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sábado, 2 de agosto de 2025

Reforma Protestante: O Conflito de Calvino e Farel com o Conselho de Genebra (1538)



Há duas tendências prejudiciais à genuína História do Protestantismo e da História em geral: A primeira consiste na romantização dos acontecimentos históricos, elevando os protagonistas a figuras heroicas e idealizadas, como se os processos vivenciados fossem isentos de complexidade e conflito. Essa narrativa idealizada obscurece as nuances históricas e favorece a construção de mitos, em detrimento da análise contextual.

A segunda tendência, ainda mais inquietante, consiste na negligência da própria História, frequentemente considerada por muitos como elemento irrelevante ou descartável no contexto contemporâneo. Tal postura evidência não apenas um déficit de conhecimento, mas também uma ruptura com a consciência histórica — componente fundamental para a construção da identidade individual e coletiva.

Essas perspectivas equivocadas revelam-se particularmente evidentes entre segmentos evangélicos das gerações mais recentes, cujas práticas e discursos denotam um desconhecimento significativo de suas tradições históricas, fundamentos teológicos e marcos institucionais. Tal lacuna cognitiva conduz a uma postura autorreferente, como se fossem protagonistas inaugurais de um movimento desvinculado de suas raízes — raízes essas forjadas ao longo dos séculos por uma multiplicidade de vozes, embates e contextos históricos que moldaram a identidade protestante contemporânea.

A sistemática desvalorização da História, em determinados círculos evangélicos contemporâneos, decorre também do fato de ela funcionar como um espelho incômodo que revela a realidade desconcertante de um evangelicalismo superficial e profundamente aculturado, característico dos séculos XX e XXI. Tal cenário sinaliza um inquietante retrocesso às sombras da Idade Média — período em que a Igreja, desfigurada por estruturas de poder e alianças espúrias, havia se distanciado de sua identidade e missão essencial como sal e luz do mundo. Em nossos dias, os sinais da presença dos valores do Reino de Deus tornam-se cada vez mais rarefeitos, enquanto princípios mundanos e mercantilistas ascendem como forças estruturantes de um modelo eclesiástico que busca acomodar-se confortavelmente aos contornos de uma sociedade marcada pela degradação ética e espiritual.

Nos turbulentos anos do século XVI, sob os ecos profundos da Reforma Protestante, Genebra emerge como um cenário emblemático do embate entre tradição e renovação. Os reformadores — homens como João Calvino e Guillaume Farel — não apenas enfrentaram questionamentos doutrinários, mas também foram alvo de intensas pressões sociais e políticas, chegando ao extremo da violência.

Os opositores do avanço reformado, ao perceberem nele uma ameaça às estruturas religiosas e políticas então vigentes, mobilizaram-se com veemência para conter sua disseminação. O receio de que as sementes de um Evangelho profundamente bíblico e salvífico frutificassem em solo genebrino e se espalhassem por outras regiões levou à intensificação da resistência, por vezes violenta, contra os reformadores. Este episódio revela o custo elevado de uma fé que se dispõe a desafiar estruturas consolidadas, e a força resiliente daqueles que empenharam suas vidas na restauração da centralidade das Escrituras como fundamento da vida cristã.

Após inúmeros embates e retrocessos, os reformadores conquistaram uma vitória significativa — ainda que parcial — na cidade suíça de Genebra. Contudo, os opositores não estavam dispostos a renunciar a seu status quo, sustentado não por convicções religiosas, mas por uma moral profundamente corrompida. Para estes, a religião deveria se restringir ao âmbito privado, sem se imiscuir nas dinâmicas sociais e políticas. Seu lema, então como agora, era: “viva e deixe viver”. A reputação de Genebra como um reduto de depravação ecoava por toda Europa, sendo descrita em versos e prosas como símbolo de uma sociedade afundada no pecado. Aqueles que se agarravam ao lamaçal da imoralidade resistiam a qualquer tentativa de reforma, exigindo que a Igreja os aceitasse tal como eram, sem confronto ou transformação. A semelhança com os dias atuais é inquietantemente reveladora — e está longe de ser mera coincidência.

