Desde sua conversão até seu último dia João Calvino
manteve-se envolvido em suas múltiplas tarefas de professor, pregador, pastor,
e principalmente de escritor. Poucos reformadores deixaram tantas obras
escritas como ele começando por sua obra teológica magna “As Institutas da Religião Cristã”, que após cada revisão era ainda
mais ampliada, perpassando por seus preciosos comentários dos livros da bíblia,
do Primeiro Testamento com exceção dos livros históricos depois de Josué (Juízes,
Rute, Samuel, Reis, Ester, Neemias, Esdras), e da literatura de sabedoria
deixou de comentar Provérbios, Eclesiastes e Cantares, do Segundo Testamento as
exceções foram o livro do Apocalipse e as duas últimas cartas de João. Suas
correspondências é algo extraordinário em torno de 4.271 cartas que foram
coletadas, muitas delas com diversas laudas, mantidas com as mais diversas
personalidades e sobre os mais controversos temas. E seus sermões que duravam
não menos do que uma hora e seis mil palavras.[1] Calvino
como uma vela manteve sua luminosidade até o último momento.
Sua saúde desde muito jovem sempre foi bastante frágil e
ao longo dos anos foi agregando uma série de enfermidades que o perturbavam
muito. Calvino descrevia sua condição física como "uma luta constante de morte": era um sofredor crônico de
febre, renite (inflamação da membrana mucosa do nariz que fazia seu nariz
escorrer continuamente), asma, indigestão e enxaqueca que às vezes o mantinham
acordado a noite toda; a partir de 1558, ele sofreu longamente de febre quartã
(uma febre malárica intermitente) da qual nunca se recuperou totalmente; a
lista parece interminável, sofria de artrite quase paralisante, gota, pedras
nos rins, hemorroidas ulceradas, doença gengival, indigestão crônica e
pleurisia que finalmente levou à tuberculose pulmonar maligna. Em muitos
momentos Calvino chegou a tossir sangue durante pregações ou palestras públicas.
Mas
após enfrentar tantas tempestades ele sente que seus dias estão por se
completar. Mas ao olhar no retrovisor de sua vida ele é tomado de grande
alegria interior, por tanto que Deus o capacitou a realizar e por aquilo que
ele ainda haveria de fazer no pouco tempo que ainda lhe será concedido pela
graça de seu Salvador e Senhor. Sobre essa aproximação do fim, é revelador
lermos o que escreveu Theodore Beza, um de seus primeiros biógrafos e de
convivência pessoal: “No ano de 1562 já
pode ser visto, que Calvino estava apressando-se com passos rápidos para um
mundo melhor. Ele, porém, não cessou de confortar os aflitos, de exortar, mesmo
de pregar, e dar palestras”. Era impossível conviver com Calvino e não
admirar sua determinação; suas obras e correspondências finais não são em nada
inferior ao que havia produzido em outros anos de mais vigor, se o corpo
padecia a mente e o coração pulsavam vividamente cada minuto do dia, sua mente adamantina
permaneceu saudável e ativa até seus últimos momentos de vida, como atestam as atas
do Consistório de Genebra: "saudável
e inteira em sentido e compreensão".
De onde Calvino tirava tanta determinação? Uma resposta
simples pode ser encontrada em uma das pedras fundamentais do edifício que
abriga o Colégio, onde ele esculpiu uma expressão de Provérbios: “O temor do Senhor é o principio da sabedoria”.
Esse foi o moto pelo qual Calvino viveu intensamente cada dia da sua vida, uma
das razões pelas quais ele não sucumbiu antes diante de suas múltiplas
responsabilidades e atividades e das violentas tempestades que se abateram
sobre ele. Ele nunca tinha sido realmente robusto e, nos últimos anos apareceu
asma, acompanhada de cusparadas de sangue e outros distúrbios, mas nada o
impedia de continuar seu trabalho e de fato parece ter trabalhado ainda mais à
medida que suas forças diminuíam. Cada grão de areia da ampulheta do tempo que
Deus ainda lhe reservara tornava-se mais precioso do que ouro e prata. Tanto a
fazer e tão pouco tempo.
Adentrando
o ano de 1563 suas condições físicas se deterioram rapidamente, que todos que o
viam admiravam-se dele ainda estar vivo. E apesar de aconselhado pelos amigos
mais íntimos a se poupar ele resistia. Quando por fim teve que deixar as
atividades públicas da cidade, do Colégio e do púlpito, ele manteve-se
plenamente ativo em sua residência, atendendo todos os que o procuravam e
utilizando seus secretários, que se revezavam, ditando-lhes as
correspondências, bem como seus comentários bíblicos.
