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domingo, 5 de dezembro de 2021

VERBETE: Aborto e Suas Implicações Éticas



Certamente este é um dos temas mais explosivo nos dias atuais. Nas discussões éticas o termo “aborto” é utilizado para se referir à interrupção antinatural, do desenvolvimento de um feto ainda no útero da mulher. Evidente que o pode ocorrer um aborto natural e/ou espontânea o que não gera discussões, pois não envolve uma decisão da mãe.

A palavra “aborto” é formada por dois vocábulos latinos: “ab“(privação) e “ortus” (nascimento), que associados significam a “privação do nascimento”. O substantivo “aborto” deriva-se do verbo latino “aborior” (falecer ou sumir), o oposto de “orior” (nascer ou aparecer).

A novidade da discussão desta temática está no fato de que muitos que se declaram cristãos defendem a liberdade da mulher para fazer está opção contrariando a opinião cristã histórica que sempre se posicionou contrária à está ação terrivelmente nociva e violenta contra a vida humana ainda em formação e totalmente incapaz de se defender. Apesar de constar no Juramento de Hipócrates clara desaprovação, da prática, o aborto era comum no contexto social greco-romano, assim como o infanticídio por consequência. Os líderes cristãos, chamados de Pais (Padres) da Igreja estavam unidos na condenação de ambos, ainda que houvesse divergências na questão de quando a alma passava a habitar o feto, mas no que tangia à provocar deliberadamente o aborto todos eles eram concordes de que não havia qualquer justificativa plausível.

A Didaquê um dos documentos mais antigos do cristianismo (aprox. início do século II), ainda debaixo das leis liberais (hoje chamada de politicamente correta) do Império Romano, se posiciona muito claramente contra o aborto: “Não matarás o embrião por aborto e não farás perecer o recém-nascido” (Didaquê 2,2). Um dos líderes e porta-vozes da Igreja Cristã, em seus primórdios, Tertuliano (150-220), deixa claro o ensinamento ortodoxo de que a morte de um embrião tem a mesma gravidade do assassinato de um ser humano já nascido e que, portanto, impedir propositalmente a geração de uma criança é um homicídio em potencial. Agostinho (354-430) um dos maiores teólogos cristão, respeitado e amplamente utilizado pelos protestantes, assim como o teólogo Tomás de Aquino (1225-1274), utilizado pelo catolicismo romano, ambos consideravam pecado grave interromper a gestação e o desenvolvimento da vida humana. Até tempos muito recentes, havia um consenso amplo no cristianismo de que a vida, tanto no estágio embrionário quanto no fetal, era sagrada e digna de respeito. Infelizmente hoje os cristãos, sejam protestantes (evangélicos ou católicos), que se posicionam contrários à liberação legal do aborto, são classificados pelas mídias, amplamente abortistas, pejorativamente de fundamentalistas, como se defender a vida fosse algo opcional. As ideologias abortivas cada vez mais banalizam o valor intrínseco da própria vida.  

O texto primário utilizado pelos cristãos ortodoxamente históricos é o Sexto Mandamento: “Não mataras” em que é interpretado como Deus tendo um relacionamento com o ser humano enquanto em sua formação embrionária, ou seja, Deus trata o embrião como sendo de fato um ser humano completo. Assim foi dito a Jeremias: “Antes que eu te formasse no ventre eu te escolhi e antes de você nascer, eu te consagrei” (Jeremias 1.3). Nas narrativas evangélicas temos o testemunho a respeito de João, o Batista, de que quando as mães, Isabel e Maria, se encontraram, após a Anunciação, o feto do ventre de Isabel “saltou de alegria” mediante a presença do ainda feto Jesus que já estava sendo gerado no ventre de Maria (Lucas 1.39, 44).

Os textos trazem a implicação de que os fetos já possuem personalidade desde a concepção e, portanto, tem direito a uma absoluta proteção. Evidente que os chamados cristãos liberais oferecem outra explicação, partindo do entendimento de que a vida somente começa quando a criança de fato nasce, ou seja, quando a respiração entra nas narinas e o ser então se torna "um vivente” ...então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente (Gênesis 2.7). Uma exegese completamente destituída de seu contexto textual, visto que Adão não foi gerado no ventre de uma mulher, mas foi criado diretamente por Deus, o que não mais ocorrerá a partir do nascimento de seus filhos através de Eva. Eles advogam que esta interpretação tem sido ensinada de forma consistente na tradição judaica desde os seus primórdios, entretanto, a tradição judaica não está acima da autoridade das Escrituras.

No livro de Êxodo, que narra a formação da nação israelita, onde estão sendo estabelecidas as diretrizes fundamentais de suas leis constitucionais, há um exemplo de que se alguém incidentalmente causar um aborto espontâneo em uma gestante, essa pessoa não deve ser denunciada como assassino. E um pouco mais além, o texto não considera nem mesmo a perda do feto em si, como gerador de “dano” à mulher, pois descreve o que deveria em caso que fosse necessário reparação (Êxodo 21.23).  Neste caso em particular, os códigos legais mosaico se distinguem em relação a outros códigos legais da época como os da Suméria, Assíria, Babilônia, Hitita ou Persa, onde em todos se iguala a causa de um aborto espontâneo com um proposital como sendo homicídio.

Evidente que nos tempos atuais os avanços da medicina utilizam intervenções cirúrgicas especificas para se extrair o feto indesejado, todavia, na essência não é totalmente distinto daquela época em que ocorria pela violência, principalmente guerras, ou envenenamento.

