A grande maioria dos
missionários protestantes que atuaram no Brasil veio dos Estados Unidos da
América, país preponderantemente protestante. Quais as características da
igreja americana no século XIX, especialmente na segunda metade?
v
A separação de igreja e estado convivia com uma religião civil. A própria diversidade
confessional nas treze colônias fez com que estas, ao se confederaram após a
Revolução (1775-83), se recusassem a estabelecer uma igreja oficial. De fato,
a primeira emenda à Constituição reza: “O Congresso não fará nenhuma lei com
referência a um estabelecimento de religião nem proibindo seu livre
exercício." Esta separação legal, porém, não excluiu o
“estabelecimento” de uma religião civil, cujas evidências são numerosas: o lema
In God we trust (Confiamos em Deus) na moeda; o capelão do Senado
Federal, que diariamente dirige orações ao Deus dos cristãos, quando o Senado
se encontra reunido; os capelães das forças armadas, que são os seus oficiais e
por elas são sustentados; os templos e outras propriedades religiosas isentos
de impostos, e assim por diante.
Mais importante ainda
é o fato do que o estabelecimento civil
se estriba na autoimagem religiosa
do povo americano. Como Deus, por Moisés, libertou os israelitas da escravidão
no Egito, pela travessia maravilhosa do Mar Vermelho, os puritanos se
libertaram da opressão dos soberanos ingleses Tiago I e Carlos I, atravessando
o Atlântico no pequeno navio Mayflower. Deus estabelecera seu pacto com o povo liberto, no Sinai; paralelamente, os puritanos, antes de
pôr os pés em terra seca na América, firmaram o Mayflower Compact.
Explicitaram que haviam encetado sua viagem de colonização “para a glória de
Deus, avanço da fé cristã e honra do nosso rei e país... solene o
mutuamente, na presença de Deus, e cada um na presença dos demais, compactuamos
e nos combinamos em um corpo político civil.” Finalmente, como Josué havia
conquistado a terra da promissão, os americanos viam como seu “destino
manifesto” conquistar o continente de Oceano a Oceano, espalhando os
benefícios de uma civilização republicana e protestante por toda a parte.
Assim, os americanos do norte observaram, jubilosos, o início do processo da
libertação da América Latina, com a revolução liderada por José San Martin, no
Sul, e por Simón Bolívar, no Norte, que resultou na criação de repúblicas em
lugar das velhas colônias espanholas. Ficaram menos entusiasmados com a
independência do Brasil, pois lhes parecia apenas “meia-revolução” porque o
país permanecia império e não república.
Logo que possível, após o
processo da libertação, começaram a chegar os primeiros missionários
norte-americanos à América Latina. Não apenas trouxeram, como parte da bagagem
cultural, a religião civil, mas esta forneceu uma parcela considerável da
motivação missionária, a de fazer com que os menos afortunados compartilhassem
dos benefícios da civilização protestante-bíblica-americana.
v A estrutura denominacional
da Igreja Americana. É pressuposição
do presente livro
que a célebre tipologia de Ernst Troeltsch [1] de “igreja” e “seita” muito pouco ajuda a compreender a estrutura eclesiástica norte-americana, a
qual era (e é) essencialmente denominacional. Os estudiosos da religião norte-americana, ao analisarem sua estrutura, detectaram diversas
características essenciais que mencionamos a seguir. Robert Baird
detectou, nos idos de 1844, o principio do voluntarismo. Este, sugeriu Baird, despertava nos norte
americanos “energia”, autoconfiança e esforço na causa da religião.”11 Este
princípio, mais do que adequado ao desestabelecimento da Igreja na
América (após a Revolução) e à rápida expansão do país, tornou evidente o gênio da livre empresa do povo
anglo-saxônico e da religião americana, e ainda da disposição dos
americanos para fazer funciona a liberdade religiosa em prol do Reino de Deus.
v A
denominação também se caracteriza por propósito ou intenção. Sidney
E. Mead define a
denominação como uma associação voluntária de indivíduos com sentimentos e
pensamentos em comum, unidos na base de crenças comuns para o propósito de
alcançar objetivos tangíveis e definidos. Um dos objetivos primários é a
propagação do seu ponto de vista. Frequentemente, a denominação
via o seu propósito, a razão da própria existência, como divino. Por exemplo,
na conferência constituinte da Igreja Metodista Episcopal (1784), a denominação
declarou entender que Deus levantara os
metodistas para “reformar o continente, e espalhar a santidade bíblica por
estas terras.”
v Em terceiro lugar, no entender de Winthrop Hudson, a denominação
pretendia ser unitiva ou ecumênica, concepções diametralmente opostas à de
seita.
