Introdução
A inomogeneidade é um termo da física para descrever um corpo e/ou sistema que não tem as mesmas propriedades em todos os pontos. Creio que esse termo descreve
bem a Igreja Cristã, pois apesar de ser uma “Igreja” com um “Evangelho”, desde
suas origens sempre teve que lidar com uma multiplicidade de opiniões, muitas
delas divergentes e contraditórias. Uma atitude simplicista não pode mais ser
aceita em relação à história do cristianismo, estabelecendo formas estáticas e
homogeneas. É no mínimo ignorância ou falseamento da verdade moldurar a Igreja
Primitiva como um corpo homogêneo e perfeito, que na medida em que o tempo perpassa
vai se degenerando até chegar ao ponto de uma quase total corrupção nos dias de
Constantino, para então inrromper no século 16 através de um movimento hemogenicamente
perfeito.
Por
outro lado não é aceitável o pressuposto de que a Igreja Cristã não possuiu uma
continuidade histórica. Desde sua formação inicial, apesar de suas convulsões
eclesiastica e doutrinária, é possível identificar em grau maior ou menor sua
vitalidade; é possível vislumbrar no transcurso dos séculos abundantes
expressões de vivificação, bem como de declínios em seus princípios basilares;
podemos apreciar os multiplos movimentos reformistas que foram calados no
transcorrer dos séculos cinco ao quinze, mas que eclodiram de forma iniqualável no
século dezesseis, com todas as suas implicações e desdobramentos, que como ondas
sismicas abalaram e trasnformaram todas as esferas da Sociedade. Como tão bem
resume Amaral:
O que não podemos fazer é adotar o que a
história não justifique; nem conceder que os melhores tempos da Igreja tenham
sido imaculados, ou que os seus piores tempos nunca deixassem de registrar
abençoadas expressões de vida cristã (1962, p. 19).
Movimentos Preparatórios
Podemos
evocar tranquilamente os testemunhos históricos sobre a vocação da Igreja
Cristã para se regenerar continuamente através de seus movimentos e convulções,
muitas vezes aceitos ou rejeitados, que perseguiram inconteste a harmonização
entre os conceitos e práticas da Igreja com seus fundamentos emanados das
páginas evangélicas, que sempre proporcionaram a revitalização dela, em
dissonância com as lideranças amorfas e retrógadas, cujos únicos interesses eram
somente multiplicar seus privilégios à sombra de despotismos insaciáveis dos
detentores dos demais poderes civis.
Em
movimentos convulsionais que se multiplicavam exponencialmente a Igreja Romana
vai sendo exposta à opinião pública. São estes movimentos que haverão de
produzir a atmosfera propicia para que venha a ocorrer uma Reforma Religiosa ampla, na
busca de harmonizar-se a letra e o espírito do Evangelho.
Esta
patente que nestes movimentos reformistas sempre se abrigaram diversas
vertentes evangélicas, mas mesmo incorrendo em falhas e equívocos,
persistentemente buscavam resgatar os princípios originais da Igreja apostólica
neotestamentária. Milhares de cristãos anônimos e esporádicos vultos maiores
foram instrumentos para manter-se a chama da fé cristã acesa mesmo nos períodos
mais escuros da Igreja. Eram homens e mulheres que acercados pela indiferença e
a corrupção, ansiavam por vida e fidelidade. A grande maioria foi cruelmente
esmagada pelos poderes constituídos e quase nada delas sabemos, mas restaram
preciosas informações sobre alguns destes luminares da grande candeia dos fiéis
e sinceros que amavam Jesus e a Igreja.
A
grande Reforma Religiosa do século dezesseis é o rio maior que recebe em seu
trajeto todos estes afluentes. Esta Reforma jamais teria força suficiente para
realizar tudo quanto foi feito, sem a força advinda de cada cristão e de cada
movimento que a antecedeu, incluindo aqueles dos quais nada ficamos sabendo.
Desde o século doze, quando o sistema religioso estava totalmente enrijecido,
multiplicam-se movimentos e vultos que clamavam por mudanças. Independentemente
dos equívocos, alguns até mesmo absurdos, que sugiram neste momento histórico,
o desejo de renovação é o fator unificador. São representativos da consciência
religiosa e do anseio de uma espiritualidade genuína.
O Movimento Monástico
Este
movimento continha um elemento evangelicamente errático, pois propunha uma
alienação do cristão da Sociedade, na busca de uma espiritualidade com melhor
qualidade. Jesus jamais se afastou do ser humano e se isolou da sociedade
humana[1]. Contudo, o Movimento Monástico
tornou-se um reserva da piedade cristã e manteve a Igreja ligada aos aparelhos.
Muitos utilizam lentes de aumento nas críticas aos monges e monastérios, que
certamente no transcorrer do tempo acabaram realmente se afastando cada vez
mais de seus pressupostos iniciais, todavia, ainda assim, eles representaram um
esforço em relação a situação caótica e corrupta das instituições eclesiásticas
do período. Se no século quinto o movimento já é algo significativo, nos
séculos doze e treze torna-se de significância e relevância que não pode ser
ignorado. Só para lembrar, Martinho Lutero é um monge e todas as suas
experiências religiosas, positivas e negativas, ele as teve durante seu período
de reclusão. São ao derredor das instituições monásticas que se multiplicam os
movimentos livres de leigos que buscam do seu jeito a piedade e a pureza.
São
estes movimentos periféricos, já nos fins do século doze, que expõem
publicamente os anseios da necessidade de se corrigir os excessos eclesiásticos
e resgatar a espiritualidade que se extinguia rapidamente. Impossível não citar
o movimento liderado por Pedro Valdo, em Lião, que em momento posterior se
instalam nos vales do Piemonte, na França, já assumidos como Valdenses e que
permanecem ativos até o século dezesseis, e que após a Reforma uniram-se a uma
Igreja formal. Como não se lembrar dos menos afortunados Albigenses, ao sul da
mesma França, que manifestando um espírito evangélico renovador, com uma dose
de extravagâncias, mas que foram de forma inclementes eliminados pela Igreja
Romana.
