Quando lido isoladamente, este tema parece incoerente com a
realidade da presença religiosa protestante no Brasil. É possível contar mais
de uma dezena de colégios protestantes evangélicos no país, além de diversas
universidades reconhecidas nacional e internacionalmente. Por esse prisma, o
protestantismo foi um grande sucesso!
Todavia, quando deixamos de olhar pelo microscópio da história e
passamos a observar pela luneta histórica, rapidamente percebemos indícios do
enorme fracasso em que se constituíram as extraordinárias oportunidades que o
protestantismo recebeu em seus primórdios, ao desembarcar, em meados do século
XIX, neste país-continente da América do Sul.[1]
A proposta deste artigo é demonstrar a oportunidade recebida e o
seu fracasso em utilizá-la em todas as suas possibilidades. Fracassar não é
simplesmente deixar de fazer, mas não aproveitar plenamente as oportunidades
disponíveis. O apóstolo Paulo, em outro contexto, faz uma declaração que pode
ilustrar o que estou tentando expressar: “devemos remir o tempo”. Essa
expressão idiomática grega implica aproveitar cada oportunidade que esteja
sendo oferecida, em todo o seu potencial. Quando isso não ocorre, há
desperdício de tempo e, consequentemente, fracasso em alcançar o objetivo
proposto.
No caso paulino, tratava-se de não perder oportunidades de
comunicar a mensagem da salvação por meio de Cristo Jesus; no caso deste
artigo, trata-se da falta de aproveitamento da oportunidade de estabelecer um
ensino de qualidade e excelência, capaz de permear as mentes de gerações de
jovens contra ideologias nefastas[2]
que viriam a invadir o ensino público e produzir gerações acríticas e
facilmente induzidas a toda sorte de vícios e práticas destrutivas,
prejudicando uma sociedade que deveria prezar por moral elevada, respeito e
honestidade.
Percepção Correta dos Reformadores Sobre a Relevância da Educação
Uma das primeiras ações dos reformadores do século XVI foi investir
tempo, recursos e os melhores elementos humanos na educação de seus membros,
principalmente no que tange à formação das crianças e jovens. Abaixo uma
suscinta representatividade destas ações por parte de te dois reformadores –
Lutero e Calvino e de um dos maiores educadores do século.... Comenius.
Martinho Lutero (1483–1546)
A percepção de Lutero sobre a educação foi decisiva para a
superação do modelo elitista medieval: para ele, a instrução deveria ser
acessível a todos — não apenas ao clero e à elite governante — a fim de que
cada pessoa pudesse ler as Escrituras por si mesma e participar conscientemente
da vida cristã e social. Defendendo que “o diabo não quer escolas”, ele via a
educação como instrumento de formação espiritual genuína, incentivando a
leitura da Bíblia, do catecismo e dos cânticos, estabelecendo assim o princípio
da alfabetização universal. Lutero também atribuiu ao governo civil a
responsabilidade de manter escolas como serviço público, criando as bases do
ensino gratuito e obrigatório, incluindo meninas, então excluídas da instrução
formal. Tal visão resultou em avanços significativos: maior alfabetização entre
camponeses, o surgimento de um modelo educacional voltado à formação moral e
cidadã e a consolidação de uma educação ampla — envolvendo línguas, música e
ciências — que servisse à sociedade como um todo.
João Calvino (1509–1564)
A percepção educacional de João Calvino, principal representante da
segunda geração da Reforma, levou-o a investir na formação integral de
pastores, líderes civis e cidadãos capazes de compreender as Escrituras,
administrar a sociedade com discernimento e estruturar famílias coerentes com
os princípios de uma fé solidamente bíblica. Para ele, conhecimento e piedade
se complementam como expressões da verdade de Deus, razão pela qual fundou o Collège
de Genève — núcleo da futura e influente Universidade protestante de
Genebra — e promoveu uma formação abrangente que incluía latim, lógica,
retórica, teologia, direito e matemática. Calvino entendia que a educação molda
o caráter e prepara para todas as vocações presentes na sociedade, não apenas
para o ministério pastoral, incentivando a leitura, a disciplina intelectual e
a difusão de livros, sendo ele mesmo um escritor prolífico. Seu modelo
educacional tornou-se referência para escolas reformadas na Europa e posteriormente
na América, fortalecendo uma teologia bíblica séria, instituições acadêmicas
consistentes e a formação de líderes tanto eclesiásticos quanto civis,
influenciando profundamente a ética, a política e a cultura do mundo ocidental.
