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quarta-feira, 3 de setembro de 2014

A Inomogeneidade da Reforma Religiosa do Século Dezesseis

Introdução

            A inomogeneidade é um termo da física para descrever um corpo e/ou sistema que   não tem as mesmas propriedades em todos os pontos. Creio que esse termo descreve bem a Igreja Cristã, pois apesar de ser uma “Igreja” com um “Evangelho”, desde suas origens sempre teve que lidar com uma multiplicidade de opiniões, muitas delas divergentes e contraditórias. Uma atitude simplicista não pode mais ser aceita em relação à história do cristianismo, estabelecendo formas estáticas e homogeneas. É no mínimo ignorância ou falseamento da verdade moldurar a Igreja Primitiva como um corpo homogêneo e perfeito, que na medida em que o tempo perpassa vai se degenerando até chegar ao ponto de uma quase total corrupção nos dias de Constantino, para então inrromper no século 16 através de um movimento hemogenicamente perfeito.
            Por outro lado não é aceitável o pressuposto de que a Igreja Cristã não possuiu uma continuidade histórica. Desde sua formação inicial, apesar de suas convulsões eclesiastica e doutrinária, é possível identificar em grau maior ou menor sua vitalidade; é possível vislumbrar no transcurso dos séculos abundantes expressões de vivificação, bem como de declínios em seus princípios basilares; podemos apreciar os multiplos movimentos reformistas que foram calados no transcorrer dos séculos cinco ao quinze, mas que eclodiram de forma iniqualável no século dezesseis, com todas as suas implicações e desdobramentos, que como ondas sismicas abalaram e trasnformaram todas as esferas da Sociedade. Como tão bem resume Amaral:
O que não podemos fazer é adotar o que a história não justifique; nem conceder que os melhores tempos da Igreja tenham sido imaculados, ou que os seus piores tempos nunca deixassem de registrar abençoadas expressões de vida cristã (1962, p. 19).

Movimentos Preparatórios

            Podemos evocar tranquilamente os testemunhos históricos sobre a vocação da Igreja Cristã para se regenerar continuamente através de seus movimentos e convulções, muitas vezes aceitos ou rejeitados, que perseguiram inconteste a harmonização entre os conceitos e práticas da Igreja com seus fundamentos emanados das páginas evangélicas, que sempre proporcionaram a revitalização dela, em dissonância com as lideranças amorfas e retrógadas, cujos únicos interesses eram somente multiplicar seus privilégios à sombra de despotismos insaciáveis dos detentores dos demais poderes civis.
            Em movimentos convulsionais que se multiplicavam exponencialmente a Igreja Romana vai sendo exposta à opinião pública. São estes movimentos que haverão de produzir a atmosfera propicia para que venha a ocorrer uma Reforma Religiosa ampla, na busca de harmonizar-se a letra e o espírito do Evangelho.
            Esta patente que nestes movimentos reformistas sempre se abrigaram diversas vertentes evangélicas, mas mesmo incorrendo em falhas e equívocos, persistentemente buscavam resgatar os princípios originais da Igreja apostólica neotestamentária. Milhares de cristãos anônimos e esporádicos vultos maiores foram instrumentos para manter-se a chama da fé cristã acesa mesmo nos períodos mais escuros da Igreja. Eram homens e mulheres que acercados pela indiferença e a corrupção, ansiavam por vida e fidelidade. A grande maioria foi cruelmente esmagada pelos poderes constituídos e quase nada delas sabemos, mas restaram preciosas informações sobre alguns destes luminares da grande candeia dos fiéis e sinceros que amavam Jesus e a Igreja.
            A grande Reforma Religiosa do século dezesseis é o rio maior que recebe em seu trajeto todos estes afluentes. Esta Reforma jamais teria força suficiente para realizar tudo quanto foi feito, sem a força advinda de cada cristão e de cada movimento que a antecedeu, incluindo aqueles dos quais nada ficamos sabendo. Desde o século doze, quando o sistema religioso estava totalmente enrijecido, multiplicam-se movimentos e vultos que clamavam por mudanças. Independentemente dos equívocos, alguns até mesmo absurdos, que sugiram neste momento histórico, o desejo de renovação é o fator unificador. São representativos da consciência religiosa e do anseio de uma espiritualidade genuína.