Seu último comentário foi justamente o livro de Josué e
aqui muitos são os que discutem se foi algo casual ou se ele realmente
pressentia que sua partida estava muito próxima. A questão é que o livro de
Josué trata justamente da Morte de Moisés e a transição para uma nova liderança
na figura de Josué. É impossível ler o comentário e não perceber a ligação
direta com o momento transitório de Calvino.
Este comentário foi feito a partir das reuniões semanais
em que todos os ministros de Genebra e aldeias vizinhas compareciam para
estudar as Escrituras, chamada “Congregação
da Companhia de Pastores”. A participação efetiva de Calvino revela o grau
de importância que ele dava a estas reuniões semanais. De junho de 1563 a
janeiro de 1564, ou seja, no transcorrer dos últimos meses de vida de João
Calvino, foram produzidos vinte e três textos sobre o livro de Josué.
A segunda quinzena de agosto e setembro-outubro de 1563 fora
dias muito difíceis para Calvino, como testemunham suas cartas. Calvino havia
pregado seu último sermão em Genebra em 6 de fevereiro de 1564, mas de acordo
com Theodore Beza ele persistiu em participar das reuniões semanais dos
pastores porque não havia necessidade dele falar por uma ou mais horas
inteiras, como na pregação ou nas aulas. Como moderador ele apenas adicionava
comentários ao capítulo que fora exposta por um dos colegas, bem como fazia uma
conclusão e a oração final.
Estas reuniões dos pastores eram também importantes para
que eles pudessem acompanhar pessoalmente as condições de saúde de seu amigo e
amado líder. No final de março de 1564 ele participa da sua última reunião
oficial da Companhia de Pastores, de preparação para a celebração da Páscoa e
da Ceia
do Senhor. Na sexta-feira 31 de março, pela última vez, ele esteve presente no Auditório
onde se realizavam as reuniões, já com seu corpo completamente desfigurado.
Em 25 de abril, ele ditou
seu último testamento[2] e na sexta-feira, 28 de
abril de 1564, Calvino recebeu a congregação de ministros à sua cabeceira e
despediu-se deles. Suas palavras foram posteriormente anotadas de memória pelo
ministro Jean Pinant. É a voz de um homem determinado, mas completamente
exaurido. Na verdade, ele viveu somente mais algumas semanas. Ele faz uma
retrospectiva de sua chegada à Genebra até aqueles dias e aqui podemos
visualizar a força de sua personalidade e o ponto convergente de sua vida:
Pareço ser diferente de outros enfermos
que, quando a morte se aproxima, seus sentidos falham e eles deliram. No meu
caso, embora seja verdade que me sinto paralisado, parece que Deus estava
concentrando todos meus sentidos dentro de mim, e acredito que terei grandes
dificuldades e que morrer me custará muito esforço. . . .
Quando vim pela primeira vez a esta igreja,
não encontrei quase nada nela. Havia pregação e isso era tudo. Eles
procurariam ídolos, é verdade, e os queimavam. Mas não houve
reforma. Tudo estava em desordem. . . Eu vivi aqui em meio
a discussões contínuas. Fui saudado com escárnio uma noite diante de minha
porta com 40 ou 50 tiros de arcabuz. Eu sou, e sempre fui um estudioso
[acadêmico] pobre e tímido, então você pode imaginar o quanto isso me
surpreendeu. ... Eles colocaram cachorros nos meus calcanhares, gritando,
‘para ele, para ele!’ E eles morderam meu vestido e minhas pernas [referindo ao
seu retorno de Estrasburgo]. Pois embora eu não seja nada, sei bem que evitei
3.000 tumultos que poderiam ter ocorrido em Genebra. Mas tenham coragem e
fortaleçam-se, pois Deus fará uso desta Igreja e a manterá e garante que a
protegerá.
Mas ele aproveita também para fazer uma avaliação pessoal
consciente e realista, mesmo sabendo que opositores haveriam de fazer uso
distorcido de suas próximas palavras:
Tive muitas enfermidades que vocês tiveram de tolerar, e tudo o
que fiz foi de pouca importância. Os mal-intencionados tirarão proveito
dessa confissão, mas repito que tudo o que fiz tem pouca importância, e sou uma
pobre criatura. Minhas faltas sempre me desagradaram e a raiz do temor ao
Senhor sempre esteve em meu coração. Quanto à minha doutrina, ensinei
fielmente, e Deus me deu graça para escrever, o que fiz fielmente como eu pude; e
não corrompi [mutilei] uma única passagem da Escritura nem a torci até onde eu
sei; e quando podia chegar a um significado artificial através da
sutileza, coloquei tudo isso sob meus pés e sempre busquei a simplicidade. Não
escrevi nada por ódio contra ninguém, mas sempre coloquei diante de mim o que
pensei ser para a glória de Deus. (CO 20.302–3).
