Este é o ano em que se comemoram os 500 anos da Reforma Protestante
ocorrido hoje no longínquo século XVI. E de fato poucos movimentos religiosos
cristão tiveram tamanha relevância e repercussão como este. A história desta
Reforma não se relaciona apenas com a Igreja Cristã, mas implica em toda
Sociedade, não apenas daqueles dias, mas ainda hoje se faz sentir seus efeitos.
Mas como todo e qualquer evento
histórico eles são decorrentes de eventos anteriores. Nesse e alguns outros
artigos vamos resgatar esse contexto histórico-religioso que certamente
proporcionaram um melhor entendimento das razões que culminaram com a Reforma
Protestante que tão rapidamente se espalhou por toda Europa e demais países
adjacentes e abalando os poderes da Igreja Católica Romana e do próprio Império
que lhe dava sustentação.
Temos plena consciência de que a
Reforma Protestante esta interligada a toda sorte de áreas e setores que compõe
a Sociedade como a politica (nacionalismo), a economia (novos mercados/Índia,
África e América), as artes e letras (renascentismo e humanismo) e as mudanças
de classes sociais (ascensão burguesa) que estão ocorrendo conjuntamente às
questões religiosas. Todavia, como a Reforma ocorre primariamente dentro da
Igreja Cristã (Romana) é necessário entendermos o que estava acontecendo e
quais foram os motivos teológico-religiosos que impulsionaram esse movimento
tão viral e abrangente em suas ações e realizações que afetaram e ainda afetam
todo cristianismo mundial.
A Penitência e a Absolvição nas mãos do Clero
Os cristãos dos primeiros séculos
receberam uma mensagem muito simples e direta, utilizando as palavras do
apóstolo Paulo ao carcereiro da cidade de Felipos que estava prestes a tirar
sua própria vida e que interrompido pelo apóstolo volta-se para ele e pergunta:
o que
preciso fazer para ser salvo? E Paulo não tem nenhuma dúvida ao
responder: creia no Senhor Jesus e será salvo! Mas com o
passar dos séculos tudo isso se modificou e a salvação passou a ser um processo
longo, árduo e muito caro.
Se antes a salvação era uma questão
direta do pecador arrependido com Jesus Cristo, agora antes de chegar a Jesus
esse peregrino terá que enfrentar a cara burocracia eclesiástica que foi
desenvolvida nos antros da eclesiologia católica romana. Agora já não era
suficiente a simplicidade da fé em Jesus para garantir a salvação, é preciso
somar a essa fé as boas obras meritórias e a plena submissão às autoridades
eclesiásticas, cujo caráter era muito mais do que apenas duvidoso, uma vez que
estas autoridades eram nomeadas pelo critério geopolítico e econômico, em
detrimento das qualificações espirituais e religiosas. Evidentemente que a
salvação pela fé foi mantida nos dogmas eclesiásticos a custo de muitos e
intensos e até sanguinários Concílios, todavia, na prática se construiu um
sistema de perdão de pecados cujo percurso era ampliado na mesma proporção em
que aumentava os interesses inescrupulosos dos detentores do poder eclesiástico
romano.
Ainda no Concílio
de Trento (325) a penitência foi
classificada como sendo a segunda tábua sobre a qual o náufrago (pecador)
encontra salvação, assim como o batismo é
a primeira tábua. Ainda nesse Concílio o sacerdote católico romano passou a ser
considerado indispensável na intermediação entre o pecador e Deus, estando revestido
do poder de pronunciar a absolvição.
Avançando a ampulheta do tempo, no
raiar do século XII a singela fé do carcereiro de Filipos não lhe daria mais do
que uma senha na fila das inumeráveis penitências que deveria realizar antes de
adquirir o perdão de seus pecados: deve andar descalço, utilizar trapos em vez de roupas
normais, deixar sua casa e sua terra natal e peregrinar por terras distantes,
renunciar ao mundo e abraçar a vida monástica. Um pouco antes, no século
XI havia se tornado uma prática corriqueira os açoites
voluntários (autoflagelo), e na Itália pessoas de toda sorte de classes
sociais, homens e mulheres, velhos e crianças fazem procissões às centenas e
até milhares, entrando nas vilas e cidades, cobertos apenas por uma túnica, em
pleno inverno europeu. Nas ruas ouvem-se os gritos e gemidos pelos açoites auto
infligido.
Nascem as Indulgências
Diante de tanto sofrimento e miséria
cria-se um caminho alternativo menos dolorido e mais cômodo – nasce a famigerada indulgência (“indulgência”,
tirada do latim, significa
perdão ou quitação
de uma dívida). O criador desta proposta coube a João Faster,
Arcebispo de Constantinopla, coincidentemente a capital do Império. Seu
discurso alcança os ouvidos dos milhares que transitam pelos descaminhos da autoflagelação
e da desesperança – nós (clérigos) haveremos de fazer as penitencias por vocês
de maneira que vocês não precisaram carregar mais seus fardos insuportáveis –
mediante uma pequena contribuição de quem pode, mais e de
quem não pode, menos. Vozes corajosas se levantaram contra essa aberração
mercantilista, mas foram caladas e sufocadas.
