Certamente este é um dos temas mais explosivo
nos dias atuais. Nas discussões éticas o termo “aborto” é utilizado para se
referir à interrupção antinatural, do desenvolvimento de um feto ainda no útero
da mulher. Evidente que o pode ocorrer um aborto natural e/ou espontânea o que
não gera discussões, pois não envolve uma decisão da mãe.
A palavra “aborto” é formada por dois vocábulos
latinos: “ab“(privação) e “ortus” (nascimento), que associados significam a
“privação do nascimento”. O substantivo “aborto” deriva-se do verbo latino
“aborior” (falecer ou sumir), o oposto de “orior” (nascer ou aparecer).
A
novidade da discussão desta temática está no fato de que muitos que se declaram
cristãos defendem a liberdade da mulher para fazer está opção contrariando a
opinião cristã histórica que sempre se posicionou contrária à está ação
terrivelmente nociva e violenta contra a vida humana ainda em formação e
totalmente incapaz de se defender. Apesar de constar no Juramento de Hipócrates
clara desaprovação, da prática, o aborto era comum no contexto social
greco-romano, assim como o infanticídio por consequência. Os líderes cristãos,
chamados de Pais (Padres) da Igreja estavam unidos na condenação de ambos,
ainda que houvesse divergências na questão de quando a alma passava a habitar o
feto, mas no que tangia à provocar deliberadamente o aborto todos eles eram
concordes de que não havia qualquer justificativa plausível.
A Didaquê um dos documentos mais antigos do
cristianismo (aprox. início do século II), ainda debaixo das leis liberais (hoje
chamada de politicamente correta) do Império Romano, se posiciona muito
claramente contra o aborto: “Não matarás o embrião por aborto e não farás
perecer o recém-nascido” (Didaquê 2,2). Um dos líderes e porta-vozes da
Igreja Cristã, em seus primórdios, Tertuliano (150-220), deixa claro o
ensinamento ortodoxo de que a morte de um embrião tem a mesma gravidade do
assassinato de um ser humano já nascido e que, portanto, impedir
propositalmente a geração de uma criança é um homicídio em potencial. Agostinho
(354-430) um dos maiores teólogos cristão, respeitado e amplamente utilizado
pelos protestantes, assim como o teólogo Tomás de Aquino (1225-1274), utilizado
pelo catolicismo romano, ambos consideravam pecado grave interromper a gestação
e o desenvolvimento da vida humana. Até tempos muito recentes, havia um consenso
amplo no cristianismo de que a vida, tanto no estágio embrionário quanto no
fetal, era sagrada e digna de respeito. Infelizmente hoje os cristãos, sejam
protestantes (evangélicos ou católicos), que se posicionam contrários à
liberação legal do aborto, são classificados pelas mídias, amplamente abortistas,
pejorativamente de fundamentalistas, como se defender a vida fosse algo
opcional. As ideologias abortivas cada vez mais banalizam o valor intrínseco da
própria vida.
O texto primário utilizado pelos cristãos
ortodoxamente históricos é o Sexto Mandamento: “Não mataras” em que é
interpretado como Deus tendo um relacionamento com o ser humano enquanto em sua
formação embrionária, ou seja, Deus trata o embrião como sendo de fato um ser
humano completo. Assim foi dito a Jeremias: “Antes que eu te formasse no ventre
eu te escolhi e antes de você nascer, eu te consagrei” (Jeremias 1.3). Nas narrativas
evangélicas temos o testemunho a respeito de João, o Batista, de que quando as
mães, Isabel e Maria, se encontraram, após a Anunciação, o feto do ventre de
Isabel “saltou de alegria” mediante a presença do ainda feto Jesus que
já estava sendo gerado no ventre de Maria (Lucas 1.39, 44).
Os textos trazem a implicação de que os fetos
já possuem personalidade desde a concepção e, portanto, tem direito a uma
absoluta proteção. Evidente que os chamados cristãos liberais oferecem outra
explicação, partindo do entendimento de que a vida somente começa quando a
criança de fato nasce, ou seja, quando a respiração entra nas narinas e o ser
então se torna "um vivente” ...então o Senhor Deus formou o homem do pó
da terra e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser
vivente (Gênesis 2.7). Uma exegese completamente destituída de seu contexto
textual, visto que Adão não foi gerado no ventre de uma mulher, mas foi criado
diretamente por Deus, o que não mais ocorrerá a partir do nascimento de seus
filhos através de Eva. Eles advogam que esta interpretação tem sido ensinada de
forma consistente na tradição judaica desde os seus primórdios, entretanto, a
tradição judaica não está acima da autoridade das Escrituras.
No livro de Êxodo, que narra a formação da
nação israelita, onde estão sendo estabelecidas as diretrizes fundamentais de
suas leis constitucionais, há um exemplo de que se alguém incidentalmente
causar um aborto espontâneo em uma gestante, essa pessoa não deve ser
denunciada como assassino. E um pouco mais além, o texto não considera nem
mesmo a perda do feto em si, como gerador de “dano” à mulher, pois descreve o
que deveria em caso que fosse necessário reparação (Êxodo 21.23). Neste caso em particular, os códigos legais
mosaico se distinguem em relação a outros códigos legais da época como os da Suméria,
Assíria, Babilônia, Hitita ou Persa, onde em todos se iguala a causa de um aborto
espontâneo com um proposital como sendo homicídio.
