"Quanto mais o homem percebe que é imperfeito,
mais perto ele está da perfeição."
Gerard Groete
Desde os primeiros dias do
apadrinhamento do Imperador Constantino no final do século três a Igreja Cristã
começa demonstrar sinais cada vez mais claros e alarmantes de que sucumbiria
sobre a pressão da ascensão político-econômica e por extensão o controle do
poder. Como de fato ocorre com quaisquer instituições que em seus primórdios
estabelecem objetivos sublimes, mas na mesma proporção em que alcançam sucesso
e poder, assim como ocorre com o personagem de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, vai sendo
paulatinamente dominada pelo que há de pior e nunca pelo que possui de melhor –
é uma característica premente do ser humano decaído.
Na medida em que se adentra ao
período histórico convencionalmente denominado de Idade Média (476 e 1453) a deterioração
das multifaces da imensa Igreja Cristã pós Constantino vai aceleradamente
amalgamando com todos os piores aspectos da Sociedade que ela mesma condenava.
Assim como Judas Iscariotes que conviveu intensamente com Jesus e no final o
traiu se vendendo vergonhosamente por algumas irrisórias moedas de prata ou
como Esaú que trocou seu privilégio da primogenitura por um comum e vulgar prato
de lentilhas, a Igreja Cristã entrega-se literalmente de corpo e alma às
concupiscências de uma Sociedade prenha de toda sorte de depravações
inimagináveis; produzindo em suas instâncias, das mais simples até às mais
elevadas, uma profunda desordem dos sentidos, da razão e da espiritualidade.
Esse rio vai se acaudelando até se transformar
em um volumoso e imenso rio que em seu percurso vai arrastando tudo e todos. E
a Igreja que deveria gerar vida, passa a ser sinônimo de morte; ela que deveria
pacificar os corações, torna-se instrumento de terror e horror para uma
população cada vez mais miserável; a Igreja que deveria ser a luz do Mundo,
torna-se parte inerente das Trevas que vai cobrindo toda a extensão deste
período histórico da humanidade Ocidental a ponto de receber a alcunha de Idade
das Trevas (tudo isso na Europa e não necessariamente no resto do mundo).
Mas como a Igreja não é somente uma instituição
humana, mas tem sua origem e razão estabelecidas por aquele que morreu por ela
e a comprou com seu precioso sangue, ela permaneceu e permanecerá até que Jesus
Cristo, sua pedra angular retorne e a resgate definitivamente. E assim como
Deus mesmo manteve no Israel apóstata um remanescente fiel, que não dobrava
seus joelhos à Baal, o mesmo Espírito manteve no meio desta Igreja decadente
aqueles que mantiveram os princípios fundamentais de um cristianismo bíblico
gerador de vida e luz para todos que estavam ao derredor. E como se sabe, em
meio à mais tensas trevas, uma única pequenina chama resplandece com mais intensidade
e torna-se uma referência para aqueles que vivem à deriva na escuridão.
Enquanto nós temos no século XVI, com o advento
da chamada Reforma Protestante, os grandes luminares nas pessoas dos expoentes
reformadores, cujos nomes e ações conhecemos, ou pelo menos deveríamos
conhecer, nos séculos que os antecederam também haveremos, se tivermos
paciência e persistência, de descobrir alguns expoentes luminosos que zelaram e
com suas vidas expressaram o que há de mais maravilhoso e extraordinário na
Igreja Cristã – vida em abundância.
É aqui que introduzo o recorte histórico
ocorrido a partir do século XIV e que ficou conhecido como Movimento dos Irmãos
da Vida Comum. Influenciou profundamente a vida espiritual dos cristãos em toda região
noroeste da Europa, como nenhum outro movimento havia feito no período medievo,
nem mesmo as congregações de reforma monástica e canônica, nem nas observâncias
das ordens mendicantes alcançou tal êxito. Esse movimento interno
da Igreja Cristã foi tão profundo que o impacto dele repercutiu ainda no século
XVI, XVII e XVIII permeando as origens de dois poderosos movimentos intestinos nas
Igrejas Reformadas, cujas ortodoxias se haviam tornando tão rígida e insensível
que transformara os movimentos e teologia intensamente apaixonada dos pioneiros
reformadores em um frio e insensível ritual doutrinário-teológico-academicista.