Logo os papas de plantão descobriram
os benefícios próprios advindos da demanda dessas indulgências. Para encher os
cofres insaciáveis de uma Igreja crescentemente opulenta nada melhor do que um
recurso fácil sob o disfarce de uma contribuição voluntária (qualquer
semelhança com o evangelicalismo brasileiro atual não é mera coincidência).
É preciso fundamentar e torna-la indispensável para que os recursos possam
fluir continua e abundantemente. Os teólogos de plantão trabalham arduamente
nesse embasamento e Alexandre de Hales[1] (Doctor
Irrefragabilis e Theologorum Monarcha) e St. Cher no século XIV produz uma
fundamentação para doutrina da indulgência. Para eles as obras e as ações dos santos (lideres cristãos que morreram em martírio) e
mesmo de Cristo deixaram um apreciável tesouro de bons atos não usados
inteiramente por eles. Havia, pois, um saldo de santidade que teria formado um capital
celestial, um tesouro dos méritos que estaria disponível aos interesses do
Santo Papa. Como único detentor da chave, o papa podia recorrer ao Tesouro dos
Santos armazenado no céu para poder distribuir o seu conteúdo entre os crentes.
Uma bula papal emitida por Clemente VII declara as indulgências um artigo de fé. Para ele o sacrifício de
Cristo e os sacrifícios dos mártires deram à Igreja um tesouro que perdura à
própria eternidade. A custódia e administração desse tesouro foram confiadas ao
Vigário de Cristo na terra, ou seja, ele mesmo e seus sucessores papais. Quem
naquela época ousaria atacar uma origem tão sagrada? John
Wyclif, classificado entre os
denominados pré-reformadores, que estava alcançando a maturidade quando
Clemente assumiu a cadeira papal, pregou e escreveu “da
indulgente fantasia do tesouro espiritual do céu, de que cada papa se torna
despenseiro absoluto, coisa sonhada e sem fundamento”.
Mas a indústria das indulgências
evolui rapidamente. Surgem sempre novas indulgências para cada ocasião.
Dependendo do pecado oferecem-se indulgências para longo prazo que podem chegar
a dez, vinte e até mais de cem anos. E o que parecia ser um caminho mais suave
vai se tornando um caminho cada vez mais ardiloso e nefasto para o pobre (ou
rico) pecador.
Purgatório
Mas como cobrar uma divida de longo
prazo se a vida é tão breve (as pestes e toda sorte de malefícios tornava a
vida humana limitada). Chegando a morte o pecador ficará livre de sua dívida e
entrara feliz na eternidade? Claro que não! Enquanto o pecador estiver em
débito com a Igreja ele está impossibilitado de entrar no céu. Mas onde ele vai
ficar após a morte na terra? No Purgatório é claro!
Antes mesmo de Agostinho, século IV, houve diversos teólogos que
mencionavam um estado intermediário entre o céu e o inferno, onde as almas
poderiam ser purificadas para adentrarem permanentemente no céu.[2]
Mas até Agostinho era tratado ou compreendido como um processo de salvação
espiritual, sem ingerência da Igreja. Mas agora, nos séculos XII e XIII a ideia
de que o purgatório é um “lugar à parte” toma forma.
No século XIII o Purgatório triunfou na teologia e no plano
dogmático. A sua existência é certa, tornou-se uma verdade de fé da Igreja. Sob
uma forma ou sob outra, num sentido muito concreto ou mais ou menos abstrato, é
um lugar. Oficializa-se a sua formulação. Em dar sentido pleno a uma prática
cristã muito antiga: os sufrágios pelos mortos. (LE GOFF, 1995, p.345).
O Papa encontra no Purgatório a resposta para a questão da indulgência não
recebida. Enquanto no Purgatório o pecador poderia mediante as indulgências
alcançar o crédito necessário para ter seus pecados perdoados e finalmente
descansar na glória celestial. Apavorados cotidianamente pelos pregadores de
plantão a população torna-se refém dos tormentos futuros. Algumas pinturas
daquele período revelam os horrores com os quais os fieis eram aterrorizados
pela Igreja e seus clérigos terroristas. Quem permitiria que seus entes
queridos pudessem sofrer tamanho sofrimento e ainda correr o risco de ser
lançado no inferno? As moedas enchiam os gazofilácios eclesiásticos que
remetidos a Roma erigiam Catedrais, financiavam toda sorte de luxo e riqueza
aos seus bispos e sustentavam seus exércitos e todo esse dinheiro era
compartilhado com os reis e imperadores de ocasião.
Com João XXII surgem as chamadas indulgências
fiscais onde os pecados
mais degradantes são catalogados e lhes conferido valores de indulgências:
incesto, assassinato, infanticídio, adultério, perjúrio, roubo – cada pecado
com seu devido valor correspondente.
