libertação — a tentarem apropriar-se seletivamente de sua obra. Contudo, tais apropriações são parciais e, muitas vezes, desalinhadas do núcleo de seu pensamento teológico. Isso ajuda a explicar, em parte, a rejeição a Bonhoeffer em setores evangélicos brasileiros de orientação reformada, que percebem nessas leituras uma distorção de sua fidelidade às Escrituras.

Outro aspecto negativo dessa rigidez teológica é que ela se fixou apenas nos aspectos doutrinários dos grandes reformadores do século XVI, desconectando-os de todas as suas implicações sociológicas e políticas. Com isso, transformou o extraordinário movimento reformista em um nicho de uma dogmática eclesiástica fria, insensível e implacável, onde o que deve ser combatido é “o outro” — aquele que ousa pensar diferentemente deste ou daquele ponto teológico — e não o pecado, nem as ações malignas travestidas de ideologias corruptas e corruptoras, que corroem a justiça e mantêm os desvalidos e fragilizados em um círculo de miserabilidade sem esperança.

Essa síntese demonstra os motivos pelos quais o teólogo luterano alemão Dietrich Bonhoeffer (1906–1945) se tornou uma das vozes mais contundentes e significativas da resistência cristã — não apenas ao terrível e abominável regime nazista, mas também a toda ideologia dele derivada, especialmente em seus métodos de esvaziar a justiça de seus princípios elementares e de desproteger a sociedade, entregando-a aos seus corruptos e corruptores de plantão.

Preso em abril de 1943 por envolvimento na conspiração contra Adolf Hitler, Bonhoeffer passou cerca de dois anos na prisão militar de Tegel, em Berlim, onde escreveu uma série de cartas, poemas e reflexões teológicas que seriam posteriormente reunidas sob o título Widerstand und Ergebung (Resistência e Submissão), publicado postumamente em 1951.

A leitura de suas cartas revela uma maturidade teológica e espiritual que permeia sua crítica à religiosidade institucional e sua busca por aquilo que chama de uma fé “adulta”, capaz de enfrentar tanto o silêncio de Deus quanto a brutalidade da história. É nesse contexto que Bonhoeffer afirma: “chegou o tempo em que devemos falar de Deus não a partir da religião, mas da vida” (BONHOEFFER, 1971). Com essa declaração — frequentemente mal interpretada — ele não defende a rejeição da fé cristã nem o abandono da teologia, mas denuncia formas de religiosidade vazias, formais, incapazes de dialogar com a realidade concreta do sofrimento humano. Assim, ao formular o conceito etsi Deus non daretur — viver como se Deus não existisse, no sentido de assumir responsabilidade ética plena e agir no mundo com maturidade de fé — Bonhoeffer propõe uma espiritualidade encarnada, comprometida com a justiça e com a verdade em meio às tensões do século XX, de seus dias, e que perduram no século XXI dos nossos dias.

Na época de sua publicação, as Cartas da Prisão causaram impacto imediato entre teólogos, filósofos e pensadores políticos, especialmente por sua crítica à religião como sistema e por sua defesa inegociável de uma igreja “que existe para os outros”.[2] A edição inglesa, Letters and Papers from Prison, editada por Eberhard Bethge — amigo e discípulo de Bonhoeffer — consolidou sua influência internacional (BONHOEFFER, 1971).

Nas décadas seguintes, a obra foi objeto de múltiplas interpretações — ora como testemunho espiritual, ora como manifesto ético. No Brasil, a tradução Resistência e Submissão (BONHOEFFER, 2003) tornou-se referência entre teólogos e estudiosos da espiritualidade cristã. A redescoberta contemporânea de Bonhoeffer, especialmente em contextos de crise política e ética, reforça sua atualidade. Como destaca Felipe Eduardo Martins dos Santos, “vida e obra são inseparáveis em Bonhoeffer; suas cartas são expressão de uma espiritualidade encarnada” (SANTOS, 2014).

Hoje, suas reflexões sobre liberdade, responsabilidade, verdade e comunidade continuam a inspirar movimentos cristãos, acadêmicos e pensadores seculares. A publicação da Reader’s Edition em 2015 (BONHOEFFER, 2015) buscou tornar suas cartas mais acessíveis ao público contemporâneo, reafirmando seu lugar como um dos pensadores mais relevantes do século XX.

Nos próximos artigos desejo explorar um pouco destas cartas à luz da nossa própria realidade brasileira, pois entendo que nos aproximamos rapidamente do contexto vivido por Bonhoeffer na Alemanha nazista.

 

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas

BONHOEFFER, Dietrich. Cartas e Papéis da Prisão. Editado por Eberhard Bethge. Traduzido por Reginald H. Fuller. Londres: SCM Press; Nova Iorque: Macmillan, 1971.

BONHOEFFER, Dietrich. Cartas e Papéis da Prisão: Edição para Leitores. Editado por Clifford J. Green. Minneapolis: Fortress Press, 2015.

BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e Submissão: cartas e anotações escritas na prisão. Tradução de Nélio Schneider. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2003.

SANTOS, Felipe Eduardo Martins dos. Vida e obra: chaves hermenêuticas para uma leitura das Cartas da Prisão de Dietrich Bonhoeffer. Diversidade Religiosa, v. 3, n. 1, 2014. Disponível em:        https://periodicos.ufpb.br/index.php/dr/article/download/31154/16691

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[1] O movimento conhecido como Precisionismo — especialmente entre os puritanos britânicos e coloniais — surgiu como uma resposta ao dogmatismo rígido dos séculos XVII e XVIII. Os “precisionistas” enfatizavam não apenas a ortodoxia doutrinária, mas a necessidade de uma fé cuidadosamente vivida, marcada por disciplina espiritual, moralidade prática e coerência entre confissão e comportamento. Em contraste com o mero assentimento intelectual, defendiam que a verdadeira teologia deveria produzir transformação concreta na vida diária. (ver texto deste ponto específico em Artigos Relacionados).

[2] A expressão “uma igreja que existe para os outros” está inserida em sua perspectiva de que uma igreja, para ser de fato uma comunidade de Cristo, não vive voltada para si mesma, para sua autopreservação ou para seus interesses internos, mas que se entrega voluntaria e integralmente ao serviço, ainda que sacrificial em favor do próximo. Trata-se de um desafio amoroso para que a igreja deixe de olhar apenas para si e volte suas ações para aqueles que Deus ama. Bonhoeffer nos lembra que a fé autêntica não se refugia em estruturas ou em discursos de uma ortodoxia alienante, mas se encarna na vida cotidiana, servindo com responsabilidade, compaixão e justiça — sobretudo onde há dor, sofrimento e opressão.

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