Outro aspecto contemporâneo da discussão é o fato de que com o avanço da medicina tornou-se possível compreender melhor o desenvolvimento fetal da criança, o que contrasta com ignorância da época da antiguidade. Mas como diz o caipira: “pau que bate em João, bate também em José”. Esse mesmo avanço tecnológico medicinal revela cada vez mais claramente que o feto ainda em suas primeiras semanas manifesta percepções e sensações de dor, bem como é possível desde muito cedo obter evidências fotográficas de formação de membros completos em um embrião, por exemplo, uma mão perfeitamente formada, mas minúscula.

Mas os defensores do aborto insistem que datar a personalidade desde a concepção é quase impossível, e eles defendem, em vez disso, que a personalidade se desenvolve lenta e imperceptivelmente durante o período de gravidez e primeira infância, e que nenhum limite é, portanto, de significado moral fundamental em uma realidade em evolução e desenvolvimento.

Dentro do contexto da ética cristã predomina o fato de que o aborto nunca deve ser considerado bom em si mesmo. É sempre um mal mesmo em casos considerados legalmente justificáveis. Dentro desta perspectiva, denominada de doutrina de duplo efeito, ampla maioria de cristãos concordam primariamente de que o aborto é justificado quando a vida da mãe está em perigo real, entretanto, um número expressivo vai além e entendem que possa ocorrer o aborto também quando a gravidez foi decorrente de estupro ou quando o a criança é identificada com algum tipo de doença congênita com sequelas irreversíveis, neste último os questionamentos são mais enfáticos, visto que há inúmeros casos de pessoas que superaram as mais diversas deficiências congênitas. Entretanto, apesar de discutíveis cada um destes casos e até outros similares, não se anula o fato de que a esmagadora maioria dos abortos deliberados são gravemente imorais.

Os denominados cristãos liberais, ainda que nem todos, vão muito mais além, deixando de lado a bíblia e implicações morais, e tomam como primícia as implicações sociais como o bem-estar da família existente ou conforme as ideologias mais recentes avocam o "direito da mulher de escolher", pois somente ela e última instância é dona de seu corpo.

Esta mudança de foco é decorrente da chamada "deterioração processual", que passou a legislar sobre a perspectiva de "aborto sob demanda" em grande parte dos tribunais. O que tem levado os cristãos e protestantes evangélicos mais ortodoxos teologicamente a lutarem pelo endurecimento em relação as legislações locais, nacionais ou regionais, contra esta ampliação legalista dos tribunais judiciais. 

            As palavras de Dietrich Bonhoeffer, que viveu nos nefastos dias do nazismo, inclusive morrendo em uma de suas prisões, que vivenciou a banalidade da vida humana, que era ceifada pelos motivos mais triviais imagináveis, coloca o seu posicionamento, bem como dos cristãos que ainda levam a sério a bíblia como Palavra de Deus, sobre a questão ética do aborto:

O extermínio do fruto no ventre materno é atentado ao direito de vida conferido por Deus à vida em formação. A discussão da pergunta se aqui já se trata de um ser humano só leva confusão ao simples fato de que Deus, em todo caso quis criar um ser humano aqui e que deste ser humano em formação se tirou a vida deliberadamente. Ora, isso outra coisa não é do que assassinato. Os motivos que levam a tal ato pode ser bem variados; mais: ali onde se trata de um gesto de desespero em extrema pobreza e miséria humana ou econômica a culpa cabe mais à sociedade do que ao indivíduo; finalmente, neste ponto o dinheiro pode encobrir muita leviandade, enquanto justamente entre os pobres o ato cometido após dura luta de consciência

aparece mais facilmente; tudo isso indiscutivelmente afeta, de forma decisiva, a postura pessoal e poimênica diante do autor, mas não pode mudar nada no fato do assassinato em si (BONHOEFFER, 1985, p. 100 [itálico meu].

 

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Reflexão Bíblica
http://reflexaoipg.blogspot.com.br

 

Referências Bibliográficas
ATKINSON, David J. e FIELD, David F. (Ed.) New dictionary of christian ethics & pastoral theology. Universities and Colleges Christian Fellowship, Leicester, England: InterVarsity Press, USA e Inter-Varsity Press, England, 1995.
BANNER, Michael. Christian ethics and contemporary moral problems. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
BECKER, Lawrence C. and BECKER, Charlotte B. (Editors). Encyclopedia of ethics. New York: Routledge, 2001.
BONHOEFFER, D. Ética. Compilado e editado por Eberhard Bethge. Tradução
Helberto Michel, 5ª edição. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1985. [5ª edição]. Ele trata dentro da perspectiva da “Procriação e Vida em Formação”.
CHAMPLIN, R. N. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. v.1. São Paulo: Magnos, 2013.
GRUDEM, Wayne. Christian Ethics: na introduction to biblical moral reasoning. Wheaton, Illinois: Published by Crossway, 2018.
HENRY, Carl Org.) Dicionário de ética cristã. Tradução e atualização Wadislau Martins Homes. São Paulo: Cultura Cristã, 2007. 
KAISER Jr., Walter C. O cristão e as questões éticas da atualidade: um guia bíblico para pregação e ensino. Tradução de orahldo Janzen e Ingrid Neufeld  de Lima. São Paulo: Vida Nova, 2015.
MORROW, David R. Moral reasoning – a text and reader on ethics and contemporary moral issues. Published in the United States of America by Oxford University Press, 2018. [esta obra não tem cunho evangélico cristão, mas trás três longos artigos sobre o tema que valem a pena serem lidos criticamente].
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