Quando estudamos o Antigo Testamento encontramos a ocasião em que Deus ordena a Moisés que estabeleça, estrategicamente, no território israelita, Cidades de Refúgio (Números 35 e Josué 20). Qual é o propósito dessas cidades? Ao examinarmos os referidos textos, percebemos uma profunda preocupação de Deus com a justiça e com a vida humana.
Essas cidades eram lugares preparados para acolher aqueles que, sem intenção, haviam tirado a vida de alguém. Ali, o acusado encontrava proteção contra a vingança prematura (na fervura das emoções) e recebia a oportunidade de ser julgado com o devido equilíbrio e discernimento. Deste modo, Deus estabelece parâmetros claros e definidos de que a justiça não deve ser guiada apenas pela emoção ou pelo desejo de retribuição, mas pela verdade e pela misericórdia.
Quando examinamos os referidos textos, vamos apreendendo a profunda preocupação teológica e social que levou Deus a ordenar o estabelecimento dessas cidades como parte de sua pedagogia para Israel, preocupação que se manifesta nos aspectos descritos a seguir:
justiça restaurativa – elas
ofereciam a oportunidade para aquele que involuntariamente causasse a morte de
outrem. Uma vez dentro de uma destas Cidades Refúgios a pessoa estava segura e
poderia aguardar em segurança um julgamento justo. Isto evitava que se
estabelece um círculo vicioso de vingança, bem como um julgamento imparcial e
se pudesse discernir corretamente entre um crime doloso e um acidental, para
que se aplicasse uma sentença correta.
proteção da vida – o princípio
da vida é considerada sagrada, mesmo para aqueles que acidentalmente tivessem
tirado a vida de um semelhante. O estabelecimento destas Cidades Refúgio era um reconhecimento de
que erros graves e até fatais estavam sujeitos a acontecerem, e a justiça deve
prevalecer, todavia, com equidade e discernimento e misericórdia. Um acidente
não premeditado grave ou mesmo fatal, não deveria ser tratado da mesma forma
que outro premeditado ou criminoso. Desta forma a cidade funcionava como um
espaço de contenção, onde o réu poderia viver sem o risco de sofrer retaliações
e até mesmo morte por parte da família que sofreu a terrível tragédia. Aqui
temos dois aspectos do caráter de Deus que se manifestam paralelamente: Deus não compactua com a violência premedita e/ou planejada, porém, também
não abandona o vulnerável, mesmo quando este causou um dano comprovado.
ordem comunitária, Deus conhece
a natureza humana decaída e portanto, preventivamente estabeleceu critérios
justos para abalizar o equilíbrio social e espiritual entre as doze tribos e/ou
as famílias. A responsabilidade de administração destas cidades eram dos
Levitas, que foram separados para administrarem a vida religiosa da comunidade israelita.
Era uma garantia de que a justiça seria aplicada com discernimento legal, moral
e espiritual, e não por interesses tribais ou familiares. As seis cidades
estavam distribuídas de forma equitativa, três ao leste e três ao oeste, de
maneira que todos tinham acesso a elas. E além deste aspecto, os caminhos de
acesso a elas deveriam serem mantidos limpos e sinalizados (segundo a tradição
rabínica), para que facilitasse ao máximo o acesso às referidas cidades. Desta
forma toda a comunidade era corresponsável pela aplicação e manutenção do
sistema judicial israelita, evitando confundir justiça com vingança.
Resumidamente o sistema estabelecido por Deus visava valorizar:
A dignidade humana, mesmo a uma pessoa que tenha
transgredido acidentalmente a Lei.
A equidade no julgamento, estabelecendo um espaço neutro
para defesa e discernimento do fato ocorrido.
O princípio do exercício da misericórdia como parte
integrante da justiça, evitando sentenças desproporcionais.
A Cidade de Genebra e o Acolhimento dos Refugiados Protestantes
É necessário um preambulo aqui. Não há intenção e creio que João
Calvino também não o tinha, de transforma em grau, gênero e número, a cidade de
Genebra em uma cópia exata das Cidades Refúgios do Antigo Testamento. A
longevidade temporal entre o contexto israelita e os dias dos reformadores não
poderia simplesmente serem desmerecido. O que vemos em Genebra são semelhanças
e a manutenção dos princípios estabelecidos por Deus, que permanecem
irrevogáveis. O que apenas realça a capacidade exegética excepcional de Calvino
que soube estabelecer esses princípios bíblicos dentro da realidade de Genebra
e dos sofrimentos indescritíveis que os reformados em toda a Europa estavam
enfrentando. Perseguidos à exaustão e mortos à revelia de qualquer critério de
justiça minimamente aceitáveis.
