Uma das áreas mais atuante no protestantismo implantado
no Brasil é sem dúvida alguma a educação. Tanto internamente, no contexto
institucional-eclesiástico, quanto externamente, no âmbito da sociedade
brasileira, o protestantismo tem produzido um número significativo de figuras
proeminentes no campo educacional.
Desde seus primórdios o presbiterianismo zelou e fomentou
uma educação de alto nível. Seus primeiros pastores tinham uma formação
acadêmica de nível universitário, recebendo uma formação multidisciplinar, capacitados
a discorrer não apenas sobre as questões teológicas, mas sobre todas as demais
áreas do conhecimento humano.
Nos quadros de pastores presbiterianos encontraremos
muitos que além de exercerem com excelência funções pedagógicas, também se constituíram
em produtores de material didático e pedagógicos que foram amplamente
utilizados a nível nacional, tanto na área da língua portuguesa, gramatica e
filologia, quanto na matemática.[1]
Uma figura proeminente, da segunda geração presbiteriana, é sem dúvida alguma o
Rev. Erasmo Braga que dentre muitas das suas obras se sobressai a chamada - Série Braga - um conjunto de quatro
livros de leitura para a escola primária, que alcançaram mais de cem edições e
foram utilizados em todo o Brasil.[2]
Em um âmbito mais educacional-eclesiástico, quero
resgatar a figura proeminente, mas certamente também muito controversa, do
missionário estadunidense Rev. Millard Richard Shaull (1919 - 2002) que chega ao Brasil (1952) através
do convite da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), na presidência do Rev.
Benjamim Moraes Filho.
Ele
chega assumindo a cátedra no Seminário Presbiteriano de Sul (Campinas). No ano
de sua chegada (1952) sai um artigo dele na Revista Teológica do SPS, relatando
a perseguição sofrida pelos protestes na Colômbia, que havia testemunhado de
forma ocular; ele é apresentado pelo redator da revista desta forma:
O Rev. Richard Shaull é atualmente missionário do Board de
Nova Iorque, no Brasil, transferido da Colômbia para este país.
Estudou em Princeton Seminary onde, em 1941, recebeu o grau
de ―Bachelor of Theology‖ e em 1946 o de ―Master of Theology‖. É candidato ao
grau de ―Doctor of Theology‖ do mesmo Seminário tendo já prestado, neste ano,
os necessários exames compreensivos.
Foi missionário na Colômbia de 1942 a 1951. Lá exerceu as funções
de superintendente de evangelização, conselheiro da Federação Nacional de
Mocidade, secretário permanente do Sínodo da Igreja Presbiteriana da Colômbia,
fundador e diretor do Seminário Teológico Presbiteriano e pastor da Igreja
Presbiteriana Central de Bogotá.
O Rev. Shaull tem publicado artigos na ―Presbterian Life,
em ―Theology Today, no ―Christian Centry no ―Student World e no ―Predicador
Evangélico. (1952, p. 71).
A
chegada de Shaull vai causando alvoroço desde o início e aflorando as diferenças
de pensamentos que estavam tentando conviver dentro da instituição acadêmica e
da própria denominação protestante.
Mas
se entre os docentes havia certa divisão e uma atmosfera de desconfiança, entre
os alunos o entusiasmo era contagiante e expansivo, ultrapassando rapidamente
os muros acadêmicos e alcançando a juventude presbiteriana e outras, que
aspiravam promoverem as transformações que o país tanto carecia naquele
momento. E Mendonça faz uma descrição desta geração de jovens protestantes:
O protestantismo, já em sua terceira geração no Brasil,
formara em seu seio uma juventude burguesa intelectualizada pelo acesso às
universidades que foram surgindo no período anterior. Treinados para lideranças
em suas igrejas, esses jovens começaram a ter logo parte ativa nos quadros
estudantis que formavam os centros acadêmicos nas escolas superiores e, assim,
passaram a ver a realidade sob outro ângulo, ou melhor, voltaram suas faces
para o mundo real. Ao perceberem o quanto suas igrejas estavam alheias ao que
se passava fora de suas portas, passaram a falar outra língua e se abriu um
vazio entre eles e as lideranças eclesiásticas. (2012, p. 87).
Corroborando
esta percepção do envolvimento da mocidade presbiteriana com os anseios da
sociedade escreve o também professor Guilherme Kerr em artigo no jornal oficial
da IPB ―O Puritano:
[...] Porque o que temos visto por parte da mocidade nesses
últimos dez anos é que ela, se de um lado está disposta a assumir a sua
responsabilidade na salvação das almas, por outro não se esquece do corpo, e
anseia por encontrar solução para os problemas que afligem o homem dentro da sociedade.
Essa dualidade de interesses que, segundo cremos, não se opõem, mas se
completam, choca-se com os interesses dominantes da igreja evangélica no
Brasil. (10/02/1953 – Itálico meu).