João Amós Comenius (1592–1670)
Um dos mais notáveis expoentes do protestantismo educacional e
amplamente reconhecido como o “Pai da Pedagogia Moderna”, concebia a educação
como um processo integral — espiritual, intelectual, emocional e social —
acessível a todas as pessoas, independentemente de sexo, condição social ou
idade. Sua proposta pedagógica, profundamente cristã e surpreendentemente
humanizadora para seu tempo, defendia o ensino universal para homens e
mulheres, ricos e pobres, utilizando métodos ilustrados, graduais e adequados ao
desenvolvimento do aluno, sempre orientados pelo princípio de “ensinar tudo a
todos de modo suave”. Comenius também estruturou um sistema escolar
progressivo, organizado em níveis como maternal, elementar, ginásio e
universidade, deixando um legado que moldou os sistemas educacionais modernos,
influenciando a seriação, o currículo contínuo e o uso de recursos ilustrados.
Sua didática inovadora — com abundância de imagens, exemplos e livros
ilustrados — tornou-se referência para movimentos pedagógicos protestantes na
Europa e posteriormente na América, consolidando sua marca permanente na
história da educação ocidental..
Dessa forma, podemos concluir, este ponto, afirmando que Lutero
inaugura, de maneira decisiva, o princípio da alfabetização universal; Calvino
consolida um modelo de formação intelectual ampla e rigorosa para a vida em
sociedade; e Comenius amplia esse horizonte ao formular uma pedagogia integral,
sistemática e surpreendentemente moderna. Em conjunto, esses três reformadores
deixaram ao protestantismo — e ao Ocidente — o legado de que a educação não
pode ser diminuída nem tratada como elemento secundário, mas constitui parte
essencial de uma vocação cristã autêntica e um instrumento real de
transformação social.
Obs.: Em razão da brevidade deste espaço,
retomarei o tema no próximo artigo. Nele examinaremos, sem rodeios, como o
protestantismo implantado no Brasil desperdiçou seu impulso inicial — amplo,
público e realmente transformador — para então se acomodar em um projeto intramuros:
restrito, autossuficiente, confortável para si mesmo e, assim, praticamente
perdendo sua capacidade de salgar a sociedade brasileira, que há décadas passa
por um evidente processo de putrefação moral e social. E a fatura histórica
dessa escolha equivocada está chegando à conta da geração atual — não apenas
para a sociedade em geral, mas, de forma ainda mais dura, para os próprios
evangélicos brasileiros, cujas gerações mais jovens estão sendo facilmente
cooptadas por ideologias abertamente anticristãs e antibíblicas.
Referência Bibliográfica (gerais em português)
LUTERO, Martinho. A todos os Conselhos.... São Leopoldo: Editora Sinodal,
1967. Obras Selecionadas.
LUTERO, Martinho. Da liberdade cristã. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2011.
LEHMANN, Arno. Ação educativa de Lutero. São Leopoldo: Editora Sinodal,
1964.
CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã. São Paulo: Cultura Cristã,
2006. 4 v.
CALVINO, João. Ordenanças eclesiásticas de Genebra. In: Documentos da
Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.
McGRATH, Alister. A vida de João Calvino. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
COMÊNIO, João Amós. Didática Magna. Tradução clássica. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
COMÊNIO, João Amós. Orbis Sensualium Pictus (O Mundo Ilustrado). Tradução. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
BRANDT, Edgard. Comênio e a pedagogia moderna. São Paulo: Editora Nacional,
1969.
OBS.: As bibliografias relacionadas ao tema serão indicadas no próximo
artigo.
Artigos Relacionados
Protestantismo e Sua Contribuição na Educação no Brasil https://historiologiaprotestante.blogspot.com/2016/11/protestantismo-e-sua-contribuicao-na.html?spref=tw
Um Protestante Comprometido Com a Educação
Brasileira https://historiologiaprotestante.blogspot.com/2017/12/um-protestante-comprometido-com.html?spref=tw
O Protestantismo Entre as Matrizes Religiosa do Brasil https://historiologiaprotestante.blogspot.com/2021/12/o-protestantismo-entre-as-matrizes.html?spref=tw
Primeiro Curso Teológico Protestante no Brasil
Mudança de Paradigma Teológico do Protestantismo no Brasil e a
Fundação da ASTE
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/2015/09/mudanca-de-paradigma-teologicodo.html
[1]
O protestantismo missionário de fato chega a partir de 1850, especialmente com
presbiterianos norte-americanos (1840–1859), batistas (a partir de 1882) e
metodistas (1867).
[2]
A mais devastadora delas sem dúvida é o marxismo liberal (a partir dos anos
1960), que tem implantado nas mentes de jovens e adolescentes os conceitos
contra o cristianismo e contra a bíblia.

Nenhum comentário:
Postar um comentário