O papa Bonifácio VIII, o mais ousado e ambicioso depois de Gregório
VII, foi mais criativo que seus antecessores. Ele publicou, em 1300, uma bula
papal pela qual ele anunciava que nos próximos cem anos, todos aqueles que
visitassem (fizessem peregrinação) a cidade de Roma, obteriam uma indulgência
plenária. O sucesso foi imediato e multidões advindas de todas as adjacências da
Itália, França, Espanha, Alemanha, Hungria e de todos os demais lugares onde a
igreja se fazia presente invadiram a cidade romana – em um único mês contam-se duzentos
mil peregrinos. Todos esses peregrinos traziam suas ofertas e o Papa e sua
opulenta máquina eclesiástica viram seus tesouros se encherem a transbordar. Mas
a ganância humana não tem limites e logo se diminuiu o tempo para cada jubileu
de cinquenta, depois de trinta e três, e, finalmente, a vinte e cinco anos.
Mas é preciso destacar que muitos continuaram a honrar a Igreja da
idade média. Por causa desses homens e mulheres que se mantiveram aguerridos
aos princípios basilares do cristianismo a Igreja permaneceu sendo Igreja,
apesar de todas as aberrações e desvios de suas lideranças eclesiásticas. A
Igreja cristã continuou sendo o lugar de acolhimento para os desvalidos e abençoador
para os publicanos e pecadores que careciam do perdão de seus pecados. Grandes
servos de Jesus Cristo resplandeceram como luzeiros no meio das intensas trevas
que os circundavam e sal de uma sociedade permanentemente depravada (alguma
diferença dos dias atuais?). Nas vilas mais obscuras, nos conventos e mosteiros
encontram-se aqueles que anseiam por uma Igreja livre e bíblica. Nas ainda
incipientes universidades as penas, tinta e papel começam a produzir uma
crescente onda de protestos cada vez mais veementes.
Ainda que se possa confundir o papado com a Igreja, são coisas
distintas assim como a água e o óleo que se não misturam. Os desmandos e
corrupção dos clérigos romanos não podem ser confundidos com a vivacidade da
Igreja Cristã que permaneceu e permanece ainda hoje, apesar de todas as formas
de deturpações produzidas pelas ortodoxias humanas. A Reforma do século XVI visava os desmandos eclesiásticos,
mas acabou atingindo a própria Igreja que haverá de se fragmentar ao longo dos
séculos posteriores. E se faz justo dizer que apesar dos desmandos papais,
muito dentre esses foram instrumentos da providência divina para preservação da
Igreja mediante o poder e ambição dos reis e imperadores que tentaram
destruí-la ou dominá-la ao longo da história.
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em
Ciências da Religião.
Universidade
Presbiteriana Mackenzie
Outro Blog
Reflexão Bíblica
Artigos Relacionados
Glossário da Patrística
(Patrologia)
Síntese da História da Igreja
Cristã - 2º Século
História Igreja Cristã - Contexto
Inicial
Atos o Primeiro Documento
Histórico da Igreja Cristã
História da Igreja Cristã -
Imperador Constantino: Herói ou Vilão
Referências Bibliográficas
ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente: da Idade
Média aos nossos dias. São Paulo: Ediouro, 2001.
BERKHOF, L. História
das doutrinas cristãs. Tradudotores João Marques Bentes e Gordon
Chown. São Paulo: PES, 1992.
GONZALEZ, Justo
L. Historia del pensamiento cristiano. Buenos Aires:
Methopress, 1965 [v. 1]; La Aurora, 1972 [v. 2]. 2 v. (Biblioteca de Estudios
Teologicos).
HÄGGLUND,
Bengt. História da teologia. Trad. de Mário L. Rehfeldt e
Gládis Knak Rehfeldt. Porto Alegre: Concórdia, 1981.
HUGHES, P. The
Church in crisis; a history of the twenty great councils. Londres:
Burns & Oates, 1960.
LAUWERS, Michel.
Morte e Mortos. In: Dicionário temático
do ocidente medieval. LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean Claude (orgs). 2v.São
Paulo: EDUSC, 2002,p.243-366.
LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. São Paulo:
Estampa 1995
________________. A bolsa e a vida: economia e religião na
Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 2004.
LOHSE,
Bernhard. A fé cristã através dos tempos. Trad. de Sílvio
Schneider, rev. de Fausto de Borba Borges. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1981.
MATOS, Alderi Souza
de. A caminhada cristã na história – a Bíblia, a igreja e a sociedade
ontem e hoje. Viçosa, MG: Ultimato, 2005.
TILLICH, Paul. História
do pensamento cristão. Trad. de Jaci C. Maraschin. São Paulo: ASTE,
1988.
THE ENCYCLOPEDIA of
Christianity. Grand Rapids:
Eerdmans, 1999.
[1] Foi um filósofo e teólogo inglês, notável pensador na história
da escolástica e da Escola franciscana.
[2] Desde os grandes Padres da Igreja do
século IV, Ambrósio, Jerônimo e Agostinho – fazem menção que as almas de certos
pecadores poderiam talvez vir a ser salva durante um determinado período de
provação (LE GOFF, 1995,p.17).
Nenhum comentário:
Postar um comentário