A palavra “denominação” sugere que o grupo referido é apenas
membro de um grupo maior, chamado ou denominado por um nome
particular. A afirmação básica da teoria denominacional da igreja é que a igreja verdadeira não deve ser
identificada em nenhum senso exclusivo com qualquer instituição eclesiástica
particular... Nenhuma denominação afirma representar toda a igreja de Cristo.
Nenhuma denominação afirma que todas as outras igrejas são falsas... Nenhuma denominação
insiste que a totalidade da sociedade e igreja deve submeter-se aos seus
regulamentos eclesiásticos. Assim, a denominação indicava a unidade subjacente
à desunião observável (a existência das próprias denominações), enquanto, pelo
princípio voluntário, repudiava a união exterior imposta por meio de coerção.
Aliás, ela reconhecia que, por causa da fragilidade humana, nenhuma instituição
humana poderia refletir perfeitamente a essencial unidade da verdadeira Igreja
de Cristo. “O denominacionalismo era testemunha da verdadeira igreja por
indicar, além das divisões das estruturas humanas da igreja, a unidade
compartilhada por todas.”
v Em quarto
lugar, a denominação era um meio para um fim: “A denominação era
instrumental à cristianização da sociedade
— à cristianização da nova República e também do mundo.” Não raro, o serviço da
missão comum se expressava em esforço comum como, por exemplo, no “império
benevolente” — a vasta rede de organizações voluntárias como as Sociedades
Bíblicas, as de tratados [outras literaturas evangelísticas], as de reforma social
(sociedades contra o duelo, contra a escravidão, contra a profanação do
domingo, etc.) e mesmo sociedades missionárias adenominacionais. Outras vezes,
consoante a própria sociedade norte-americana, surgiram competições entre as denominações.
Após um sucinto resumo dos pontos acima mencionados, Richey
acrescenta: “A denominação era então uma estrutura missionária e por
intenção nacional nas aspirações.” O aspecto missionário, que Richey
entendeu ser inato no sentido da denominação, não se esgotou, é claro, na
América do Norte, pois as principais confissões enviaram missões ao
estrangeiro, muitas das quais se estabeleceram no Brasil
Não ofereceram nenhum produto rotulado “denominacionalismo" e nem
“cristianismo norte-americano,” mas vieram como emissárias da Igreja
Presbiteriana, Metodista, Batista ou outra denominação, e trazendo a bagagem
acima descrita. Seu propósito central era levar outras a compartilharem os
benefícios da Bíblia, da reforma e da civilização cristã; mas não puderam
esquecer-se das ênfases peculiares e, como entendiam, das vantagens que a sua
denominação particular oferecia.
O alvo comum
propiciou larga faixa de cooperação, da qual segue-se um exemplo. Os primeiros dois missionários da Igreja Protestante
Episcopal no Brasil foram James Watson Morris e Lucien Leu Kinsolving, este
posteriormente bispo no Brasil. 1) Os dois foram morar na residência do
Rev. Benedito Ferraz, ministro presbiteriano, em Cruzeiro, província de São
Paulo, para ali aprender o português. 2) Quando se julgaram aptos para
comunicar o evangelho aos brasileiros na sua própria língua, escolheram o Rio
Grande do Sul, propositadamente buscando um campo pouco “ocupado” por outras
denominações que trabalhavam no meio brasileiro. 3) Descobriram que
mesmo nessa Província havia uma pequena congregação presbiteriana, na cidade do
Rio Grande. O pastor desta, o ministro presbiteriano Emanuel Vanorden, resolveu
passar sua congregação inteira, de trinta membros, aos episcopais! Claro que
ilustrações contrárias não faltam, como o caso do metodista Justus Nelson, em
Belém do Pará, que, irritado com o monopólio calvinista na hinologia,
representado por Salmos e Hinos, resolveu beneficiar os
brasileiros com os hinos arminianos dos irmãos Wesley.
Copilado:
História Documental do Protestantismo no Brasil [REILY,
Duncan Alexander].
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Reflexão Bíblica
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Teológico do Protestantismo no Brasil e a Fundação da ASTE
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[1] Ernst Troeltsch foi um
escritor e teólogo alemão que ao lado de Max Weber elaborou alguns conceitos
relacionados à religião.
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