Os reformadores, cientes da seriedade do chamado divino, não podiam — em sã consciência — aceitar as condições impostas por uma sociedade moralmente decadente. Compreendiam que os princípios bíblicos não existem para serem contemplados como relíquias em vitrines religiosas, mas sim para serem vividos com integridade por aqueles que professam fé no Cristo redentor. Os que se recusam a se submeter à Palavra permanecem em sua devassidão, e inevitavelmente terão de prestar contas à reta justiça de um Deus Santo.

Desafiar uma mentalidade impregnada de carnalidade moral e espiritual, no entanto, acarreta alto custo: aqueles que se levantam para reestabelecer a centralidade das Escrituras enfrentam riscos reais — a perseguição, a violência, e até a morte.

Neste contexto, vale transcrever o recorte da renomada autora Thea B. Van Halsema, cuja obra sobre os reformadores oferece luz sobre essa tensão entre fé autêntica e resistência secular.

Este é o retrato fiel, quase fotográfico, de um momento decisivo — uma self espiritual capturando o exato instante em que os reformadores, com os corações firmados na Palavra, se veem compelidos a deixar Genebra. Não por falta de argumentos, mas por excesso de convicção. Não por serem vencidos, mas por recusarem transformar o templo do Senhor em vitrine da depravação.

A atmosfera que os envolve é densa, carregada como as nuvens que antecedem uma tempestade: há angústia, há temor, mas há também uma paz que não pode ser arrancada — a paz de quem serve a um Deus que vê no oculto e julga com justiça. Eles partem, mas deixam rastros de verdade, ecos de um Evangelho que não negocia com o pecado.

A história os expulsa, mas a eternidade os acolhe como testemunhas da fé que não se corrompe. E àqueles que hoje se veem pressionados a diluir a verdade em nome da aceitação, este momento nos lembra: ser fiel às Escrituras é, muitas vezes, caminhar contra o fluxo — mesmo que isso custe o conforto, o prestígio ou a própria vida.

Transcrição do texto da referida historiadora com tradução eletrônica acrescida de algumas notas explicativas.

 


Calvino e Farel abriram caminho pela multidão que chiava e cuspia neles. Subiram os degraus dentro da prefeitura e passaram pelo arauto à porta da câmara do conselho. Ao conselho disseram: Vocês agiram perversamente ao aprisionar um servo do Senhor. Ele falou a verdade quando pregou que vocês não têm o direito de decidir a adoração da igreja sem antes consultar a própria igreja¹.

O conselho estava desconfortável diante da ira dos pregadores. Eles barganharam: Esperaremos para colocar os ritos de Berna em prática se vocês concordarem em nos permitir afastar Corault de seu ofício como pregador².

A isso jamais concordaremos, responderam os dois homens de roupas pretas. Tampouco introduziremos as cerimônias de Berna. O conselho da cidade não tem o direito de impô-las à igreja³.

Do lado de fora, a multidão esperava pelos pregadores. “Ao Ródano, ao Ródano”, gritavam alguns. Outros lançavam insultos sujos às costas de Calvino e Farel. Mais cuspes, mais chiados, mais punhos e bastões sacudidos. E quando chegou a noite, mais chutes em sua porta, mais tiros disparados sob suas janelas, mais canções sujas cantadas ruidosamente. Alguém chegou a desfilar pelas ruas, zombando da Ceia do Senhor com uma cantiga obscena.

Tudo isso era um pesadelo para o tímido francês de vinte e oito anos. O Senhor o havia colocado sobre uma igreja, em vez de colocá-lo em um estudo tranquilo. Mas que igreja e que cidade! Por quanto tempo ele seria obrigado a resistir à tempestade?