O historiador W. Walker descreve este momento do protestantismo como sendo
caracterizado por um dogmatismo extremado:
“Em
certo sentido, esse protestantismo escolástico foi mais estreito do que aquele
do período medieval por ter sido inconscientemente influenciado pelo espírito
racionalista contra a qual lutou, tanto que se tornou semelhante às novas
correntes racionalistas tanto na têmpera como no método”. (1967, p. 190).
Os dois movimentos que me referi acima são pela
ordem o Precisionismo de origem holandesa-alemã e o Puritanismo inglês. Ambos
os movimentos beberam desta fonte nascente no distante século XIV e que mesmo
quando oficialmente extinguido, em meados do século XVI, suscitou
periodicamente remanescentes que nos séculos XVII e XVIII retomaram algumas de
suas concepções e propostas cardeais, evidentemente com renovada e necessárias
roupagens, mas com o mesmo coração e desejo de vivenciar os ensinos bíblico-evangélico.
E não apenas nos séculos citados, mas transpassou
o tempo-espaço e atravessando oceanos alcançam as Américas, primeiramente a do
Norte e depois a do Sul. Sim, em nossos primórdios protestantes trazemos as
marcas indeléveis deste conjunto de movimentos vivificadores de uma Igreja viva
e luminosa no meio das trevas e da religiosidade estéril. O popular quadro dos “dois caminhos”, que
emoldurou tantas salas das casas dos “crentes” evangélicos brasileiros, trazido
na bagagem dos missionários protestantes estadunidenses que aqui começaram a
desembarcarem a partir da metade final do século XIX, é a expressão palpável da
sobrevivência deste movimento iniciado no século XIV e renovado de tempos em
tempos no seio do protestantismo mundial.
Origem
O movimento dos Irmãos da Vida Comum
(em latim: Fratres Vitae Communis), que posteriormente passou a ser denominado
de “Devoção Moderna” (Devotio Moderna), termo cunhado por Henry Suso (Heinrich
Seuse), o famoso místico de Bodensee (Lago de Constança). O movimento ainda que
tenha surgido em meados do período histórico da Idade Média, caminhou sempre à
margem da instituição oficial da Igreja Cristã e mesmo em seu apogeu, quando
fortemente estruturado e estabelecido suas instituições educacionais, sociais e
religiosas (mosteiros), contando com mais de uma centena de núcleos espalhadas
por todo o norte da Europa e milhares de adeptos, não foi cooptado pelo sistema
oficial que sempre o tratou com desconfiança crítica.
Eles defendiam apaixonadamente um
retorno aos primeiros ideais cristãos, dentro dos limites da exegese
prevalecente no medievo, especialmente os Evangelhos. O modelo perseguido por
eles era a dos primeiros cristãos (Atos), o que se assemelhava aos diversos
movimentos de protestos que surgiram desde os primórdios e pontilharam todo o
período Medieval, tanto dentro da ortodoxia como aqueles alienados dela. Ao
lados das Escrituras soma-se as literaturas advindas dos chamados Pais do
Deserto, que torna-se um espelho do ideal vivencial deles.
As figuras fundantes deste movimento
foram Gerard Groete (1340-1384), Florens Radewyns
(1350–1400) em Deventer e Jan Celle na vizinha Zwolle, a partir da década 1370.
A proposta de uma vivência comunitária e de muitas vezes estar inserido nos
interiores de muitos Mosteiros deste período, o distinguia principalmente pelo
fato da não exigência de votos, de maneira que seus adeptos eram completamente
motivados pelo compromisso pessoal espontâneo e livre.