 O Movimento Monástico

            Este movimento continha um elemento evangelicamente errático, pois propunha uma alienação do cristão da Sociedade, na busca de uma espiritualidade com melhor qualidade. Jesus jamais se afastou do ser humano e se isolou da sociedade humana[1]. Contudo, o Movimento Monástico tornou-se um reserva da piedade cristã e manteve a Igreja ligada aos aparelhos. Muitos utilizam lentes de aumento nas críticas aos monges e monastérios, que certamente no transcorrer do tempo acabaram realmente se afastando cada vez mais de seus pressupostos iniciais, todavia, ainda assim, eles representaram um esforço em relação a situação caótica e corrupta das instituições eclesiásticas do período. Se no século quinto o movimento já é algo significativo, nos séculos doze e treze torna-se de significância e relevância que não pode ser ignorado. Só para lembrar, Martinho Lutero é um monge e todas as suas experiências religiosas, positivas e negativas, ele as teve durante seu período de reclusão. São ao derredor das instituições monásticas que se multiplicam os movimentos livres de leigos que buscam do seu jeito a piedade e a pureza.
            São estes movimentos periféricos, já nos fins do século doze, que expõem publicamente os anseios da necessidade de se corrigir os excessos eclesiásticos e resgatar a espiritualidade que se extinguia rapidamente. Impossível não citar o movimento liderado por Pedro Valdo, em Lião, que em momento posterior se instalam nos vales do Piemonte, na França, já assumidos como Valdenses e que permanecem ativos até o século dezesseis, e que após a Reforma uniram-se a uma Igreja formal. Como não se lembrar dos menos afortunados Albigenses, ao sul da mesma França, que manifestando um espírito evangélico renovador, com uma dose de extravagâncias, mas que foram de forma inclementes eliminados pela Igreja Romana.
            A partir do século doze, navegaram por essas correntezas da independência espiritual e ferrenha oposição aos grassos erros eclesiásticos e teológicos, personagens da envergadura de um Guilherme de Occam, que ousadamente levanta a bandeira contra o despotismo hierárquico, e proclama sua mensagem evangélica com a coragem e intrepidez dos profetas veterotestamentarios diante de seus reis corruptos e dos apóstolos diante das autoridades judaicas e dos primeiros cristãos diante do todo poderoso Imperador Romano. Tal mensagem, mesmo depois de calado seu pregador, manteve-se ecoando e alcança o século imediato, ressurgindo na vida e proclamação de Wyclif, notável exegeta dos textos bíblicos, tradutor deles para a língua vernácula inglesa, defensor intransigente do livre exame por parte dos leigos. Seus esforços encontram ecos na distante Boêmia, onde o professor da Universidade em Praga, João Huss, lança-se de corpo e alma nessa correnteza bravia, que acaba por leva-lo ao martírio pelos algozes eclesiásticos, o mesmo destino de seu continuador e companheiro, Jerônimo de Praga. Em Florença, no século quinze, realça a figura do destemido pregador Savonarola, ainda que sua vertente estivesse mais na reforma de costumes, e que atraiu igualmente para si a ira daqueles que não desejavam mudança alguma e paga o preço de suas convicções e intrepidez com a própria vida.
            Por trás destas iniciativas individuais movia-se invisivelmente um desejo crescente e cada vez mais incontido de mudanças e transformações na vida religiosa e eclesiastica. Outro movimento que expressa esses anseios incontidos pode ser claramente visto no movimento dos místicos. Personagens da envergadura de um Eckhart e Tauler, nos séculos XIII e XIV respectivamente, saturaram ainda mais a atmosfera reformista e foi fundamental como preambulo da futura Reforma que já se divisava no século XVI.
            Portanto, o século XV inicia com o ar totalmente impregnado pelos anseios irrepremiveis de renovação. Diante de tantas pressões internas e externas a Igreja reage com a convocação dos chamados concílios reformadores. Como foram reuniões conciliares oficiais, ainda que houvesse um esboço de disposição em operacionar as mudanças necessárias, seus resultados foram totalmente minimizados pelos interesses maiores da manutenção da ordem predominante. No Concílio de Pisa destacam-se os esforços notáveis de um Gerson e um D’Ailly, que apontavam para uma democratização bem como para ações moralizadoras do governo eclesiastico; o Concílio de Constança amplia as temáticas do Concílio anterior, ainda que relevando as questões mais relevantes, acaba por votarem diversas mudanças de relativa importância, mas deixou um mote nefasto ao sentenciar, o indutado, João Huss que advogava insistentemente por mudanças mais explicita. O Concílio de Basiléia e seus procedentes mantiveram as mudanças centrais em compasso de espera em uma expectativa de que a atmosfera reformista perdesse intensidade. Mas a cada Concílio e as frutrações advindas deles, aumentava a indignação das consciências cansadas de erros, de despotismos, de práticas abusivas e que almejavam tempos melhores para a Igreja Cristã e para o povo.
            O papel de relevância da Renascença jamais pode ser minimizada na Reforma Religiosa que estava às portas. Com sua reenvidicação para uma Teologia mais bíblica e menos Escolástica, sua redescoberta do valor das fontes do Cristianismo primitivo para uma prática religiosa mais relevante, a utilização do método crítico nos estudos teológicos e históricos, sua nova cosmovisão, seu intransigente senso da liberdade individual, somente poderia desembocar na proposição de uma reforma ampla e inrrestrita da religião vigente. A agenda renascentista, sem dúvida alguma, antecipou inumeros intens que os reformadores a partir de Lutero defenderam e lutaram por implementarem. Todavia, não é correto amalgamar estes dois movimentos, pois se possuem muito em comum, também contem irreconciliaveis diferenças. A Renascença com seu antropocentrismo contam apenas com a força e capacidade do ser humano, mas os reformadores com seu teocentrismo contam com o poder de Deus. Os reformadores renascentistas tecem as críticas, apontam os erros e indicam soluções paliativas, mas os reformadores cristãos vão além, pois indicam também a solução definitiva – a reconciliação do ser humano com Deus, por meio de Jesus Cristo.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião

Referências Bibliográficas

AMARAL, Epaminondas Melo do. O protestantismo e a reforma. [Coleção Otoniel Mota – I] São Paulo: Livraria Saleluz, 1962.
DREHER, M.N. A crise e renovação da igreja no período da reforma. [Coleção Histórica da Igreja], v. 3. São Leopoldo: Sinodal, 1996, p. 62-65.
JANNI, Ugo. Apologia do Protestantismo. São Paulo: Athena Editora, 1939.
LINDBERG, Carter. As Reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2001.
MARTINA, Giacomo. História da Igreja de Lutero a nossos dias I - O período da reforma. São Paulo: Edições Loyola, 1995.

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[1] O Evangelho proposto por Jesus Cristo tinha que manter contato permanentemente com as pessoas, para que assim como sal, pudesse não apenas preserva-las, mas também operar as mudanças necessárias na própria Sociedade.

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