João Calvino foi provavelmente um dos refugiados mais famoso da era
da Reforma. Sua origem de nascimento é o norte da França. Ele necessitou fugir
furtivamente para não ser preso e provavelmente condenado por suas ações
panfletárias criticando o sistema religioso católico vigente, mais precisamente
a missa e a transubstanciação, em que se ensinava que o pão (hóstia) se transforma
em corpo de Cristo e o vinho em seu sangue. Sua fuga ocorreu provavelmente em
1534, em trânsito encontrou-se com o reformador Guilherme Farel, também de
origem francesa, que praticamente o coagiu a permanecer na cidade de Genebra,
que constrangido diante do veemente apelo aceitou ali permanecer, em 1541, e
comprovando que Farel estava correto, posteriormente veio a se constituir em um
dos maiores nomes da Reforma Protestante.
Assim, na medida em que se estabelece em Genebra e lhe foi delegada
a oportunidade de cooperar no estabelecimentos das diretrizes jurídicas e
políticas da cidade (deve dar urticária nos defensores ferrenhos da
equidistância), Calvino foi implementando um sistema espelhado com certeza nas
Cidades Refúgios estabelecidas por Deus para o equilíbrio da vida espiritual,
social, política e judiciária da nação de Israel.
Genebra Refúgio e Centro Estratégico da Reforma
Engana-se alguém pensar que Calvino queria simplesmente dar guarida
segura para os mais diversos segmentos de reformados. Seus objetivos estavam
muito além, o de fazer de Genebra um centro do saber teológico bíblico coerente
e pujante. Ao longo dos anos a cidade não apenas se fez em porto seguro para os
reformados de toda a Europa, mas também se constituiu no centro convergente de
formação teológica, organização política e articulação militar para o avanço do
protestantismo (mais urticárias).
Calvino percebeu muito cedo as dimensões que as reformas em Genebra
poderiam alcançar, ultrapassando as estreitas fronteiras regionais. Desde
então, concebeu uma reforma abrangente que, como de fato ocorreu, poderia ser
aplicada em qualquer lugar e tempo.
Creio que a ótica pessoal de um dos exilados ingleses, John Bale (1495–1563),
dramaturgo, pregador e polemista inglês, exilado durante o reinado católico de
Maria Tudor, nos permitirá visualizar o impacto do que estava acontecendo em
Genebra:
“Não é maravilhoso que espanhóis, italianos,
escoceses, ingleses, franceses, alemães, discordando em costumes, linguagem e
vestuário... unidos apenas pelo jugo de Cristo, vivam de forma tão amorosa e
amigável... como uma congregação espiritual e cristã?”.[1]
Abaixo menciono de forma extremamente sucinta alguns pontos
convergentes entre as Cidades Refúgio bíblica e as reforma implementadas em
Genebra nos dias de Calvino.
·
Proteção
contra perseguição injusta: A ideia de
refúgio contra represálias precipitadas, que está inserida no propósito das
Cidades Refúgio, visando preservar o acusado até avaliação comunitária e,
assim, inibir as vinganças e injustiças, pode ser claramente vista nas
normativas judiciais de Genebra. Calvino não elaborou o Conselho da Cidade, que já existia como
instância civil-política tradicional, mas exerceu influência incisiva na
formulação de suas leis e normativas. Por outro lado, foi o responsável direto
pela criação do Consistório, instituído pelas Ordenanças de 1541 e aprovado
pelo Conselho, estabelecendo uma instância eclesiástica inédita que passou a
atuar concomitantemente com o poder civil na consolidação da Reforma em
Genebra. Essa atuação dual explica por que Genebra não se tornou um refúgio
indiscriminado, mas desenvolveu um equilíbrio construtivo entre hospitalidade e
responsabilidade. Assim, a cidade consolidou-se como modelo internacional da
Reforma (Graeme Murdock, 2006) e, como conclui William G. Naphy (1994/2003), a
aplicação das Ordenanças Eclesiásticas e a atuação criteriosa do Consistório
foram decisivas para a coesão comunitária e para a consolidação da Reforma.
Desta
forma, os reformadores perseguidos encontravam um abrigo seguro onde podiam
viver, escrever, ensinar e organizar-se, enquanto seus respectivos processos
judiciais se esclareciam no plano político-religioso. O propósito nunca foi o
da impunidade, pois cada caso era revisado de maneira apurada pelas duas
instâncias, proporcionando tempo e estrutura para o discernimento, a defesa e a
reintegração daqueles que se revelavam inocentes.