A razão pela qual o movimento
manteve uma relação direta com os mosteiros é pelo fato de que Groete tinha
como um dos seus objetivos resgatar a genuína vida monástica para uma
espiritualidade eminentemente bíblica e de moral ilibada. Tendo como modelo a
vida do próprio Groete muitos monges adotaram para si os princípios
estabelecidos e vivenciados pelo movimento do Irmãos da Vida Comum.
Desde seus primórdios o movimento propôs
uma busca permanente pelo renascimento da piedade e da moral (antecipando o
Movimento Renascentista e Humanista que ampliarão exponencialmente alguns dos
conceitos propostos pelos Irmãos da Vida Comum). Mas apesar de surgir e
permanecer às margens da oficialidade, as propostas deles permaneceram em
estreita conexão com a expressão de fé da igreja cristã medieval. Em nenhum
momento seus líderes fundantes e posteriores propuseram uma fuga da igreja
oficial ou mesmo uma profunda e ampla reforma eclesiástica (o que vai ocorrer
somente no século XVI e que indiretamente atingira o próprio movimento dos
Irmãos e contribuirá para sua extinção oficial, visto que incomodava tanto o staff
católico como também dos reformadores).
O objetivo claro e buscado
perenemente esteve sempre centrado no resgate de uma vida cristã interior
nutrida pelas Escrituras e autenticada por uma vivência correspondente (que pode
ser perceptível nos movimentos de espiritualidade do protestantismo, nomeados
acima), sintonizada com as carências e anseios de uma sociedade decadente em
todas as suas esferas sociais-políticas-eclesiásticas. Em todo o tempo
visava-se a conversão e a renovação do coração pela ação fecundante do Espírito
Santo; a proclamação da salvação por meio do Senhor Jesus Cristo (ainda que não
explicitassem a exclusividade como o farão os reformadores); e a importância
primordial do estudo da Sagrada Escritura, não nos moldes
escolástico-academicista, mas em sua essência evangélica, especialmente o
seguimento de Cristo na vida cotidiana, ou seja, chegar a uma vivência prática
através da reflexão diária sobre a vida de Cristo. Não era um movimento
centrado no emocionalismo ou experiências místicas, mas se desejava
ardentemente as virtudes e resultados tangíveis. Esta busca incansavelmente
pode ser vista claramente nas páginas da obra escrita por Thomas von Kempen [Tomás
a Kempis], De Imitatione Christi (Imitação de Cristo) escrito provavelmente entre
1414 e 1425, onde o autor preserva a essência deste movimento dos Irmãos, tendo
sido ele uma testemunha ocular. O livro é uma espécie de diário do crente na
busca pela perfeição e/ou santidade imitando a própria vida de Jesus conforme
registrada nas narrativas evangélicas. Impossível não vermos semelhanças
profundas nas perspectivas da obra de Kempis e o livro evangélico romanceado escrito
no século XIX por Charles M. Sheldon intitulada “Em Seus Passos O Que Faria
Jesus”, publicada em 1896 e que se tornou um sucesso editorial com milhões
de cópias vendidas, traduzida para muitas línguas, inclusive o português. A
narrativa fictícia de Sheldon torna-se uma espécie de manual de ética cristã, desafiando
através dos personagens os cristãos a exercerem sua influência a fim de gerar transformações
sociais, políticas e espirituais no lugar onde vivem, através da vivência dos
princípios bíblico-evangélico. Certamente os Irmãos da Vida Comum leriam e
reproduziriam esse livro.
O desejo por uma espiritualidade
vivencial nunca se extinguiu por completo na Igreja Cristã Medieval, mesmo em
seu período mais escuro, mas tais princípios estavam enterrados e escondidos
sob inumeráveis cerimônias, hierarquias e carnalidade, de maneira que, o movimento
dos Irmãos surge justamente para, assim como os mineiros que adentram ao mais
profundo das minas para extrair as preciosas e ricas pedras, adentrarem nas
profundezas tensas da religiosidade do medievo e extrair as preciosas pedras da
genuína espiritualidade e vivência do Cristianismo bíblico.