A
partir do século doze, navegaram por essas correntezas da independência
espiritual e ferrenha oposição aos grassos erros eclesiásticos e teológicos,
personagens da envergadura de um Guilherme de Occam, que ousadamente levanta a
bandeira contra o despotismo hierárquico, e proclama sua mensagem evangélica
com a coragem e intrepidez dos profetas veterotestamentarios diante de seus
reis corruptos e dos apóstolos diante das autoridades judaicas e dos primeiros
cristãos diante do todo poderoso Imperador Romano. Tal mensagem, mesmo depois
de calado seu pregador, manteve-se ecoando e alcança o século imediato,
ressurgindo na vida e proclamação de Wyclif, notável exegeta dos textos
bíblicos, tradutor deles para a língua vernácula inglesa, defensor
intransigente do livre exame por parte dos leigos. Seus esforços encontram ecos
na distante Boêmia, onde o professor da Universidade em Praga, João Huss,
lança-se de corpo e alma nessa correnteza bravia, que acaba por leva-lo ao
martírio pelos algozes eclesiásticos, o mesmo destino de seu continuador e
companheiro, Jerônimo de Praga. Em Florença, no século quinze, realça a figura
do destemido pregador Savonarola, ainda que sua vertente estivesse mais na reforma
de costumes, e que atraiu igualmente para si a ira daqueles que não desejavam
mudança alguma e paga o preço de suas convicções e intrepidez com a própria
vida.
Por
trás destas iniciativas individuais movia-se invisivelmente um desejo crescente
e cada vez mais incontido de mudanças e transformações na vida religiosa e
eclesiastica. Outro movimento que expressa esses anseios incontidos pode ser
claramente visto no movimento dos místicos. Personagens da envergadura de um
Eckhart e Tauler, nos séculos XIII e XIV respectivamente, saturaram ainda mais
a atmosfera reformista e foi fundamental como preambulo da futura Reforma que
já se divisava no século XVI.
Portanto,
o século XV inicia com o ar totalmente impregnado pelos anseios irrepremiveis de
renovação. Diante de tantas pressões internas e externas a Igreja reage com a
convocação dos chamados concílios reformadores. Como foram reuniões conciliares
oficiais, ainda que houvesse um esboço de disposição em operacionar as mudanças
necessárias, seus resultados foram totalmente minimizados pelos interesses
maiores da manutenção da ordem predominante. No Concílio de Pisa destacam-se os
esforços notáveis de um Gerson e um D’Ailly, que apontavam para uma
democratização bem como para ações moralizadoras do governo eclesiastico; o
Concílio de Constança amplia as temáticas do Concílio anterior, ainda que relevando
as questões mais relevantes, acaba por votarem diversas mudanças de relativa
importância, mas deixou um mote nefasto ao sentenciar, o indutado, João Huss
que advogava insistentemente por mudanças mais explicita. O Concílio de
Basiléia e seus procedentes mantiveram as mudanças centrais em compasso de
espera em uma expectativa de que a atmosfera reformista perdesse intensidade.
Mas a cada Concílio e as frutrações advindas deles, aumentava a indignação das
consciências cansadas de erros, de despotismos, de práticas abusivas e que
almejavam tempos melhores para a Igreja Cristã e para o povo.
O
papel de relevância da Renascença jamais pode ser minimizada na Reforma Religiosa que
estava às portas. Com sua reenvidicação para uma Teologia mais bíblica e menos
Escolástica, sua redescoberta do valor das fontes do Cristianismo primitivo
para uma prática religiosa mais relevante, a utilização do método crítico nos estudos
teológicos e históricos, sua nova cosmovisão, seu intransigente senso da
liberdade individual, somente poderia desembocar na proposição de uma reforma
ampla e inrrestrita da religião vigente. A agenda renascentista, sem dúvida
alguma, antecipou inumeros intens que os reformadores a partir de Lutero
defenderam e lutaram por implementarem. Todavia, não é correto amalgamar estes
dois movimentos, pois se possuem muito em comum, também contem irreconciliaveis
diferenças. A Renascença com seu antropocentrismo contam apenas com a força e
capacidade do ser humano, mas os reformadores com seu teocentrismo contam com o
poder de Deus. Os reformadores renascentistas tecem as críticas, apontam os
erros e indicam soluções paliativas, mas os reformadores cristãos vão além,
pois indicam também a solução definitiva – a reconciliação do ser humano com
Deus, por meio de Jesus Cristo.
Utilização livre desde que citando
a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião
Referências Bibliográficas
AMARAL, Epaminondas Melo do. O protestantismo e a reforma. [Coleção
Otoniel Mota – I] São Paulo: Livraria Saleluz, 1962.
DREHER, M.N. A crise e renovação da igreja no período da reforma. [Coleção
Histórica da Igreja], v. 3. São Leopoldo: Sinodal, 1996, p. 62-65.
JANNI, Ugo. Apologia do Protestantismo. São Paulo: Athena Editora, 1939.
LINDBERG, Carter.
As Reformas na Europa. São Leopoldo:
Sinodal, 2001.
MARTINA, Giacomo. História da Igreja de
Lutero a nossos dias I - O período da reforma. São Paulo: Edições Loyola,
1995.
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[1] O
Evangelho proposto por Jesus Cristo tinha que manter contato permanentemente com
as pessoas, para que assim como sal, pudesse não apenas preserva-las, mas
também operar as mudanças necessárias na própria Sociedade.
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