E mediante
o testemunho ocular de Luz, obtemos um perfil da pessoa de Shaull, isenta de
qualquer paixão, visto que a descrição parte de alguém que contestava
abertamente os conceitos e movimentos produzidos pelo missionário:
Inteligente e culto, habilidoso e astuto, dinâmico e
arrojado, simpático e contagiante, o ilustre professor não foi remisso em
aproveitar a fundo a magnífica oportunidade que se lhe deparava, nem deixou de
tirar o máximo partido da privilegiada posição a que fora guinado. (1994, p.
260 – Itálico meu).
E de
fato o veterano professor estava certo em sua leitura, pois inúmeros jovens
foram impactados pelas ideias e pela convivência com este jovem professor,
pastor, missionário, escritor, intelectual e idealista; alguns destes jovens
alcançaram projeção nacional e internacional, como Rubem Alves, Waldo Cesar, Julio de Santa Ana, Zwinglio Dias e Rubem
César Fernandes, entre tantos outros que poderiam ser listados aqui e toda
uma geração de jovens presbiterianos em particular e protestantes de forma
geral jamais puderam pensar no Evangelho da mesma forma, depois de Shaull. O
pesquisador Paixão Junior, que entrevistou alguns destes alunos nos possibilita
alguns testemunhos oculares, dos quais sito apenas o de Rubem Alves, então
cursando o primeiro ano de teologia no SPS e foi aluno de Shaull:
O primeiro espanto que nos causou o Shaull foi exatamente
este, que ele simplesmente nos perguntou se não nos dávamos conta de que o
sagrado não podia crescer em jardins internos e protegidos, que ele é selvagem
e indomável, vento que sai pelos desertos ressuscitando mortos e, pelas
cidades, assobiando nos mercados, nas escolas, nos quartéis, nos palácios, nos
bancos (...) a gente pensava em converter o mundo à igreja. O Shaull dizia que
era preciso o contrário, que a igreja se convertesse ao mundo: sair do jardim
interno, protegido e cavalgar o vento (...) para ele, era justamente nos
problemas do mundo que se encontravam as marcas de Deus. Deus aparece como
homem no lugar onde a vida humana comum é vivida: este é o sentido da
encarnação. (2000, p. 124)
Analisando
os posicionamentos em relação a Shaull, pelos Presidentes do Supremo Concilio
que com ele conviveram, ainda que pela ótica de uma ortodoxia conservadora,
Campos Jr. em seu trabalho sobre os seminários presbiterianos no período de
1950 a 1966, assim expressa:
Dentre os presidentes do Supremo Concílio, Benjamim Moraes
o recebeu bem quando ele chegou ao Brasil, José Borges dos Santos Jr foi mais
tolerante no inicio, pois não queria que ele saísse; diante das pressões parece
ter cedido. Boanerges Ribeiro o classificou como o principal disseminador de
ensinos heterodoxos. (2003, p. 109 – Itálico meu).
Em
1966, Shaull foi - removido - do Brasil pela Missão Central, ou Missão
Presbiteriana no Brasil, ambas remanescentes da - Foreign Missions – pela qual
atuava no Brasil e que o trouxe para a América do Sul em 1942, motivados com
certeza pelas expectativas de um radicalismo conservador que veio de fato a se
concretizar nos anos posteriores.
Sua
saída vai deixar órfãos toda uma geração, que fora contagiada pelo vírus de um
Evangelho beligerante, mas que será extirpada do perímetro da IPB, através de
uma sistemática e prolongada repressão por parte de seus próprios líderes. Nada
é mais dolorido e produz maior decepção do que ser perseguidos pelos de sua
própria casa. Pouco mais de cinquenta anos se passaram e a IPB ainda não
conseguiu nem ao menos chegar perto de ter uma Mocidade semelhante àquela que -
alvoroçou o mundo - com suas propostas e mensagem evangélica, como Paulo e os
cristãos do primeiro século foram vistos pelos moradores da cidade de Éfeso.
Desde
aquela época a juventude presbiteriana contentou-se em cultivar um cristianismo
de gueto e de zona de conforto, produzindo e reproduzindo uma igreja morna e
insossa em relação à sua ação e influencia na sociedade brasileira.
Foi
durante o IV Congresso Nacional da Mocidade Presbiteriana,[3] realizado
de 02 a 10/02/1956 na cidade de Salvador, que o Rev. Richard Shaull foi homenageado
como o título carinhoso de - Jovem Mestre - em deferência ao Rev.
Borges que já vinha sendo chamado pelos jovens, desde outros Congressos, de - Velho Mestre. (JORNAL DA MOCIDADE, Fevereiro de 1956, Apud ARAÚJO, 1985, p.
37).[4]
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Reflexão Bíblica
http://reflexaobiblica.spaceblog.com.br/
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FICHÁRIO [Dissertação]
O Protestantismo na Capital de São Paulo: A Igreja Presbiteriana Jardim das
Oliveiras.
Presbiterianismo na
Cidade de São Paulo - Pioneiro do Radialismo Evangélico
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/2014/02/presbiterianismo-na-cidade-de-sao-paulo.html
Referências Bibliográficas
ARAÚJO, João Dias de. Inquisição sem fogueiras, 2ª Ed. Rio de
Janeiro: Instituto Superior de Estudos da Religião, 1985 (Edição digital –
PDF).