Contexto
Histórico Religioso
|
Nos
tempos de surgimento do Movimento dos Irmãos da Vida Comum já era notório aos
olhos do mais simples neófito a franca decadência das instâncias religiosas
oficiais, desde a mais simples e interiorana capela, perpassando pelos
mosteiros, acentuando-se miseravelmente nas instâncias superiores e culminando
com uma cúpula eclesiástica, que em alguns momentos tornou-se pior, em todos os
sentidos, do que a própria sociedade mundana e depravada em que estava inserida.
Qualquer cristão com mediano conhecimento bíblico ficava horrorizado com aquele
quadro religioso decadente e posteriormente os humanistas cristãos expressariam
e combateriam os horrores deste estado deplorável da Igreja Cristã oficial e
que acabara desembocando no chamado movimento da Reforma Protestante no século
XVI.
As dissensões eclesiásticas que se
multiplicava dia a dia era apenas um reflexo desta decadência intestinal da
Igreja moribunda, que desta forma perdia paulatinamente sua credibilidade moral
e espiritual enfraquecendo consequentemente sua influência externa. Durante o
Cisma ocidental entre 1378 e 1417, dois ou até três papas interinos se
digladiaram e se contrapuseram por anos rasgando diante dos olhos de todos a
tão aclamada unidade da Igreja Cristã. Seu esfacelamento interno não apenas a
dividiu e subdividiu, mas a descaracterizou completamente de modo que ela se
torna um instrumento do mal que passa assolar as próprias nações cristãs.
Mas por outro lado, ninguém poderia voltar a
fazer vista grossa para as mazelas da igreja medieval. Passa-se a enfatizar uma
volta à igreja primitiva como um modelo exemplar a ser imitado e a se buscar o
resgate das literaturas canônicas como fundamentos da genuína fé e instrução
cristã que haviam sidas banidas para o limbo do esquecimento. O movimento dos
Irmãos da Vida Comum nasce com o propósito de oxigenar esta atmosfera
infecciosa do cristianismo medievo.
Propostas
Gerhard [Geert, Gerrit] Groete [Groot],
seus discípulos se referiam a ele como Gerardus Magnus [latim Gerardus Magnus],
e
seus colaboradores diretos Florens [Florent] Radewin, Florens (ou Florent)
Radewijns em Deventer e Jan Celle na vizinha Zwolle, oriundos dos Países Baixos
(Holanda) empreenderam muitas iniciativas e ações que se constituiriam nas
ferramentas com as quais implementariam uma vivificação desta Igreja Cristã medieval
terrivelmente enferma.
Um dos pontos básicos fundamentais deste movimento era o de resgatar o aspecto pessoal e devocional da fé cristã (solus cum solo) cara a cara, o crente sozinho na presença de Deus. A religiosidade cerimonialista coletiva que se predominava naqueles dias (como nos nossos dias) acabava camuflando todos os absurdos praticados, como vimos até aqui; nunca se teve tanta missa (culto), os templos lotados, mas nunca o cristão esteve tão longe de Deus, como no transcorrer da Idade Média.
Mas diferentemente dos mosteiros a convivência
e pratica dos Irmãos era totalmente voluntário sem a exigências de votos, o que
facilitou a incorporação de homens e mulheres, leigos e clérigos no movimento. O
que não significa que não houvesse regras e exigências rígidas e até mesmo
sanções punitivas. A convivência comunitária exige sempre um rigor normativo
para que não venha a cair na armadilha do desleixo e da pecaminosidade. A
proposta de espiritualidade dos Irmãos possuía um senso sóbrio de realidade,
pois é voltada para as pessoas que vivem na lida diária com suas desventuras e
limitações humanas. Esse foi o segredo do sucesso imediato alcançado pelo
movimento iniciado por Gerard, pois ele tinha conseguido dar expressão ao que a
Europa de seu tempo precisava mais: uma espiritualidade que respeitasse e
desafiasse os leigos.