Mas em 19 de maio, preparando-se para a celebração da
Ceia de Pentecostes de 1564 todos os participantes de Companhia de Pastores se
fizeram presentes na Rue des Chanoines, residência de Calvino na cidade. Ali
fizeram sua refeição comunitária e celebraram sua amizade. Ele pediu que fosse
conduzido de seu quarto para a sala de jantar adjacente. Enquanto à mesa, contemplando
a todos os presentes com seus olhos vividos disse com voz fraca, mas firme: “Esta
é a última vez que os encontrarei à mesa”, palavras que trouxe aperto ao coração de todos os presentes. Ele então fez uma oração, comeu um pouco e
conversou o mais animadamente possível naquelas circunstâncias. Antes de
terminar a refeição, ele solicitou que fosse levado de volta ao seu quarto e,
ao despedir-se, disse com um semblante sorridente: “Esta parede não me
impedirá de estar presente convosco em espírito, embora ausente no corpo”.
Foi o último momento deles com Calvino, que veio há falecer poucos dias depois.
Embora Calvino tenha insistido por correspondência para
que Farel,[3]
seu amigo precioso, não empreendesse viaje para uma visita final, já completado
seus oitenta anos e com a saúde debilitada, Farel fez a longa viagem de
Neuchâtel para que pudesse estar ao lado do irmão de batalha. Diante da figura
deteriorada do amigo, Farel declarou que desejava morrer no lugar dele. Alguns
dias depois da morte do querido amigo Farel escreve uma carta a Fabri, outro
amigo leal (6 de junho de 1564):
Oh, por que não fui levado em seu lugar,
enquanto ele poderia ter sido poupado por muitos anos de saúde ao serviço da
Igreja de nosso Senhor Jesus Cristo! Agradeço a Aquele que me deu a graça
suprema de encontrar esse homem e mantê-lo contra sua vontade em Genebra, onde
ele trabalhou e realizou mais do que a língua pode dizer. Em nome de Deus, eu o
pressionei e o pressionei novamente para assumir um fardo que lhe parecia mais
difícil do que a morte, de modo que às vezes ele me pedia, pelo amor de Deus,
que tivesse pena dele e lhe permitisse servir a Deus de uma maneira que se
adequasse à sua natureza. Mas quando ele reconheceu a vontade de Deus, ele
sacrificou sua própria vontade e realizou mais do que se esperava dele, e
superou não apenas os outros, mas também a si mesmo. Oh, que curso glorioso ele
terminou alegremente! (GREEF, 2008).
Calvino
morreu pacificamente e silenciosamente no sábado, 27 de maio de 1564 entre as
20h e 21h, com a idade de (apenas) 54 anos. E coube a Beza testemunhar sua
partida:
“Eu
tinha acabado de deixá-lo, um pouco antes e, ao receber o chamado dos servos,
corri imediatamente para ele com um dos irmãos. Descobrimos que ele já
havia morrido, e com tanta calma, sem nenhuma convulsão nos pés ou nas mãos,
que nem mesmo deu um suspiro mais profundo. Ele permaneceu perfeitamente
sensato e não foi totalmente privado de falar até o último suspiro. Na
verdade, ele parecia muito mais um adormecido do que morto”.
E
o próprio Beza registra o impacto desta morte na cidade de Genebra: “Na noite e no dia seguinte houve uma
lamentação geral por toda a cidade ... todos lamentando a perda de alguém que
foi, sob Deus, um pai comum e consolador” (1983, Xcvi). Mais um
testemunho contraditório ao estereotipo frio e insensível que seus adversários produziram
nas bigornas dos centros acadêmicos e religiosos daqueles dias e
premeditadamente perdura até os dias de hoje.
Mas
é relevante ouvirmos o testemunho oficial do Consistório de Genebra[4],
composto por pessoas que conviveram por muitos anos com João Calvino:
No
que diz respeito ao falecido M. Calvin que tinha sido como um pai no meio de
nossa sociedade e o mesmo para cada um de nós individualmente. Deus deu a ele
tais qualidades e o acompanhou com tanta autoridade sobre as pessoas que ele
usou para ajudar cada um de nós a servir melhor em nosso ministério, de modo
que se tivesse que marcar uma reunião todos os anos não poderia ter escolhido
ninguém mais de nossa sociedade: ter feito de outra forma teria sido ignorar as
incríveis e grandes qualidades que Deus concedeu a Calvino; junto a eles havia
uma sinceridade e consciência que todos podiam perceber. E, na verdade, Deus
abençoou tanto sua conduta que em todas as esferas, inclusive em tudo o que diz
respeito ao nosso ministério, nunca faltou à nossa sociedade um conselho bom e
sensato, e sempre foi óbvio que ele nunca pensou em sua própria vantagem ou na
de seus parentes, mas tratou todos iguais. (Registres II, p. 103, apud,
POTTER, 1983, p. 179).
