No desenvolvimento da Igreja Cristã é perceptível a
relevância do papel exercido pelas mulheres. Elas estão presentes e ativas em
todas as esferas e circunstâncias e muitas delas foram fundamentais em alguns
momentos críticos dessa História. A ideia de que ficaram à margem ou foram
assistentes passivas dos fatos históricos é totalmente anacrônico e destoante
de uma realidade histórica genuína. Deus desde a criação as tratou de forma
igualitária ao imprimir nelas a Sua imagem e semelhança s (Gn 1.28-29). Nas
narrativas bíblicas do Primeiro Testamento se elas não aparecem em abundância,
todavia, elas surgem em momentos decisivos, principalmente no que tange ao
Projeto Salvífico estabelecido por Deus (Sara, Débora, Rute, Miriam, Ester).
Jesus Cristo durante seu ministério terreno não apenas as
elevou a uma posição acima do nível em que a tradição religiosa judaica as mantinha
como as colocou em pé de igualdade com o homem, nem mais e nem menos. Elas
fazem parte integrante daquele grupo de discípulos que acompanham Jesus em seu
ministério itinerante por toda a Palestina judaica (Mc 15.41; Lc 8.1-3, 43-49).
Dos
evangelistas sinóticos Lucas é denominado o “Evangelho no Feminino”, pois ele
destaca a relevância da mulher no começo, meio e fim de sua narrativa. Elas
estão na concepção e nascimento (Maria e Isabel); elas seguem a Jesus e
contribuem para o sustento dele (8.1-3); na crucificação se fazem presentes (24.9-10;
Mt 27.55; Jn 19.25), enquanto os homens se afastam, bem como na ressurreição tendo
elas a honra de serem as primeiras a contemplarem e as primeiras a anunciarem a
ressurreição de Jesus Cristo (24.1-12). Sem falar no quadro magistral de Maria
assentada aos pés de Jesus, postura de discípulo, ouvindo seus ensinos, posição
da qual não será tirada, mesmo com a contestação de sua irmã Marta (10.38-42) –
no cristianismo a mulher não mais ficara restrita aos afazeres domésticos.
Mas
é na narrativa joanina que temos os mais extraordinários diálogos de Jesus e as
mulheres: a mulher samaritana (que deixa escandalizados os discípulos – 4.5-42)
e os diálogos com Marta e Maria antes de ressuscitar o irmão delas Lazaro
(11.1-44). João esclarece que a primeira a ser enviada a noticiar sua
ressurreição foi Maria Madalena – vai aos
meus irmãos e dize-lhes que eu subo para o meu Pai e vosso Pai, meu Deus e
vosso Deus – e o evangelista completa – foi
Maria Madalena anunciar aos discípulos (20.17,18) – Jesus a comissionou:
Vai e anuncia! Jesus dá a ela e suas companheiras autoridade para testemunhar o
poder do evangelho.
Na
primeira expansão do cristianismo, após o Pentecostes, conforme registrada no
segundo volume de Lucas (Atos) elas se destacam e participam efetivamente dos
acontecimentos marcantes: “E cada vez
mais se agregavam crentes ao Senhor em grande número tanto de homens como de
mulheres” (5.14). Alguns nomes femininos se destacam: Dorcas de Jope se
destaca pelas ações sociais (9.36-42); Maria, mãe de João Marcos, cuja casa
passou a ser ponto de referência para os cristãos Jerusalém (12.12); Lídia foi
a primeira convertida na cidade de Filipos (16.14,15) em cuja casa passa a
funcionar a comunidade cristã que vai se constituir em um marco pelo fato de
ser a primeira comunidade na Europa e um
referencial do cristianismo para toda região da Macedônia, sendo a única igreja
a manter vínculos permanentes com o apóstolo Paulo (Fp 4.15); Damaris de Atenas
(17.34); as mulheres distintas e nobres de Tessalônica e Beréia (17.4,12).
Em
suas correspondências Paulo não tem qualquer pudor em mencionar inúmeros nomes
de mulheres e chama-las de companheiras de ministério e declarar que elas são
indispensáveis no desenvolvimento da obra missionária, bem como no
desenvolvimento das comunidades já estabelecidas (Priscila [Áquila][1] Rm
16.3, ela foi mentora do eloquente pregador Apolo, de origem judaica e
convertido ao cristianismo, na cidade de Éfeso (At 18.24,26), deixando claro
que nos primórdios não havia restrições que a mulher ensinasse aos homens; Júnias
[Andrônico], líderes na comunidade cristã romana (Rm 16.7); Trifena e Trifosa,
Persídes e a mãe de Rufo (Rm 16.13) que segundo ele trabalham (mesmo termo que
descreve sua atividade apostólica, cf. 1 Co 15.10) no Senhor; Febe de Cencréia (Rm
16.1,2), ela exerce a função diaconal atendendo os necessitados nos quais o
próprio Paulo se inclui[2]. A
única reprimenda em toda a correspondência endereçada aos filipenses é para que
duas mulheres, Evódia e Síntique, resolvam suas desavenças, pois segundo suas
próprias palavras “juntas se esforçaram
comigo no evangelho, também com Clemente e com os demais cooperadores meus,
cujos nomes estão escritos no Livro da Vida” (Fp 4.2,3).