CAMPOS JÚNIOR, Héber
Carlos de. A reação da Igreja
Presbiteriana do Brasil ao “Modernismo” dentro de seus seminários nas décadas
de 1950 e 1966. Dissertação (Mestrado em Divindade) - Centro Presbiteriano
de Pós-Graduação Andrew Jumper, São Paulo, 2003.
CASTRO, Luís Alberto
de. A Trajetória do “Velho Mestre: Uma
Biografia do Rev. José Borges dos Santos Júnior – um recorte historiográfico da
Igreja Presbiteriana do Brasil. Dissertação (Mestre em Divindade) – Centro
Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, São Paulo, 2011.
GUEDES, Ivan Pereira. O protestantismo na cidade de São Paulo –
presbiterianismo: primórdios e desenvolvimento do presbiterianismo.
Alemanha: Ed. Novas Edições Acadêmicas, 2013.
LUZ, Waldyr Carvalho. Nem General nem Fazendeiro, Ministro do
Evangelho. Campinas: Luz Para o Caminho, 1994.
MENDONÇA, Antonio
Gouvêia. O protestantismo no Brasil e
suas encruzilhadas. IN: PEREIRA, João Baptista Borges (org.). Religiosidade
no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.
PAIXÃO JUNIOR, Valdir
Gonzales. A Era do Trovão: poder e
repressão na Igreja Presbiteriana do Brasil no período da ditadura militar
(1966-1978). Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade
Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2000.
O PURITANO.
Edição de 10/02/1953. Disponível e consultado no arquivo do Centro de
Documentação – CEDOC da IPB, em São Paulo-SP, no primeiro semestre de 2013.
REVISTA TEOLÓGICA –
Seminário Teológico Presbiteriano de Campinas, n° ?, 1952.
[1] Vários autores presbiterianos se
notabilizaram pelos seus livros didáticos. São eles: Antônio Bandeira Trajano, com suas obras Aritmética primária,
Aritmética elementar, Aritmética progressiva e Álgebra elementar; Modesto Carvalhosa, com Lições práticas
de escrituração mercantil, e Eduardo
Carlos Pereira, com sua famosa série de gramáticas para os cursos médio e
superior (Gramática expositiva – curso elementar, Gramática expositiva – curso
superior e Gramática histórica), o que o levou a ser considerado um dos
sistematizadores do ensino da língua portuguesa e Otoniel Mota também contribuiu com algumas obras úteis nessa área,
tais como O meu idioma, Lições de Português e um comentário do poema Os
Lusíadas. Um trabalho acadêmico muito bem elaborado sobre essa literatura pedagógica
protestante e sua utilização, ver LAGUNA, Shirley Puccia. Uma leitura dos livros de leitura da Escola Americana de São Paulo
(1889-1933). Tese de doutorado em Educação: História, Política e Sociedade,
PUC, São Paulo, 2003.
[2] Para um excelente trabalho acadêmico sobre
essa série especificamente, ver MASSOTTI, Roseli de Almeida. Erasmo Braga e os valores protestantes na
educação brasileira. Dissertação de Mestrado, Pós-Graduação em Ciências da
Religião, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2007.
[3] Anualmente a Confederação da Mocidade
organizava congressos, quando se discutiam problemas específicos da missão dos
jovens na atualidade, a intervenção nos problemas sociais e a estrutura
eclesiástica. Neste IV Congresso Nacional da Mocidade Presbiteriana em
Salvador, Bahia. Rev. Richard Shaull foi o preletor principal e discorreu sobre
a missão, preconizando um significado novo à evangelização.
[4] Em uma entrevista Waldo César comenta
sobre este momento: ―O Shaull tinha um trabalho muito grande com vários campos
no Brasil, inclusive com a UCEB [União Cristã de Estudantes do Brasil], viajava
muito e era chamado pra conferência em tudo que era lugar. Foi outro motivo de
ciumeira, porque os pastores eram os líderes de nossos encontros de jovens e
congressos da mocidade. E esses pastores começaram a ser menos convidados. Uma
coisa que criou um problema muito desagradável foi que o reverendo José Borges
era chamado de - velho mestre - uma grande figura. Ele teve uma influência
muito grande e era sempre o grande preletor dos encontros. E quando Shaull
começou a aparecer, o pessoal começou a chamá-lo de - jovem mestre - (risos).
Foi a gota d`água em relação à cúpula da igreja. Que negócio é esse?” (CESAR,
2011 – Itálico meu).
Os textos publicados no blog são relevantes e utilizam-se de fontes primárias, conferindo-lhes autoridade historiográfica. Boa contribuição para os estudiosos do tema. Mesmo que haja diferentes abordagens e interpretações dos temas abordados, os textos servem para provocar e estimular a análise dos temas.
ResponderExcluirGrato pelas palavras e incentivo! Realmente zelo pelas fontes bibliográficas.
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