Evidente que nos tempos atuais os avanços da
medicina utilizam intervenções cirúrgicas especificas para se extrair o feto
indesejado, todavia, na essência não é totalmente distinto daquela época em que
ocorria pela violência, principalmente guerras, ou envenenamento.
Outro aspecto contemporâneo da discussão é o
fato de que com o avanço da medicina tornou-se possível compreender melhor o
desenvolvimento fetal da criança, o que contrasta com ignorância da época da
antiguidade. Mas como diz o caipira: “pau que bate em João, bate também em
José”. Esse mesmo avanço tecnológico medicinal revela cada vez mais claramente
que o feto ainda em suas primeiras semanas manifesta percepções e sensações de
dor, bem como é possível desde muito cedo obter evidências fotográficas de formação
de membros completos em um embrião, por exemplo, uma mão perfeitamente formada,
mas minúscula.
Mas os defensores do aborto insistem que datar
a personalidade desde a concepção é quase impossível, e eles defendem, em vez
disso, que a personalidade se desenvolve lenta e imperceptivelmente durante o
período de gravidez e primeira infância, e que nenhum limite é, portanto, de
significado moral fundamental em uma realidade em evolução e desenvolvimento.
Dentro do contexto da ética cristã predomina o
fato de que o aborto nunca deve ser considerado bom em si mesmo. É sempre um
mal mesmo em casos considerados legalmente justificáveis. Dentro desta
perspectiva, denominada de doutrina de duplo efeito, ampla maioria de cristãos
concordam primariamente de que o aborto é justificado quando a vida da mãe está
em perigo real, entretanto, um número expressivo vai além e entendem que possa
ocorrer o aborto também quando a
gravidez foi decorrente de estupro ou quando o a criança é identificada com algum tipo de doença congênita com sequelas irreversíveis, neste último os questionamentos são mais enfáticos, visto que há
inúmeros casos de pessoas que superaram as mais diversas deficiências
congênitas. Entretanto, apesar de discutíveis cada um destes casos e até outros
similares, não se anula o fato de que a esmagadora maioria dos abortos
deliberados são gravemente imorais.
Os denominados cristãos liberais, ainda que nem
todos, vão muito mais além, deixando de lado a bíblia e implicações morais, e
tomam como primícia as implicações sociais como o bem-estar da família
existente ou conforme as ideologias mais recentes avocam o "direito da
mulher de escolher", pois somente ela e última instância é dona de seu
corpo.
Esta mudança de foco é decorrente da chamada "deterioração
processual", que passou a legislar sobre a perspectiva de "aborto
sob demanda" em grande parte dos tribunais. O que tem levado os cristãos e
protestantes evangélicos mais ortodoxos teologicamente a lutarem pelo
endurecimento em relação as legislações locais, nacionais ou regionais, contra
esta ampliação legalista dos tribunais judiciais.
As palavras de Dietrich Bonhoeffer, que
viveu nos nefastos dias do nazismo, inclusive morrendo em uma de suas prisões,
que vivenciou a banalidade da vida humana, que era ceifada pelos motivos mais
triviais imagináveis, coloca o seu posicionamento, bem como dos cristãos que
ainda levam a sério a bíblia como Palavra de Deus, sobre a questão ética do
aborto:
O extermínio
do fruto no ventre materno é atentado ao direito de vida conferido por Deus à
vida em formação. A discussão da pergunta se aqui já se trata de um ser humano
só leva confusão ao simples fato de que Deus, em todo caso quis criar um ser humano
aqui e que deste ser humano em formação se tirou a vida deliberadamente. Ora,
isso outra coisa não é do que assassinato. Os motivos que levam a tal ato
pode ser bem variados; mais: ali onde se trata de um gesto de desespero em extrema
pobreza e miséria humana ou econômica a culpa cabe mais à sociedade do que ao indivíduo;
finalmente, neste ponto o dinheiro pode encobrir muita leviandade, enquanto
justamente entre os pobres o ato cometido após dura luta de consciência
aparece
mais facilmente; tudo isso indiscutivelmente afeta, de forma decisiva, a postura
pessoal e poimênica diante do autor, mas não pode mudar nada no fato do
assassinato em si (BONHOEFFER, 1985, p. 100 [itálico meu].
ATKINSON, David J. e FIELD, David F. (Ed.) New dictionary of christian ethics & pastoral theology. Universities and Colleges Christian Fellowship, Leicester, England: InterVarsity Press, USA e Inter-Varsity Press, England, 1995.
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BONHOEFFER, D. Ética. Compilado e editado por Eberhard Bethge. Tradução
Helberto Michel, 5ª edição. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1985. [5ª edição]. Ele trata dentro da perspectiva da “Procriação e Vida em Formação”.
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MORROW, David R. Moral reasoning – a text and reader on ethics and contemporary moral issues. Published in the United States of America by Oxford University Press, 2018. [esta obra não tem cunho evangélico cristão, mas trás três longos artigos sobre o tema que valem a pena serem lidos criticamente].
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