Esses
parcos exemplos são suficientes para demonstrar a relevância da mulher no
desenvolvimento do cristianismo neotestamentário; se destacaram e trabalharam
laboriosamente pelo acolhimento e anúncio do evangelho de Jesus Cristo, testemunhando-o
com suas vidas: foram discípulas e testemunhas de sua ressurreição; igualmente
foram enviadas para anunciar o Evangelho; fizeram parte integrante das
primeiras comunidades cristãs; cooperaram com sua sabedoria, riqueza,
influência e posição social; foram valentes e ousadas em suas posturas cristãs
e por esta razão martirizadas. Podemos afirmar categoricamente de que não há
genuína História do Cristianismo sem a participação efetiva e preponderante das
mulheres.
A Igreja e Seu Contexto Social
Evidente
que havia limites culturais e históricos, mas em momento algum ficaram à margem
das ações que impulsionaram o desenvolvimento do cristianismo por todo o
Império Romano e por todo o Mundo. Na maioria das vezes elas exerceram
autoridade (auctoritas), sem o correspondente poder (potestas) oficial,[3] o
que nunca se constituiu em fator inibidor para exercerem suas atividades e
funções de liderança diversas com criatividade e de forma frutífera.
Na
media em que as mais diversas ciências sociais, vão ampliando e aprofundando
seus estudos nos primórdios do cristianismo, mais evidente torna-se o papel das
mulheres na sua expansão e estabelecimento como expressão social religiosa. Uma
das ciências que mais tem contribuído para o estudo da mulher nos primeiros
séculos da igreja cristã tem sido a arqueologia. Os diversos sítios
arqueológicos em casas, palácios, templos e túmulos tem evidenciado que a
participação da mulher era muito mais relevante do que se pudesse supor. Por
exemplo, as inscrições funerárias e as estelas honoríficas revelam um
protagonismo feminino surpreendente.
O
cristianismo se estabelece nos centros urbanos nos primeiros séculos, onde os
papeis dos homens e mulheres são menos rígidos do que nas regiões e pequenas
vilas rurais. Aqui as comunidades cristãs vão formando uma rede de relações
sociais, econômicas e políticas que lhe permitem se estabelecerem e interagirem
com a sociedade. Principalmente nas correspondências paulinas é possível
perceber que as comunidades cristãs não ficam restritas aos estratos mais
vulneráveis e desfavorecidas, mas que muito cedo tem a participação de todas as
camadas sociais, incluindo as mais elevadas e letradas. Dentro dessa sociedade
urbana a mulher exerce papeis que extrapolam as suas funções especificas de mãe
e cuidadora do lar. Muitas delas desempenhavam funções mercantis e
administrativas, não apenas do lar, mas também dos negócios familiares.
Na
sociedade grega, com exceção de Esparta, a mulher não possuía plena cidadania,
mas as pesquisa vão revelando que elas também não ficam enclausuradas no lar.
Elas são proprietárias de terras, gerenciam seus próprios bens e negócios e que
vão aos tribunais quando se sentem lesadas. Algumas mulheres acumulam riquezas
e tornam-se bem feitoras na sociedade[4].
Desta forma casos que eram apenas esporádicos, hoje vão se avolumando, na
medida em que os sítios arqueológicos vão trazendo à tona a vivência daquelas
cidades. “Foram encontradas inscrições
que falam de mulheres que trabalhavam como sapateiros, carniceiros, pescadores,
garçonetes, cabeleireiros... uma lista inteira que abrange a maioria dos
negócios” (UBIETA, 2007, p. 29).
A
sociedade romana das primeiras comunidades cristãs experimenta uma mudança
profunda no papel das mulheres. Diversas leis que cerceavam os direitos das
mulheres haviam sido abolidas[5]
permitindo desta forma uma participação mais efetiva delas nas mais diversas
esferas sociais. Com a helenização do Império Romano, as mulheres passaram a
ter mais acesso à educação. Essa ascensão acadêmica acabou potencializando o
papel delas como tutoras de seus filhos e filhas e consequentemente uma
influência cada vez maior nos centros de poder.
Uma
das esferas mais liberais para a participação feminina era a religião. Ainda
que elas corressem o risco de serem envolvidas nos cerimoniais sexuais, era a
esfera em que elas tinham maior mobilidade e ascensão, pois entre o trono e o
templo havia um cordão umbilical. Mulheres começaram a ser cunhada em moedas
correntes no Império Romano: Fulvia, esposa de Marco Aurélio e Lívia, mulher de
Augusto, como representativos de figuras místicas do panteão das divindades
romanas. Em pouco tempo essa prática espalha-se pelas províncias que
homenageiam suas benfeitoras, como representativo virtuoso. Na esfera familiar
essa ascensão religiosa da mulher torna-se significativa.
No
contexto do judaísmo rabínico as mulheres tinham extremo cerceamento de suas
áreas de atuação, todavia, em muitas áreas onde o judaísmo floresceu longe do
poder dos rabinos as mulheres tiveram uma liberdade para expandir suas atuações
sociais e religiosas. As comunidades judaicas na Ásia Menor, que estavam muito
mais inseridas na cultura greco-romana, é um exemplo de maior participação da mulher
no cotidiano social-religioso.