Noite de sábado. O arauto do conselho chegou por ordem dos síndicos. Os pregadores concordariam em usar os ritos de Berna? Caso contrário, os pastores Calvino e Farel não deveriam subir aos púlpitos no dia seguinte. Outros pregadores seriam encontrados para pregar os sermões da Páscoa e administrar a Ceia do Senhor.

Manhã de domingo. As igrejas estavam completamente cheias. Os pregadores pregariam? Sim, os pregadores haviam decidido pregar. Após uma noite sem sono, dirigiram-se às igrejas — Farel atravessando o rio, Calvino rumo a Saint Pierre.

Ali estava Calvino, no púlpito, olhando para uma congregação zangada e agitada. Que sermão ele pregou! Como poderiam estender as mãos para receber o pão e o vinho da Santa Comunhão quando haviam pecado tão obstinadamente contra Cristo crucificado? Poderia a Ceia ser celebrada em meio a tumultos? Deus o proibisse.

Não houve celebração da Comunhão em Saint Pierre, nem em Saint Gervais. Ilesos, os dois pastores voltaram para casa.

Nos cultos da tarde de Páscoa, Calvino pregou na Igreja de Rive. Quando falou sobre os problemas em Genebra, homens saltaram com espadas. Amigos de Calvino o protegeram e o escoltaram até sua porta. “Por um milagre”, relatou uma testemunha, não houve derramamento de sangue.

Dentro de casa, Calvino e Farel aguardavam a próxima movimentação dos conselhos. Tarde de domingo, os síndicos se reuniram. Na segunda-feira, o Conselho dos Duzentos reuniu-se: “Damos aos pastores Calvino, Corault e Farel o prazo de três dias para saírem de nossa cidade”.

O arauto anunciou a sentença. Ao ouvi-la, Calvino respondeu: “Muito bem. Se tivéssemos servido a homens, teríamos sido mal recompensados, mas servimos a um bom Mestre que nos recompensará”.

Três pastores franceses, em cavalos alugados, saíram de Genebra.

Era 25 de abril de 1538.


Notas Explicativas

  1. A teologia reformada sustentava que a adoração é assunto da igreja, não do governo.
  2. Os ritos de Berna representavam práticas litúrgicas menos rigorosas; sua adoção buscava controle religioso.
  3. O conflito entre poder civil e autonomia eclesiástica foi central na Reforma Protestante.
  4. A hostilidade popular indicava resistência às mudanças religiosas promovidas por Calvino.
  5. O arauto era um oficial que comunicava decisões do conselho com bastão e vestes cerimoniais. Os síndicos, autoridades municipais, tinham prerrogativas executivas, enquanto o Conselho dos Duzentos era o órgão deliberativo supremo de Genebra.
  6. Para Calvino, a Ceia só poderia ser celebrada em espírito de reverência e comunhão autêntica.
  7. O púlpito tornou-se símbolo da tensão entre fé e política; a violência era uma ameaça real.
  8. A decisão do Conselho dos Duzentos marcou a expulsão dos líderes reformistas.
  9. A resposta de Calvino enfatizava sua convicção teológica de servir apenas a Deus.

 

Utilização livre desde que citando a fonte

Guedes, Ivan Pereira

Mestre em Ciências da Religião.

Universidade Presbiteriana Mackenzie

me.ivanguedes@gmail.com

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Referência Bibliográfica Referida neste Artigo

VAN HALSEMA, Thea B. This Was John Calvin. Grand Rapids: Baker Book House, 1959.

 

Referências Bibliográficas Sugeridas

BENGE, Janet; BENGE, Geoff. João Calvino: Renovador da Igreja. São Paulo: Editora Betânia, 2005.

FERREIRA, Wilson Castro. Calvino: Vida, Influência e Teologia. São Paulo: Luz para o Caminho, 1985.

GONZÁLEZ, Justo L. História do Pensamento Cristão. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004.

MCGRATH, Alister. Uma Vida de João Calvino. São Paulo: Vida Nova, 2013.

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