Advindo de uma família abastada Groete
vai utilizar seus recursos econômicos para adquirir diversas propriedades onde
vai estabelecendo locais de acolhimento “casas” para os que vão se agregando ao
movimento dos Irmãos. A partir da Holanda o movimento vai se espalhando para a
Alemanha, norte da França, Espanha e até mesmo na Itália.
Com ênfase na literatura o movimento dos Irmãos da Vida Comum se tornou empreendedor pioneiro em duas áreas prementes daquela época, antecipando os grandes movimentos Renascentista e Humanista e a própria Reforma Protestante que compartilharam igualmente destas duas premissas: a fundação de escolas e inicialmente o processo de copistas de textos que passaram a serem preservados. As irmãs e ainda mais os irmãos da Vida Comum tornavam-se ávidos leitores, em primeiro lugar dos textos bíblicos, mas também de outras leituras, dos quais faziam anotações curtas decorrentes de suas reflexões e que posteriormente eram transformados em livretos. Pois, para eles não era suficiente uma leitura informativa sobre milhares de fatos curiosos mas sem uma compreensão do que os autores desejam comunicar e uma avaliação da praticidade na vida pessoal.
Deste modo, para começar, selecionava-se cuidadosamente o livro, tais como Agostinho, meditações de Bernard, Heinrich Suso entre outros, deixando de fora a literatura escolástica, mística e dogmática. O Devotio Moderna sem livros seria semelhante a um relógio sem ponteiros e se referiam a si mesmos como os “irmãos da pena”. Todo este esforço e dedicação expressava um propósito triplo: difundir as ideias, apoiar a comunidade espiritual e construir sua própria personalidade religiosa. Escrever era em si um ato de devoção e internalização, pois no processo o conteúdo de um texto não somente era preservado, mas também era memorizado e seus ensinos apreendidos na mente e no coração do copista.
Mas além de copiarem os livros para uso
pessoal, eles também copiavam por encomenda, quando contratados por outros, o
que contribuía para sua sustentabilidade, visto que os livros eram raridades e caros.
Seus trabalhos copistas eram reconhecidos pela exatidão dos textos e pela
qualidade da produção. Um quarto de todos os manuscritos preservados da
antiguidade foram preservados por copias feitas pelos Irmãos da Vida Comum. O
próprio Groete era um leitor contumaz, o que apelidamos de “rato de biblioteca”,
em decorrência disso em todas as casas dos Irmãos havia sempre uma biblioteca ao
qual se destinava um terço de sua renda para mantê-la e amplia-la, estando
aberta a quaisquer pessoas que desejasse ler, constituindo-se em embriões das
bibliotecas públicas. Apesar de ávido leitor ele não produziu muitas obras, mas
um desses tratados, Resoluções (c. 1374 ou 1375), escrito durante seu tempo em
Monnikhuizen, estabeleceu diretrizes para a vida espiritual comum e se
constituiu em uma espécie de regra para suas comunidades e seguidores.
Imediatamente ao aparecimento da prensa
tipográfica de Gutemberg eles iniciaram a editoração e distribuição de suas literaturas
religiosas e educacionais. Um único exemplo nos ajuda a compreender o impacto
desta ação editorial. No ano de 1500, a Imitação de Cristo escrita por Thomas
Kempis, que se constituía em um livro fonte importante para o movimento dos
Irmãos, passou por 59 edições com 1.000 cópias em cada edição. Este livro que
ainda hoje continua sendo reimpresso em várias partes do mundo, incluindo o
português, é considerado o segundo livro religioso mais lido, perdendo apenas
para a leitura da Bíblia. Mas a utilização da imprensa trouxe uma grande perda
para o movimento, pois o processo de assimilação interna do texto copiado
perdeu-se.