E
neste mosaico social, politico e religioso se estabelece as comunidades cristãs
com sua proposta igualitária onde não deve haver qualquer tipo de diferença
entre nacionalidades, posição social e entre homens e mulheres. O movimento
cristão primitivo tem nas mulheres e suas atuações dentro das comunidades
estabelecidas o fator preponderante que alavancou sua rápida expansão. Dentro
do contexto social greco-romano as mulheres cristãs usufruem de oportunidades
mais amplas e compartilham de uma paridade com as atuações dos homens.
Evidente
que nas páginas da História estão os registros dos retrocessos que a Igreja
Cristã fará em relação aos seus primórdios. Infelizmente na mesma proporção em
que a Igreja se institucionaliza, o ideário igualitário vai se desvanecendo
quase ao ponto de desaparecer. Mas as diversas voltas às origens evangélicas
mantiveram viva a proposta de uma comunidade onde não deve haver distinção
entre homens e mulheres, onde todos são um em Cristo.
É preciso manter o esforço continuo de efetuar a
inclusão da mulher de forma proporcional no mundo cristão, pois a igreja cristã
tem grande débito com as mulheres, nominadas ou anônimas, que no transcorrer
dos séculos foram e continuam sendo sujeitos dessa História, desde suas
origens, ainda que em uma permanente relação de ambiguidade - aceitas e
rejeitadas, enaltecidas e minimizadas - em sua historiografia.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião
me.ivanguedes@gmail.com
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Reflexão Bíblica
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Contexto Inicial
O Mundo Greco-Romano
Alexandre Magno e o
Helenismo
O Mundo do Apostolo Paulo: A
Religião
O Mundo do Apostolo Paulo: Estrutura
Familiar
Referências Bibliográficas
BYRNE, B. Paulo e a mulher cristã. São Paulo:
Paulinas, 1993.
CHAMPLIN, R.N. O Novo Testamento Interpretado. São
Paulo: Milenium, 1997 [vol.3 e 4].
CAIRNS, E.E. O Cristianismo Através dos Séculos. São
Paulo: Vida Nova, 1995.
D’ORS, Eugenio. Derecho privado romano, Pamplona 1997; apud
DOMINGO, R. El binomio auctoritas-potestas en el Derecho romano y moderno,
Persona y derecho 37, 1997, p. 184.
FIORENZA, E. S. As origens cristãs a partir da mulher, uma
nova hermenêutica. São Paulo: Paulinas, 1992.
LADISLAO, M. G. As mulheres na Bíblia. São Paulo:
Paulinas, 1995.
REIMER,
Ivoni Richter. Maria, Jesus e Paulo com as mulheres: Textos, interpretações
e História. São Paulo: Pia Sociedade de São Paulo - Editora Paulus, 2014.
___________________.
Vida de Mulheres na Sociedade e na Igreja: uma exegese feminista de Atos dos
Apóstolos. São Paulo: Paulinas, 1995.
TEIXEIRA, José Luiz Sauer. A atuação das mulheres nas primeiras
comunidades cristãs. Revista de Cultura Teológica, v. 18, n. 72 - OUT/DEZ
2010.
UBIETA, Carmen Bernabé (Ed.)
Mujeres com autoridade em el
cristianismo antiguo. Espanã: Asociación de Te´plogas Esanõlas (ATE) e
Editorial Verbo Divino, 2007.
[1] Isso significa que Priscila e Áquila
já eram cristãos quando Paulo os conheceu em Corinto. O nome de
Priscila foi mencionado quatro vezes antes do nome do seu marido nas
seguintes passagens: At 18.18,26; Rm 16.3; 2 Tm 4.19. “Na Antiguidade, as
pessoas eram citadas de acordo com sua ordem de importância” (RICHTER
REIMER,1995
[2] No caso dela
especificamente chama atenção o termo utilizado pelo apóstolo para
identifica-la “prostatis” (CHAMPLIN, p. 875) geralmente traduzido por ajudante
ou patrona, que na época significava oficial, líder, presidente, governador ou
superintendente, dando uma caracterização de que ela exercia algum tipo de autoridade
(FIORENZA, E.S., p.217).
[3] Eugenio D’Ors define auctoritas como
o “saber socialmente reconhecido” e potestas como “o poder socialmente
reconhecido” (D’ORS, Eugenio, 1997, APUD DOMINGO, R., 1997, p. 184).
[4] Essa ação recebe o nome de “Evergetismo”
um termo cunhado pelo historiador francês A. Boulanger e deriva do grego
εύεργετέω que indica a prática, no mundo clássico, de presentes luxuosos para a
comunidade de forma aparentemente desinteressada.
[5] Dois exemplos: a lei das “Doce
Tablas” promulgada no séc. V a. C. onde a mulher era subordinada aos homens de
sua família (pai, marido, cunhado e até filho); outra lei contestada era a
“Oppia”, que restringia o direito das mulheres à herança familiar.
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