· Administração por líderes religiosos: As Cidades de Refúgio foram confiada aos levitas no Antigo
Testamento, revelando a centralidade da liderança religiosa na preservação da
justiça e da ordem comunitária. De modo análogo, Genebra foi moldada por
teólogos como Calvino, de maneira que sua influência se estendeu para além da
esfera religiosas, estruturando Genebra com base em princípios bíblicos e
disciplina eclesiástica. Assim, a Reforma genebrina não se limitou às questões
eminentemente culticas, mas passou a configurar uma moldura de organização
social em que os líderes religiosos desempenhavam papel ativo na definição da
vida comunitária (Graeme Murdock (2006). Por sua vez, William G. Naphy
(1994/2003) faz um complemento demonstrando que a consolidação da Reforma em
Genebra somente alcançou seu êxito histórico em decorrência da vigência e
aplicação consistente das Ordenanças Eclesiásticas e à atuação firme do
Consistório, instância eclesiástica criada por Calvino para supervisionar a
disciplina moral e espiritual da igreja e da própria comunidade. Deste modo, a
cidade tornou-se um espaço em que a liderança religiosa, assemelhada a dos
levitas, assumiu responsabilidades administrativas e judiciais, garantindo que
o refúgio oferecido aos perseguidos fosse acompanhado de ordem e
responsabilidade comunitária.
· Acesso e acolhimento universal: As cidades de refúgio eram acessíveis a todos os israelitas;
Genebra abriu suas portas a refugiados protestantes perseguidos de diferentes
regiões — franceses, italianos, ingleses e espanhóis — e, ao fazê-lo, tornou-se
um verdadeiro centro internacional da Reforma. As falsas acusações contra
Calvino e suas ações em Genebra são dissuadidas e confrontadas pelo fato de que
a cidade recebia as mais diversas tradições reformadas e se transformava em um
espaço de circulação de ideias múltiplas. Calvino jamais buscou estabelecer uma
homogeneidade uniforme, mas viveu até seu último dia empenhado na elaboração de
uma teologia vivencial coerente com as Escrituras. Desta forma, o Consistório e
as Ordenanças Eclesiásticas tinham como premissa o esforço de integrar essa
diversidade de expressões religioso-políticas, mantendo a coesão comunitária
sem eliminar a pluralidade inicial.
Em síntese, a experiência de Genebra evidência claramente que
Calvino não foi um déspota teológico, mas um líder que buscou estruturar uma
comunidade fiel às Escrituras e capaz de acolher perseguidos sem perder a
ordem. A cooperação entre o Conselho da Cidade e o Consistório garantiu
hospitalidade acompanhada de responsabilidade, transformando Genebra em um
centro internacional da Reforma. Como destacam os autores citados no
transcorrer do texto (1994/2003), de
maneira que foi justamente essa junção entre disciplina e acolhimento que
consolidou a cidade como modelo de coesão comunitária e referência para o
movimento reformado.
Utilização livre desde que citando a fonteGuedes, Ivan PereiraMestre em Ciências da Religião.Universidade Presbiteriana Mackenzieme.ivanguedes@gmail.comOutro BlogReflexão Bíblica
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Referências Bibliográficas (citadas)
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The Intellectual, Political and Cultural World of Europe’s Reformed Churches,
c. 1540–1620. London: Palgrave Macmillan, 2006.
MURDOCK, Graeme. Beyond
Calvin: The Intellectual, Political and Cultural World of Europe’s Reformed
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NAPHY, William G. Calvin and
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University Press, 1994.
________________ Calvin and the Consolidation of the Genevan
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SCHAFF, Philip. History of the Christian Church.
Vol. VIII: Modern Christianity – The Swiss Reformation. New York: Charles
Scribner’s Sons, 1910.
Referências Bibliográficas
BENEDICT, Philip. Christ’s
Churches Purely Reformed: A Social History of Calvinism. New Haven; London:
Yale University Press, 2002. [Capítulo: “Geneva as Model” (sobre Genebra como
modelo da Reforma).
BÈZE, Théodore de. Histoire
ecclésiastique des Églises réformées au royaume de France. 1ª ed. 1580.
Édition moderne en 3 vols. Genève: Droz, 1883–1889 (sucessor de Calvino em
Genebra).
McNEILL, John T. The History
and Character of Calvinism. Oxford: Oxford University Press, 1954. [Capítulos
9–12 tratam especificamente da experiência de Genebra e da consolidação da
Reforma].
NAPHY, William G. Calvin and the
Consolidation of the Genevan Reformation. 2. ed.
Louisville: Westminster John Knox Press, 2003.
ROBERT M. Kingdon. KINGDON, Robert
M. Geneva
and the Consolidation of the French Protestant Movement, 1564–1572. Madison:
University of Wisconsin Press, 1967.
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[1] Citado
em Graeme Murdock, Beyond - Calvin: The Intellectual, Political and Cultural
World of Europe’s Reformed Churches, c. 1540–1620 (Londres: Palgrave Macmillan,
2006), p. 10.

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