Este aspecto está em perfeita
sintonia com a premissa dos Irmãos da Vida Comum, pois acreditavam que o meio
mais eficiente de se alcançar uma reforma na Igreja e na Sociedade era através
da universalização da educação dos jovens e a alfabetização dos adultos, para
que cada um por si mesmo pudesse ter acesso direto ao conhecimento das verdades
bíblicas. Este conceito de personalização do conhecimento religioso tornou-se
uma das principais características do Humanismo Cristão e da Reforma
Protestante 150 anos depois.
Suas próprias escolas (ex. Deveter, alcançou
2.000 alunos e Zwolle chegou a ter 1.200 alunos) eram altamente conceituadas
naquele período. Além disso eram convidados pelas autoridades civis para
administrarem suas escolas os quais eles capacitavam professores e reitores e
quando estes não seguiam as diretrizes pedagógicas estabelecidas eram
dispensados sumariamente.
O grande desafio era a disseminação
desta educação para as áreas rurais, e para isso eles estabeleceram albergues e
dormitórios para as crianças carentes, de maneira que universalizou a educação
tornando-a acessível aos mais pobres. Alguns destes albergues chegavam a
acomodar até duzentos alunos e grande parte deles acabavam completando seus
estudos nas cidades. Em cada albergue havia um Irmão que revisava o que os
professores haviam ensinado em sala de aula. Evidentemente que havia uma
atenção peculiar deles em relação à espiritualidade desses alunos para que
pudessem ler e apreender as Escrituras bíblicas.
É deles também o conceito de
estabelecer o sistema de oito séries, ainda utilizado inclusive no Brasil. Essa
novidade contribuiu significativamente para um ensino mais produtivo e menos
exigente para os alunos. Nestes novos currículos foi introduzido o trivium
(gramática, lógica e retórica) e o quadrivium (aritmética, geometria, música e
astronomia); um embrião do diário de classe permitia acompanhar o
desenvolvimento de cada aluno, que eram submetidos a provas periódicas para
avaliar seus conhecimentos adquiridos, e recursos visuais, como mapas, foram
inseridos como ferramentas pedagógicas. Em cursos avançados se incluía latim,
grego e hebraico. Todos estes esforços e inovações colocaram o sistema
educacional dos Irmãos na vanguarda da introdução do conceito humanístico de
educação.
Todos os expoentes da Reforma adotaram com
entusiasmo e veemência este conceito educacional como meio para fundamentar as
igrejas e impactar as sociedades em que estavam inseridos. A famosa Academia de
Genebra, estabelecida por João Calvino, é um dos mais eficientes exemplos deste
fato, irradiando uma teologia bíblica e permeando toda a sociedade através de
homens e mulheres comprometidos com os princípios do Evangelho. Grande parte de
sua vivência em Genebra ele dedicou a estruturar a questão educacional da
cidade. Seu projeto incluía um sistema de ensino fundamental no vernáculo para
todos, incluindo leitura, escrita, aritmética, gramática e religião, pois sua
visão educacional extrapolava as paredes eclesiásticas, pois entendia que se deveriam
instruir os jovens e demais pessoas não apenas “para o ministério
[pastoral], bem como para o governo civil” (REID, 1954, p. 63), ou seja,
para todas as demais áreas da Sociedade.
Poucas nações no mundo entenderam e vivenciaram
estes princípios do que os Estados Unidos da América do Norte, que desde suas gênesis
esteve fecundada deste princípio educacional e cujas instituições moldaram não
apenas a mente e a vida de seus concidadãos, como foram exportados para todos
os lugares do globo terrestre. Os primeiros missionários protestantes
estadunidenses que desembarcaram nos portos brasileiros, a partir da segunda
parte dos oitocentos, traziam em suas bagagens este conceito educacional
religioso, cujo moto expressa com clareza: ao lado de uma igreja, uma escola.
Naquele momento histórico o Brasil vivenciava a nefasta realidade de oitenta a
noventa por cento de sua população em total analfabetismo ou analfabetismo
funcional.