Ele
foi enterrado no domingo em uma sepultura sem identificação em um local secreto
em algum lugar de Genebra. Essa havia sido uma solicitação pessoal de
Calvino. Quando comentou os livros de Moisés (Pentateuco) tratando sobre a
morte de Moisés, cujos ossos nunca foram encontrados, ele disse: “É bom que homens famosos sejam enterrados em
sepulturas não marcadas” (CALVIN, 1979, p. 406). Essa convicção guiou seu
próprio enterro. Ele rejeitou a veneração supersticiosa dos mortos e não
queria peregrinações ao seu túmulo. Ele não queria deixar seguidores, mas
cristãos. Mas é em sua obra magna “As
Institutas da Religião” que encontraremos seu melhor epitáfio:
“. . . podemos
passar pacientemente por esta vida em aflições, fome, frio, desprezo, censuras
e outras circunstâncias desagradáveis, contentes com esta única garantia de que
nosso Rei nunca nos abandonará, mas dará o que precisamos, até que tenhamos
terminado nossa guerra, então seremos chamados ao triunfo” (Calvin, Institutes ,
II, 15, 4).
Em
2 de junho de 1564, todos os ministros e professores da academia e da Igreja de
Genebra se reuniram, e Beza falou da perda que a Igreja e a cidade haviam
experimentado. Beza depois colocou no papel suas memórias mais íntimas de
Calvino, suas qualidades como teólogo e sua personalidade, muito diferente da
figura austera, sem humor e inacessível que seus adversários religiosos e
políticos divulgavam incansavelmente por toda a Europa, da qual é oportuno
oferecer aqui um pequeno extrato:
Embora
a natureza o tivesse formado para ser sério, ainda assim, nos assuntos comuns
da vida, não havia homem mais agradável de lidar. Ao suportar as enfermidades,
ele era paciente; ele nunca fez os irmãos mais fracos enrubescerem, ou os
aterrorizou com uma repreensão intemperante, ainda assim, ele nunca foi
conivente ou lisonjeou suas faltas. Ele era tão determinado e severo inimigo da
adulação, dissimulação e desonestidade (especialmente no que dizia respeito à
religião) quanto era um amante da verdade, simplicidade e franqueza. Ele era
naturalmente de um temperamento forte, e isso havia sido aumentado pela vida
árdua que levava. Mas o Espírito do Senhor o ensinou tanto a comandar sua ira
que nenhuma palavra foi ouvida procedendo dele como um homem impróprio (CR
XLIX, cols. 169-70).
O
grande legado de Calvino não é o “calvinismo”, mas seu exemplo de um crente
submisso a Deus em toda a sua majestade e constrangido a viver e morrer para
sua glória. Tanto em sua vida diária quanto em seus muitos escritos nos revelam
um homem prostrado diante de Deus, sujeito à sua Palavra, decidido a conhecer e
fazer a sua vontade, não importando o custo pessoal. O maior tributo que se
pode prestar ao homem Calvino é cultivar a mesma disposição e atitude para com Deus
e a Sua Palavra.
João Calvino andou
com Deus e Deus o tomou para si.
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[1]Um
homem chamado Denis Raguenier começou a escrever em sua taquigrafia particular,
mas logo foi contratado como secretário para registrar e transcrever cada
sermão, que Calvino em vida não teve tempo de editá-las.
[2] Embora
fosse frequentemente afirmado por seus inimigos que Calvino havia se tornado um
homem rico por meio de seu ministério, ele regularmente repudiava a acusação e seu
testamento provava sua falta de recursos, pois ele tinha no momento de sua
morte uma reserva financeira de Ele tinha apenas 225 coroas, não chegando a
dois mil dólares nos dias atuais.
[3]
Fora Farel que insistiu que Calvino se juntasse a ele na obra de reforma da igreja
em Genebra em 1538 e trouxe Calvino para o ministério oficial.
[4] O
Consistório de Genebra é o Concílio da Igreja Protestante de Genebra,
semelhante a um Sínodo em outras igrejas reformadas. O Consistório foi
organizado por João Calvino ao retornar a Genebra em 1541, a fim de integrar a
vida cívica e a igreja.
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