A contribuição do movimento dos Irmãos é
comprovada pelo fato de que, entre 1400-1560, as maiores taxas de alfabetização
e o número crescente de edições literária é muito superior em cidades onde
havia atividades das casas dos Irmãos do que nas demais cidades deste período.
Igualmente há uma proliferação mais acentuada de escolas e bibliotecas.
A lista daqueles que entraram em contato com as ressonâncias educacionais
do movimento dos Irmãos da Vida Comum em sua juventude é longa e contém além de
Martinho Lutero, que por um ano estudou em uma das escolas fundadas pelos
Irmãos, inclui também Erasmo de Roterdã, Nicolau Copérnico, Huldrych Zwínglio,
Martin Bucer, João Calvino, Heinrich Bullinger para citar apenas alguns.
Inácio de Loyola, haverá de incorporar grande parte
da tradição Devotio Moderna em seus Exercícios Espirituais e por extensão à
tradição jesuíta de formação. Desta forma, a simples e devocional piedade de
Groote tornou-se uma marca da Contrarreforma do século XVI. E serão esses
jesuítas que se estabeleceram no Brasil, no período colonial, e estabeleceram
as primeiras escolas brasileiras.
Por fim, não poderia deixar de destacar um aspecto
pessoal da trajetória de Gerhard Groote que repercutiu profundamente na vida pessoal
dele e na vida de milhares e talvez milhões de pessoas. As Escrituras estavam
no centro de sua vida. Sua pregação era pregação bíblica. Seu coração ardia
intensamente no desejo de ver todas as pessoas lendo a Bíblia. Mas
diferentemente de hoje, naqueles dias não apenas é difícil e caro adquirir um
exemplar da bíblia, mas também era raro encontrar uma versão que contivesse
textos totalmente confiável.
Diante deste desafio ele começa pessoalmente a
coletar manuscritos bíblicos em igrejas e mosteiros pelos quais passava. De posse
deste material ele começa então o árduo e minucioso trabalho comparando as
diversas cópias, considerando as diferentes leituras e finalmente copilando os
textos mais exatos e confiáveis.
Todo o seu conhecimento adquirido em anos
anteriores, incluindo o latim, grego e hebraico, são colocados com empenho e
dedicação, pois ele nunca se considerou, ou foi considerado, um
anti-intelectual. Depois de um longo tempo Groote conseguiu produzir um texto
satisfatório da bíblia para seu uso pessoal. Posteriormente, universidades nos
Países Baixos que iram desenvolver importantes trabalhos científicos sobre o
texto da Bíblia, haverão de utilizar o trabalho iniciado por Groote.
Nada dura para sempre e os irmãos também enfrentam sua queda em algum momento. No transcurso da Reforma Protestante, a dissolução das comunidades de irmãos começou, até que oficialmente desapareceram completamente no século XVII. Todavia, as influencias benéficas deste movimento perenizou-se e transpassou os séculos posteriores e ainda hoje vemos focos desta busca permanente de uma espiritualidade genuína.
Utilização livre desde
que citando a fonteGuedes, Ivan PereiraMestre em Ciências da
Religião.Universidade
Presbiteriana MackenzieOutro BlogReflexão Bíblica
Referências Bibliográficas
DLABACOVA,
Anna e HOFMAN, Rijcklof. De Moderne devotie. Uitgever: Uitgeverij WBOOKS.
EGER,
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www.reformiertonline.net:8080/t/span/bildung/grundkurs/gesch/lek2/index.jsp
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(citada)
VAN
NIEKERK, Dick. Geert Groote of Deventer and the first Generation of the
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VAN
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VAN ZIJL, Theodore P. Gerard Groetee, Ascetic and Reformer (1340 - 1384). A Dissertation Submitted to the Faculty of the Graduate School of Arts and Sciences of the Catholic University of American in Partial Fulfillment of the Requirements for the Degree of Doctor and Philosophy Hardcover – January 1, 1963.
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